O amanhecer trouxe um silêncio estranho sobre Outeiro, como se a própria aldeia prendesse a respiração. O vento frio soprava pelas ruas de pedra, e cada folha caída parecia sussurrar alertas de que o dia seria decisivo. As tropas castelhanas aproximavam-se com força total, trombetas e cascos ecoavam pelo vale, anunciando que a aldeia enfrentaria o seu maior desafio.
Tomé ajustou a espada na cintura, sentindo o peso do metal frio contra o seu corpo. Os músculos estavam tensos, e o seu coração batia acelerado. Ao seu lado, João posicionava os arqueiros nos pontos altos da colina, enquanto Maria distribuía remédios e palavras de coragem aos feridos da primeira investida. O velho Tiago percorria o perímetro, organizando a defesa com uma experiência que vinha de décadas de observação e memória ancestral.
- Hoje, cada um de nós é responsável pela vida de alguém. Gritou Tiago, com a sua voz a ouvir-se em toda a aldeia. Lembrem-se do que estamos a defender, as nossas famílias, as nossas casas, a nossa história!
O primeiro choque foi imediato e em força. Flechas cortaram o ar, pedras e troncos voaram das muralhas improvisadas, enquanto os castelhanos avançavam com determinação. O chão tremeu sob os cascos dos cavalos, e o cheiro de ferro e pólvora misturava-se com a terra húmida.
Tomé sentiu o primeiro confronto de perto. Um inimigo avançava diretamente contra ele. Desviou-se de um golpe, contra-atacou e derrubou o soldado, mas logo outro surgiu. Todos os movimentos exigiam rapidez, força e concentração. Sentiu o medo, mas também a coragem que Tiago tinha ensinado, a coragem não é a ausência de medo, mas a ação apesar dele.
João coordenava os ataques surpresa, guiando os jovens pelos trilhos da colina. As emboscadas eram calculadas. Flechas certeiras atingiam os inimigos desprevenidos, enquanto pedras e barris rolavam sobre os que tentavam avançar pelo terreno mais íngreme. A confusão e o medo espalharam-se entre os castelhanos, mas a sua força e os seus números ainda eram muito grandes.
Maria movia-se entre os combatentes. Tratava dos feridos e encorajava os jovens. Um menino caiu, assustado, e ela o levantou-o do chão, murmurando palavras suaves de conforto enquanto o sangue lhe escorria pela roupa.
- Segure firme, meu pequenino! Disse ela, com os olhos cheios de determinação. Não vamos deixar que nada, nem ninguém, nos vença!
O velho Tiago enfrentava inimigos mais fortes, mas não recuava. Cada golpe, cada comando, cada gesto transmitia segurança e experiência. Gritou ordens para reorganizar a defesa, e garantiu que nenhum ponto crítico fosse abandonado.
A batalha durou horas intermináveis. O sol subiu e começou a declinar, mas o confronto parecia não ter fim. Aldeões e castelhanos caíam, alguns mortos, outros feridos, mas a determinação do povo de Outeiro era inabalável. Pequenos atos de heroísmo surgiam a cada instante. Um jovem salvou uma criança, uma mulher pegou numa lança para proteger uma casa, um homem, já ferido, levantando-se para voltar a enfrentar o inimigo.
Tomé, exausto e coberto de sangue e suor, percebeu alguma coisa que mudaria para sempre a sua visão do mundo, a verdadeira força da aldeia não estava apenas na arma ou na estratégia, mas na união de todos. Todos os aldeões contribuíam com coragem, inteligência e compaixão. Formavam um escudo invisível que nenhum exército podia romper e vencer.
Quando o último castelhano caiu ou recuou, um silêncio pesado tomou a colina. A aldeia tinha vencido, mas a vitória tinha um preço alto. Muitos corpos jaziam espalhados, o chão estava manchado de sangue, e o cansaço pesava nos corpos e nas mentes.
Tomé caiu de joelhos sobre a terra manchada, respirou com dificuldade. Ao seu lado, Maria segurava a sua mão, e João limpava o suor e o sangue do rosto. O velho Tiago observava a colina, com olhos marejados, mas cheios de orgulho:
- Conseguimos… murmurou, a voz rouca. Mas nunca se esqueçam, a memória da Matança deve viver para sempre. Cada vida que se perdeu aqui não foi em vão.
A aldeia respirou aliviada, mas sabia que aquela vitória seria apenas a primeira de muitas provas. O sangue derramado permaneceria na memória de todos para testemunhar a coragem do povo de Outeiro.
Ao anoitecer, os aldeões reuniram-se à volta das fogueiras. cuidavam dos feridos, confortavam os que choravam e compartilhavam as histórias da batalha. O espírito de Outeiro permanecia intacto, fortalecido pelo sacrifício e pela união. E, enquanto o vento frio soprava sobre a colina da Matança, cada um dos aldeões sentiu que, embora exaustos, tinham feito parte da defesa da sua terra, de sua memória e da sua gente.
Continua...
N.B.: Este conto tem como base a "Lenda" de Outeiro "A Matança". A narrativa e os personagens fazem parte do mundo da ficção. Qualquer semelhança com acontecimentos ou pessoas reais, não passa de mera coincidência.

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