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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite, Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues, João Cameira e Rui Rendeiro Sousa.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

domingo, 5 de outubro de 2025

Professores Pássaros: quem não quer ser um?

Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)


 Celestino Calado, muito prazer. Fantasma urbano, de profissão, ao vosso dispor. Como uma figura anónima igual a tantas outras da nossa curiosa sociedade, vivo rodeado de pilhas de papéis, tarefas inúteis e justificações, numa tentativa de provar ao mundo que não passo nenhum minuto da minha vida de braços cruzados.

Levanto-me cedo da cama, antes mesmo do sol, a sentir-me como um náufrago de um navio à deriva. O primeiro café do dia é sempre um luxo do qual evito não prescindir. Depois, avanço desarmado, pelo meio do caos e do betão a sufocarem-me o ar fresco da manhã. Inspirá-lo é uma das poucas alegrias que me faz acreditar que ainda estou vivo. 

Hoje tive sorte, só demorei uma hora na viagem para o trabalho. Não fiquei preso entre dois condutores desconcertados que chocaram entre si ou, se calhar, e o mais provável, apenas me antecipei cinco minutos em relação ao habitual, antes do trânsito tomar proporções de gigante.

E eis-me chegado a outra viagem. Esta, de muitas e longas horas, certamente preenchidas com surpresas várias e dramas tão complexos como absurdos. 

À porta da escola, encontro inevitável com a D. Checklist, alinhada no seu vestido e sapatos sempre a cintilarem. Batom vermelho metálico colado aos lábios, estilo semáforo em ponto STOP.

Daquelas mães que entregam a sua prole como quem enfia os pertences num cofre, e que reúne aos sábados com as amigas no salão de cabeleireiro para falar bem das viagens de estudo fotogénicas dos seus rebentos, e mal dos professores dos filhos. Esses, que nunca têm a hombridade de tratar as suas crias como espécime único. Por isso, são verdadeiras investigadoras criminais, prontas a inspecionar cada plano, cada teste, cada palavra do dito cujo. Nem a cor do marcador de quadro escapa.

De manhã, as despedidas vestem-se de um abraço exagerado a mostrar afeto, porque beijos danificam maquilhagens irretocáveis. E o olhar certeiro delas sobre o arguido: “Vá, aqui tem. Tome conta até à noite, melhore o conteúdo, e quando entregar sorria porque, não se esqueça… está a ser filmado!”. 

Entro no edifício agarrado aos dois minutos implacáveis de reflexão, sobre as razões que levaram a ignorância a tornar-se numa conquista social.

Passo pelo corredor. Alunos a chegar. Encolho-me, reduzido à insignificância que me é votada. Miúdos a correr, outros a dormitar, de pés estendidos e cabeças em cima dos dispositivos. Uns gritam sem saber porquê, outros discutem sobre quem tem direito a quê. Cada um com as suas especificidades… ou fragilidades?

Abro a porta da sala de aula. Entram aos empurrões, mas sentam-se já cansados de um dia que ainda nem começou. Talvez me veja ao espelho. 

Atento nos que são tranquilos e falam pouco. Mas observam muito. Adivinham futuros. Vivem um ano inteiro num mês de aulas. Estudam com a disciplina e responsabilidade dos que acreditam que, efetivamente, o esforço é recompensador. De fora, já há quem os entenda como socialmente desadaptados. 

Afinal, não são iguais aos outros. A maioria. Os convencidos de serem verdadeiros líderes. Porque desafiam constantemente, porque contestam veementemente. Porque manipulam a oscilar entre a debilidade do vidro, quando lhes convém, e a dureza do ferro quando lhes apetece agredir. 

De fora, há muitos que os percebem como jovens determinados e livres. Imberbes que, do nada, transformam qualquer espaço numa arena. Mandriões, sem respeito por ninguém, sequer o próprio nome que carregam no corpo, mas cheios de certezas de que podem tudo. E a verdade é que vão podendo.

Hoje, foi mais um dia de birras personalizadas. A aula a começar com a Diamantina Purpurina, religiosamente maquilhada como se fosse apresentadora de um reality show e grossas pulseiras a tilintar a cada movimento dos braços, a querer impor o seu indiscutível direito à selfie diária de Miss Fama, enquanto reivindicava uma cadeira, para se sentar, a condizer com a mochila rosa-choque, pousada sobre a mesa, de que se dizia proprietária.
Por sua vez, Maximino Likes, influencer da preguiça e ator renomado nas visualizações do TikTok, boné enterrado na cabeça com recusa a ser retirado, alegou expressão artística inspirada em Picasso, quando espalhou tinta pelo quadro. Chamado à atenção, interrompeu teatralmente indignado, afirmando sentir ferida a sua liberdade de expressão e não gostar do tom de voz com que foi, por mim, abordado. Telemóvel em riste, pronto a filmar-me para eventual gozo das redes sociais.

A plateia quase inteira a rir-se da audácia. E é sempre tudo tão injusto na vida destes fedelhos que acreditam que o mundo existe somente para os aplaudir. Porque para eles, dentro da escola, ser produtor de qualquer tipo de espetáculo, e receber desmerecida ovação, vale muito mais do que aprender.

As advertências geraram contestações e sarcasmos exigindo a subida ao púlpito da Diretora Anacleta Magna, que ousou um bravo discurso escutado por ninguém, ao mesmo tempo que os principais visados se entretinham a rabiscar caricaturas da direção nas capas dos cadernos. Num laivo de iluminação pedagógica, a sugestão oferecida foi que todos se dedicassem à organização de um “jogo de cooperação emocional” com cartas de sentimentos ilustradas. 

Cinquenta minutos a investir no vazio. A indisciplina a ser recompensada com a complacência. E eu, Celestino Calado, acusado de melindrar os jovens debutantes e obrigado a escrever um relatório interminável, com cada minuto do cenário criteriosamente documentado, para me salvaguardar no caso de ser chamado a tribunal interno da escola. Visível consequência da minha falta de sensibilidade com os discentes.

Por ora, ficou tudo controlado. Controlado, exatamente como os prognósticos meteorológicos.
E a manhã de trabalho prosseguiu com aulas. E relatórios. Tão detalhados como estéreis. Reclamações, exigências, projetos para formações. Atualizações, formulários e garantias de soluções. Atividades que ocuparam sem que se aprendesse nada de substancial. Invenções. E mais relatórios para explicar o inexplicável e justificar o que não tem justificações.
  
E sigo como um pássaro em pleno voo: professor, pai, psicólogo, bombeiro, escrivão, mediador de conflitos, gestor de crises, especialista em relações públicas, animador sociocultural, voluntário de logística no transporte e arrumação de mesas, vigilante de recreio. Desconfio, mas isto fica apenas entre nós, que muito em breve, à falta de recursos disponíveis, esteja também a limpar sanitários nos momentos de intervalo, rigorosamente contabilizados para não serem incluídos no salário.

Ah, os intervalos… palavra tão mentirosa! Os buracos negros de cada dia que me consomem os curtos minutos de tentativa de um outro fôlego.

A maquiavélica impressora na sala dos professores que decidiu, mais uma vez, engolir duas folhas por cada três que devia cuspir. A reunião urgente junto à porta do bar, para decidir a cor dos balões na decoração da “Semana da Escola Viva”. O e-mail de 1500 palavras, repetitivas e inúteis, do professor doutor Augusto Nobre, a justificar que o seu rapaz bota de ouro não fez os trabalhos de casa devido ao trauma causado pela humilhante derrota da sua equipa, no jogo do fim de semana. O telefonema histérico da mãe da Sãozinha a queixar-se do bullying cometido contra a filha que, inadvertidamente, eliminei do grupo da disciplina, no WhatsApp. A conversa com a mãe do Adormindo Manhoso para confirmar se o filho faltou ao teste por estar doente ou simplesmente porque decidiu enveredar por uma greve estudantil.

A vida a girar nos meus intervalos sem intervalo, a cogitar como também pode ser reparador simular que se descansa. Mais um café frio entre as mãos e eu, calado. Porque só com asas poderia voar para longe de tantos disparates…

Sigo pela tarde fora que, hoje, até poderia ser livre mas, por essa mesma razão, permitiu encaixar nela mais uma reunião de professores, convocada em cima da hora, para tratar de assuntos proeminentes. 

E cá estou, sentado numa cadeira desconfortável, dentro de uma sala envergonhada, junto a uma descomunal coluna de papéis a crescer até ao teto, de cara praticamente encostada ao Narciso Pardal. Herói de todas as histórias, homem digno de dar nome a ilustre monumento e que não consegue respirar se o mundo não estiver a olhar para ele. Salvador de planos pedagógicos obsoletos, convencido de futura candidatura a funções de coordenador, sem que lhe pedisse o favor, foi-me colocando a par da substancial consideração que a direção tem pela sua pessoa, fruto da sua excelsa visão inovadora.

Abençoado o instante em que fui salvo pela campainha da voz do Dr. Tibério Pavão, que deu entrada superior, para anunciar pela milésima vez a grande novidade. A importância e necessidade de fazermos a diferença com a promoção da liberdade individual do aluno e a urgência prioritária de continuarmos a insistir no foco “Aprender a Brincar”. Porque temos que nos adaptar à inovação.

O meu quadro de avisos mental deu, automaticamente, início à avalanche de propostas a colocar em cima da mesa. Consideráveis e prometedoras atividades letivas: feiras de ciências, encenações de peças de teatro, treino de coreografias contemporâneas, concursos de talentos, cursos de mindfulness para alunos… 

Acho que sorri, sem querer, ao imaginar a criatividade do slogan: bem-vindos ao parque de diversões onde o saber é opção, o espetáculo obrigatório e a confusão garantida!

Apeteceu-me acionar o meu botão de pânico e propor que juntássemos ao menu um Workshop de Autocontrolo Emocional dirigido a professores com o cérebro à flor da pele. Mas não. Porque sou, simplesmente, o Prof. Calado.

Avante, que o tempo urge e é preciso dar seguimento ao arraial. Desta feita, as novas metas das novas didáticas. Programas digitais que mudam de cara como quem muda de camisa, projetos aliciantes com nomes em inglês de tradução inviável, objetivos de ensino com roupas renovadas, planificações inéditas que exigem habilidades de acrobatas. Facilidades, favorecimento de mediocridades, aprendizagens irreais, eventos anuais, prémios superficiais. O Dr. Tibério Pavão conclui: tudo por uma escola inclusiva, sem desrespeito pelas diferenças, em prol de resultados uniformes e no top dos rankings. 

Mas que magnífica contradição! Sorrio novamente e desta vez dou-me conta. E eu, quem sou? Com toda a certeza, o malabarista com poderes mágicos, obrigado a desencantar milagres neste palco que gira sem rodas. Porque um bom governo nunca desilude os melhores professores. Principalmente em dias especiais do ano, nos discursos públicos, sobre louvores e méritos devidos a estes tantos doutos ignotos.

E calados, como eu, em desalento, ficam todos ali, absorvidos em papéis visíveis e ocultos pensamentos, a suportar as tradições e contradições como se rendidos a uma dor de dentes impossíveis de arrancar.

Só Apolónia Codorniz, como não podia deixar de ser, se manifestou contra. O que faz por norma, em relação a tudo e a nada que possa captar como um ataque nuclear contra o seu ego. Exaltada, pelos eriçados como penas de galinha ao vento, a arder na própria saliva, tão irreverente como o casaco Diesel comprado num qualquer shopping londrino, lenço de onça ao pescoço, feito com um nó a condizer com o da sua própria vida pessoal. 

Que a escola é um incêndio permanente, que não se pode trabalhar assim, que isto é um atentado à dignidade docente, que o país está a promover uma geração de analfabetos com certificados brilhantes só porque é de bom tom mostrarem-se estatísticas bonitas.
E entre o desgoverno mental e o drama, Apolónia Codorniz lá vai declarando que é a única ali dentro que, de facto, trabalha. Como se o assumir-se comandante do que percebe como um exército de soldadinhos de chumbo, a ordenar tarefas inspiradoras e tomar decisões por todos, lhe valesse o galardão da dignidade profissional.

Quinze minutos de sirene ligada no volume máximo, agarrada a um cronómetro escondido que lhe media o restante tempo de vida, os argumentos não convenceram, como era hábito.

Forçada a dobrar-se ao ataque de histerismo por quem não apreciou o arrojo, explodiu ainda mais, agora em lágrimas, e saiu contrafeita, já a redigir mentalmente uma acusação formal a enviar para a Administração, deixando na sala o rasto do seu perfume com aroma de prepotência. 

Premi o botão e degustei o sabor da divagação. Uma galinha nervosa que se compara a uma águia soberana! Todo aquele autoritarismo tem ares de compensação. Quem sabe, lá atrás, quando era criança, nunca tenha conseguido mandar em ninguém. Nem no cão ou nas bonecas.

Após o interregno, nova volta pelo incentivo à evolução da autonomia e o sentido de descoberta dos nossos adolescentes. Mais uma vez à baila os projetos de cidadania. Instruir sobre a vontade de conhecer, os valores e os preceitos. 

Para colmatar a primeira responsabilidade daqueles que não cumprem, mas exigem e se esforçam com a crítica? Questiono-me se começo a ficar néscio. Educação, independência, limites, bons hábitos, curiosidade saudável… não são princípios alicerces que é obrigatório uma família ensinar diariamente, como uma herança a que é proibido renunciar? Será que a moral deve ser atribuída como tarefa, sob a forma de entretenimento? 

Já me via na eminência de ter que criar uma peça de teatro com fantoches, sobre ética. Ou, talvez, uma variedade de fichas lúdicas e PowerPoint com transições animadas e músicas de fundo para um campeonato de boas maneiras, entre turmas. No final, uma aplicação com download a ser feito pelos alunos, para obtenção da medalha de prémio para quem conseguisse dizer mais vezes “por favor”, “desculpe” e “obrigado”.

E estratégias para motivar os meninos “mais hiperativos”? Alguém se lembrou de perguntar, para terminar, como se estivesse de ouvidos atentos aos meus pensamentos. Os olhares cruzaram-se, silenciosos, ao ouvir o nome quase elegante inventado para definir gente malcriada (só que isto não se diz porque as paredes têm ouvidos e podemos ferir a suscetibilidade dos jovens senhores e respetivos progenitores). 

A Gestora de Pedagogias Circulares atira, de imediato, a solução que lhe estava na ponta da língua: construir um projeto interdisciplinar de matemática, música e religião moral. A sagrada geometria do destino ao som de uma guitarra portuguesa! Não era interessante? Dr. Pavão aceita, sem contestação. E deixa o aviso, antes de bater com o malhete na mesa: “planificação a enviar nas próximas 24 horas e, já agora, este ano, em vez de pedirem dinheiro para a viagem de estudo a Ibiza, façam um peditório online para aquisição da guitarra”. 

Finalmente, após horas infindáveis a regar areia, foi dada por terminada a audiência.
Respirei de alívio e saltei porta fora. Como costumo dizer, por hoje, mais um monstro vencido. Mas cantei o som do triunfo antes da hora. No corredor, tropeço de novo com os olhos cansados nos olhos ferinos de Apolónia Codorniz, que parecia aguardar a saída dos colegas, com o propósito de vingança macabra. Entrei em processo de indigestão. O café frio depois do almoço comido à pressa, azedou-se-me logo no estômago.

Que era impreterível sermos mais “assertivos”. Que, francamente, sofríamos todos de uma crónica falta de energia, que só ela tinha coragem de dizer o que pensava sem medo de ninguém. 

Adiantei os passos, com o maço de testes equilibrado debaixo do braço, guiado por uma ideia traiçoeira: a gratificação de, só por um instante, lhe torcer o pescoço até ela se calar! Mas claro, nada de violência física punível por lei. Ficaria por essa fantasia doce em relação a quem vive próximo de gente assim, o que, só por si, já me permitia a salvação da sanidade.
Embora, desta vez, não me tenha apetecido ficar calado. Com ela dificilmente me apetece, porque sei que a minha réplica a atormenta mais. E respondi-lhe que a mulher não tem medo de ninguém, pois claro, porque nunca corre o risco de fazer uso dos neurónios! Despeja primeiro, pensa depois. E, ainda assim, só consegue pensar nela. E se continuar a viver em modo sprint, não vai chegar à reforma. Acontece algo que já deveria ter aprendido. Cai muito antes, esmagada pelo próprio nervosismo e excitação que tem vindo a cultivar como medalha de honra.

O mais curioso? Apesar da profecia e das constatações, Apolónia Codorniz continuará sempre a ser uma fervorosa crente na ilusão da sua vitória sobre os restantes. 

18h00. Hora de regresso a casa? Sem dúvida. Lembro-me do meu vizinho, o Alexandre, com quem me cruzo, muito ocasionalmente, por esta hora. Que picou o cartão às 17h30 com direito, nesse dia, a uma invejável hora de almoço, inteirinha, só para ele e que, então, chega a casa para se juntar à família que o aguarda. Uma ida ao ginásio com o filho mais velho, depois ajudar a preparar o jantar e ainda umas quantas horas de convívio antes do sono dos justos. 

Por vezes, encontro-o mais tarde. Cumprimenta-me e sorri quando lhe pergunto, “só agora?”. Pisca-me o olho enquanto responde, feliz, que um suplemento extra é sempre bem-vindo.

Mas quem, como eu, precisa de suplementos quando tem o bónus de um cardápio completo de obrigações invisíveis, depois de viver um dia de aventuras constantes ao lado de direções com delírios imaginativos, alunos engenhosos ou em estado de colapso e pais em filas de urgências? Afinal, a vocação é a melhor recompensa.

Pois é. São 18h00. E por falar nessas filas cheias de urgências, chegou a hora, não de me ausentar, mas de estar mais presente e consciente do que nunca, na reunião de pais para a qual, por razões mais do que óbvias, não posso atrasar-me.

Ah, os pais! Acionistas maioritários das escolas, fiscais de disciplinas, métodos e ritmos de trabalho e de aprendizagens. O novo cliente caracterizado pela dinâmica da reclamação.
Contabilizo os que me chegam de forma honesta e preocupada.

Para lá disso, a exigência parental exacerbada pela sapiência de quem conhece na perfeição as diretivas educativas, embora a educação propriamente dita se veja alheada das suas responsabilidades primeiras. Por isso, não acompanham os filhos, mas supervisionam os professores. Ignoram a sua função como pais, mas têm um conhecimento absoluto sobre o melhor desempenho dos professores.

E exigem diagnósticos e relatórios individualizados, atividades à medida. Sobretudo, notas que confirmem a genialidade das suas peças únicas de altar. Quando não acontece, está identificado o culpado: o professor.

Aprender? Importa muito pouco o saber-saber, o esforço genuíno, a disciplina intelectual. Claramente vanidades quando comparadas com o saber-estar e ser num mercado de trabalho competitivo e hostil!

Aliás, acabo de receber mensagem da D. Efigénia Bravo, a alegar a costumeira impossibilidade de presença na reunião, e a tecer considerações sobre a falta de motivação da filha para a minha disciplina. Solicita, imperiosa, várias alternativas para a prática dos estudos da sua descendente.

Sim, pois, a Henriqueta Beatriz. Aquela que sabe decifrar o nome de todas as marcas de acessórios de moda existentes, incluindo as mais improváveis, mas “não consegue ler”, sequer, o enunciado das provas sem o auxílio de um professor! Poderia fazer e enviar-lhe um desenho da matéria, pintado com glitter e decorado com lantejoulas. Não duvido da facilidade com que seria compreendido. Mas limitei-me a suspirar profundamente. Recordo-me que sou apenas… Calado.

Seguem-se mais dois pais que confundem caprichos com necessidades e ausência com amor.

Filho com oitos e setes nos testes? Números que ferem a autoestima de um génio incompreendido!

De acordo com o Dr. Gilberto Fidalgo, por exemplo, eu deveria perceber com nitidez uma questão, não apenas importante como igualmente evidente. Se me paga o ordenado, exige serviço. E, portanto, a escola tem o dever de assegurar que o filho tenha bons resultados, independentemente do mesmo ter tempo para estudar ou não. Essa é a minha função e, para isso, não aceita desculpas.

Gostava de lhe desligar o ruído vocal. Mas segurei-me com as mãos dentro dos bolsos e ofereci-lhe o meu sorriso pedagógico. Ainda não é hoje que te espremo a gravata. Sabe, caro senhor, tem um filho com grande potencial, o que ele precisa é só de um pouquinho de esforço próprio.

Por seu lado, outra mãe, carrapito empoleirado, pestana postiça a tremer de antipatia e unhas afiadas capazes de se tornarem armas brancas, largou a bomba do dia. Estava horrorizada porque, em determinada aula, o professor teve que se ausentar da sala durante uns extensos dez minutos, para se deslocar com ligeireza ao wc, e deixou a turma ao desbarato. O querido filho, aquele que gosta de se filmar no telemóvel, em direto para o Instagram, a praticar desafios que não lembram ao diabo, decidiu atirar o compasso do colega pela janela. Só para ver qual a cabeça que apanhava desprevenida. 

O drama da situação é que o menino foi suspenso durante um dia. E isso jamais aconteceria se não fosse dado espaço e tempo para o seu herdeiro ter tal acesso criativo. Valentim Lobo, marmanjão de 15 anos de idade, jamais seria merecedor de punição. A jaula é que não podia ter ficado sem guarda. Porque, enfim… as fronteiras entre o certo e o errado e entre o bem e o mal, não têm que ser explicadas em casa. 

Ai, aquela antena que a senhora tinha em cima da cabeça estava mesmo a pedir por liberdade, com um bilhete só de ida para o jardim zoológico mais distante! Outro para mim, em direção ao paraíso. 

Mas se o dia começa cedo e acaba tarde, às vezes, para concluir a rotina com o mínimo de dignidade, é melhor mesmo ficar quieto. E calado. E tentar um esforço último para acreditar em frases motivacionais como “nada é impossível!”.

Depois desta comédia em versão cinematográfica, dentro de um labirinto a necessitar de nova iluminação, regresso finalmente a casa, tarde e a más horas, como um pássaro que, depois de muito voar, é compelido a arrastar-se. Com um sentimento íntimo de insuficiência, desgastado e despojado de tanto mas, no fundo, com uma teimosia insana de que o que faço ainda pode ter valor. É com esse pequeno detalhe que disponho o espírito para o que ainda me espera. 

Pelo menos até ir consolar o corpo no fundo dos lençóis, deito o olho ao correio eletrónico onde, do outro lado, uma alma vigilante e insone digita mensagens a lembrar prazos impossíveis, regras mutantes e as novas atividades da semana. 

Entretanto, esta e outras noites adentro, construo dezenas de grelhas de avaliações, preparo centenas de aulas, corrijo milhares de testes e trabalhos. Invento soluções. Planeio intervenções. Em curtos espaços e breves tempos para ensinar, divido-me nestas múltiplas multiplicações. De caneta burocrática em punho, o esforço torna-se irrelevante mas eu, Celestino Calado, residente involuntário no interior desta encenação nacional fabricada pela cegueira coletiva que encobre tantas incompetências, estoicamente vou sobrevivendo.
Não fosse um Celestino Calado, e seria Alado. Qual fénix que, na abóbada celeste de cada madrugada, renasce das cinzas.

Previsão apocalítica: por agora vamos recordando o país de que o céu ainda existe mas quando eu, e todos os atormentados e abandonados como eu, já não conseguirmos voar, não pela falta de competência, mas pela privação de forças, deixaremos de ter futuro.

Fecho os olhos, exausto. Na outra realidade paralela do sonho, uma fronha feia com dentes amarelos, sorri surpreendida. Ouço-lhe a voz sombria: “com tantas férias que tens por ano, como ousas lamentar-te, assim? Quem não gostaria de uma vida igual à tua?”. 

Como conclusão, professores pássaros… quem não quer ser um?

Tenho a impressão de continuar a escutar, distante, o som das mensagens no telemóvel. Ping… ping… ping…
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Em nota de confissão, cabe-me dizer que ainda bem que não sou professora. Se eu fosse professora e ousasse, aqui, afirmar o que tantos pensam, mesmo com a certeza de estar a perder o meu tempo a varrer a chuva, certamente seria lapidada. Afinal, todos sabemos que a mais elevada heresia é dizer-se, alto e em bom som, aquilo que muitos confirmam em segredo. Manda o protocolo que se torne admissível a pantomina e se sorria, enquanto se finge que os reis vão vestidos.


Paula Freire
- Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). Autora dos livros de poesia: Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022) e As Dúvidas da Existência - na heteronímia de nós (Farol Lusitano Editora, 2024, em coautoria com Rui Fonseca).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.

2 comentários:

  1. Não ouso dizer que só faltou lembrares à malta que os que decidem, como e quando, se desfazem as coisas... estão sentados num gabinete da manjedoura principal. Óh... já disse. O teu texto é a mais perfeita imagem da penosa vida de um professor ou professora. Destituídos de autoridade, desmoralizados pela ascensão desmedida dos papás e das mamãs, são o elo mais fraco. A minha vénia a TODOS OS PROFESSORES E PROFESSORAS, hoje e sempre. E a TI Paula, que nunca esqueces o que verdadeiramente deveria preocupar a sociedade e unir-nos a todos para encontrarmos soluções. Beijinho.

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    1. A tua vénia é também a minha, meu amigo Henrique.
      E que nunca nos faltem esses espíritos corajosos que, apesar do cansaço da sua luta contra o ranço encoberto pelo verniz de uma suposta era moderna, continuam a tentar ensinar com o coração inteiro, num esforço derradeiro para salvar o essencial: o pensamento humano.
      Quanto a ti, também um agradecimento por, neste teu espaço ao qual devotas o teu empenho e dedicação, ires permitindo que seja dada voz a tanto daquilo que realmente importa.

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