À MEMÓRIA DOS HORTELÕES DA «BILA»
Os leitores sabem, pela minha escrita, a minha vida quase toda, até que o meu grande mestre na vida foi o meu Pai. Por isso, há pouco, recebi um mimo do Jorge Humberto, ao dizer-me que o meu Pai dizia que se «descansa em morrendo». Nesta conversa suspeitei que pudéssemos ser família afastada e que mais tarde confirmei.
Mas, há meses que tenho sido desassossegado com a memória dos «Hortelões de Mirandela». É espantoso! Ouço-os a trás de mim a dizerem-me: - tens que escrever sobre nós!
E não há nada a fazer. O remédio é meter mãos à obra por este terreno pedregoso da escrita.
Os hortelões, o que faziam com mais fama e garbo, manuseando a sacha, a enxada ou o charruete, puxado pela mula ou macho, era o trato da couve. Couve só havia uma, a de Mirandela, que se estendia do Cardal a Vilar de Ledra, passando por Carvalhais e alargando até Contins. A couve sentia-se, ainda, abençoada nas cortinhas e hortas do Tua, do Rabaçal, da Ribeira de Suçães e da Ribeira da Torre.
Depois, havia o repolho pelas segadas e durante quase todo ano a couve-vilã ou caldo verde. Para esta, o meu irmão Manuel sentenciava: «quem quer ver o marido morto, é dar-lhe sardinhas em Maio e couves em Agosto!»
Os hortelões de Mirandela, sem o saberem, foram os grandes mestres no trato da couve e de outros mimos hortícolas. O seu saber chegava a toda a região e lavrador que se prezasse de ter bons mimos hortícolas em casa recebia os ensinamentos, dos hortelões, na romaria da Senhora do Amparo, nas feiras trimensais (3, 14 e 25) na Praça, nos barbeiros, nas tabernas enquanto se bebia um copo ou dois, com uma isca ou um peixe frito do rio, e a conversa fluía como a água do Tanque.
A couve-do-Natal, ou couve-tronchuda, ou couve-penca iniciava (e inicia) o seu ciclo quando o hortelão ou o lavrador escolhia as melhores couves para semente. A essas não se lhe tocava e deixava-se que deitassem bons espigos em Março e florissem, para no início de Junho se malhar com um pau curto ou esfregando a pequena vagem seca entre as mãos, recolhendo-se a semente, parecida com a do nabal.
O calendário agrícola, sempre lembrado pelos almanaques, Seringador e Borda d’Água, é implacável se queremos bons produtos temos que os semear no tempo certo. Para a couve de Mirandela ou couve-penca-preta (por se apresentar mais escura quando se planta) a sementeira deve ocorrer pelos dez de Junho e a couve da Póvoa (de Varzim) ou couve-penca-branca sementa-se uns quinze dias depois.
A couve de Mirandela é a tradicional da nossa cidade, que vai fechando à medida que o frio vai aparecendo e tornando-se mais branca, ganhando um paladar excelente e adocicado com as rigorosas geadas outonais. A couve-penca de Mirandela, que hoje se planta mais nas cortinhas de Carvalhais e de Contins, também se dá bem nas hortas da Vilariça (vale). Os excelentes terrenos de aluvião ou estrumados, principalmente com as cagalhetas de ovelha e de cabra, bem como o clima da terra quente, são indispensáveis para se criarem as melhores e maiores couves. Couves que vão dos dois ou três quilos por pé até aos oito quilos, as preparadas para concursos. Concursos que se realizam anualmente, na «Feira da Couve Penca», em Carvalhais, perto do Natal.
A Couve da Póvoa ou couve-penca-branca, que com o crescimento se torna preta, não fecha como a de Mirandela, ficando sempre aberta. E eu que não sabia por que umas fechavam outras não, julgando ser um capricho da natureza, vejo que, afinal, são duas variedades diferentes. Chaves tem mais couve branca, por ser mais frio e esta não apodrecer tanto com o gelo.
Assim, depois de a terra amanhada para receber a «princesa das nossas hortas outonais», pela «Feira dos 25» ou «Feira da couve» que se comprava, aos couveiros de Contins, os molhos de meio cento para plantar. Hoje, aconselha-se a plantação pelos 20 de Agosto.
Os hortelões de Contins vendiam, na década de cinquenta e sessenta do século XX, para a região, até Bragança, Mogadouro, Moncorvo e Chaves. E faziam meças entre eles para saber o que mais contos de réis arrecadava com a safra da couve.
A couve deve ser plantada no sopé do «belão» para mais facilmente receber a água da rega no rego. Requer ser bem regada, mas não em excesso, para não enchoquecer. Passados dois ou três dias já se vê a arreguichar, sendo sinal de que as raízes se estão a agarrar à nova terra.
Quinze dias, e depois de bem regada, raspa-se a couve, perdão, os regos para lhes retirar toda a erva que entretanto nasceu devido ao calor e são da terra. E passados outros quinze dias estruma-se e aduba-se, para de imediato se cavar, arrasando-se os regos com a sacha.
Uma semana depois voltam a repor-se os regos com a sacha, com a particularidade de a couve, agora, ficar no cimo do belão. Esta mudança do local da couve em relação ao rego indica-nos que ela já ganhou raízes mais sólidas e a água da rega, bem como a da chuva no tempo mais frio devem distanciar-se mais dos toros couveiros para evitar que apodreçam e a couve morra por levar água a mais.
Nesta altura, se houver pulga ou lagarta na couve, deve ser caldeada com uma calda que mate a bicharada, mas que não prejudique o consumidor.
À medida que o tempo vai arrefecendo e as noites ficam mais frias, a couve penca de Mirandela fecha-se no olho e folhas mais novas, preparando-se para os rigores invernais.
Em Outubro já se consome alguma couve penca, mas ela ganha melhor paladar, em fins de Novembro, à medida que o frio aumenta.
Outrora, os mercados, portuense e lisboeta, recebiam camiões carregados de couve de Mirandela para a época natalícia. Hoje, as grandes superfícies alimentares estrangularam a produção com couve ordinária e só a certificação pode dar alguma força à nossa couve. A melhor de Portugal.
Por isso, o Jorge Golias lamenta-se sempre, de Carnaxide, quando não consegue a nossa «couve da consoada» para acompanhar o bacalhau.
Jorge Lage
in:diario.netbila.net
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