Década e meia após conquistar o estatuto de língua, o mirandês enfrenta um novo obstáculo: a desertificação da região de Miranda do Douro.
Glória Vaqueiro vai na berma da estrada, a poucos metros da fronteira com Espanha e a outros tantos da aldeia de Constantim. Equilibrada em cima da burra, faz questão de explicar o porquê do meio de transporte – cada vez mais raro, mesmo em terras de Trás-os-Montes. “Não sei andar de bicicleta e nunca tirei a carta de carro. A burra dá-me jeito para ir aqui e além e é nova, só tem seis anos. É mansinha.”
A fala da transmontana é estranha: as palavras são portuguesas, mas o sotaque faz lembrar o castelhano. Mas também não é mirandês. “Só falo mirandês com quem também fala”, avisa. Glória, a dona da burra, tem 68 anos, vive com uma reforma de 400 euros e ainda se lembra do tempo em que “toda a gente” andava de burro ou a cavalo. Até o Dr. Barros, o médico de serviço na região, que morreu “há já muitos anos”, mas que palmilhava as aldeias de Miranda do Douro a cavalo para assistir os doentes em casa.
Agora toda a gente tem carro e os médicos, que escasseiam na região, não fazem serviços ao domicílio. O hospital mais próximo da aldeia de Constantim fica a mais de 15 quilómetros, em Miranda, e, se o caso inspirar cuidados de maior, só pode ser resolvido em Bragança, a quase 60 quilómetros de distância. “Mudou quase tudo, só não muda a política, que é sempre a mesma”, atira Glória, ainda do alto da burra. O que também não mudou é a língua mais usada pelos habitantes de Constantim e das outras aldeias de Miranda do Douro: o mirandês, a outra língua de Portugal, anterior à própria fundação do país e que, em 1999, ganhou o estatuto de língua minoritária.
O problema é que há cada vez menos gente em Trás-os-Montes para manter viva a tradição. Em Constantim, por exemplo, só resistem 80 habitantes (há duas décadas eram mais de 300). Na aldeia há uma única criança, com 12 anos, e o casal mais jovem anda na casa dos 40. Para os mais velhos – os que resistem –, o primeiro contacto com a língua portuguesa só se deu à chegada à escola, numa altura em que o mirandês era falado em todas as casas, mas apelidado de “fala caçurra” – a língua das gentes incultas. Glória ainda conseguiu fazer a terceira classe, mas praticamente não sabe ler. “Sei fazer o nome e orientar-me se precisar de andar de camioneta.”
A pouca escolaridade acabou por fazer com que nunca tenha esquecido a língua materna, o mirandês. “Só uso o português para falar com gente de fora ou quando tenho de ir à cidade”, explica.
Não há um cálculo rigoroso das pessoas que ainda falam a outra língua. Sabe-se, com certeza, que continua a ser usada em todas as aldeias do concelho de Miranda do Douro e ainda em três povoações vizinhas que pertencem ao concelho de Vimioso: Vilar Seco, Angueira e Caçarelhos. No total são 500 quilómetros quadrados de território, na fronteira com a província espanhola de Zamora, em que as palavras são ditas de uma outra forma.
Em 1900, o linguista José Leite de Vasconcelos estimava que existissem 15 mil falantes. Actualmente, o número não deverá ir além dos 7 mil. A diminuição de falantes foi uma constante ao longo de todo o século xx, sobretudo a partir da década de 60. Na altura, muitos chegaram a apostar que o mirandês se extinguiria de vez, muito provavelmente por volta de 1980. As profecias mostraram-se apressadas, apesar de tudo apontar para a sua extinção: em meados do século passado, com a construção das barragens do Douro, chegaram ao concelho de Miranda do Douro centenas de trabalhadores, todos falantes de português. Instalaram-se em praticamente todas as aldeias.
O mirandês deixou assim de ser a língua dominante. Nessa época, o ensino generalizou-se (nas escolas só era ensinado o português) e apareceu o fenómeno da televisão – também falada em português. Enquanto isso, muitos rapazes de Miranda eram incorporados no exército, por força da guerra colonial. E nas ex- -colónias, longe de Trás-os-Montes, foram obrigados a assimilar o português.
O mirandês foi caindo em desuso, até que conseguiu o estatuto de língua regional, em 1999, através da Lei 7/99. Portugal deixou assim de ser o único país monolingue da Europa. No mesmo ano foi aprovada a Convenção da Língua Mirandesa, criada para normalizar a escrita – uma espécie de acordo ortográfico do mirandês, que sentou à mesma mesa falantes, estudiosos e linguistas das universidades de Lisboa e de Coimbra. O princípio era simples: manter a diversidade na fala, mas criar unidade na escrita. É que o mirandês tem vários dialectos, que variam de aldeia para aldeia. E foi sempre uma língua oral, até 1884, quando José Leite de Vasconcelos publicou o poemário “Flores mirandesas” – a primeira obra escrita em mirandês. Aos poucos, a língua começou a ser escrita e actualmente existe mais de uma centena de obras publicadas – entre traduções e livros originais.
L PORSOR FALANTE Sozinho, o professor e vice-presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) já traduziu dezenas de obras. Por pura carolice. Amadeu Ferreira nasceu em Sendim, saiu de Trás-os-Montes para se fazer doutor em Direito e construiu uma carreira sólida em Lisboa. Nos corredores da CMVM ninguém adivinha que só aprendeu a falar português aos 18 anos: em casa e na vila de Sendim só se ouvia o mirandês. Hoje, aos 62 anos, o seu domínio da língua portuguesa é perfeito, mas o inconsciente teima em pregar partidas: Amadeu Ferreira confessa que sonha sempre em mirandês. Nas horas vagas, entre o trabalho na comissão e as aulas de Direito na Universidade Nova, o professor dedica-se às traduções. Já traduziu os “Quatro Evangelhos” (“Ls quatro eibangeilhos”, em mirandês), “Os Lusíadas”, a “Mensagem”, de Fernando Pessoa”, “O Principezinho” e alguns poetas clássicos, como Horácio. Mas o recordista de vendas é o livro “Asterix l gaulés” (“As Aventuras de Astérix”) – já se venderam quase 8 mil exemplares e num espaço de apenas três meses chegou à terceira edição.
Nos últimos anos têm sido publicadas uma média de seis obras por ano. “É um trabalho cultural de cidadania”, conta Amadeu Ferreira, alertando para a pouca atenção que os sucessivos governos e as instituições locais, em Trás-os-Montes, têm dado à língua de Miranda. “O mirandês aguentou mais de mil anos, tem-se feito muito trabalho, mas não podemos continuar a assumir as responsabilidades das entidades públicas”, critica. Depois de se ter dado o reconhecimento da língua, há quase 15 anos, houve conversas com ministros, promessas de todos os governos e da Câmara Municipal de Mirandela.
“Na prática, os apoios para que a língua continue viva têm sido poucos ou nenhuns”, denuncia o professor. “A necessidade de defender as línguas minoritárias é cada vez mais uma evidência, de maneira a preservar uma parte indispensável do património cultural da humanidade e da identidade do país”, sublinha, acrescentando que as línguas estão permanentemente em perigo. “Por serem humanas, morrem se não forem cuidadas”. Amadeu Ferreira propõe, por exemplo, que a autarquia de Miranda do Douro passe a escrever em mirandês e que sejam criados incentivos de emprego aos falantes. Mais urgente que tudo o resto, diz o vice-presidente da CMVM, é a criação de um instituto central do mirandês – uma espécie de Instituto Camões à escala da língua de Miranda. O próprio ensino, que existe mas não é obrigatório, precisaria de ser mais apoiado: “Por não ser obrigatório, pode acabar a qualquer momento, deixando de se fazer a transmissão da língua.” Ou seja, a lei proclamatória de 1999 não chega. É preciso agora “que o Estado concretize os compromissos que assumiu em lei, porque a democracia linguística é um elemento importante da democracia, que deve assentar no respeito pela diferença”, resume.
L MIRANDES NAS SCUOLAS O ensino do mirandês arrancou em 1985, na Escola Preparatória de Miranda do Douro, com turmas do quinto e do sexto ano. A partir de 1999, com a proclamação da língua, o ensino foi regulamentado e alargado a todas as escolas da cidade, mas só como disciplina opcional. “A regulamentação sofre de graves deficiências, o que tem levado a uma diminuição do número de horas lectivas, à ausência de manuais e à existência de poucos professores”, aponta Amadeu Ferreira. Foram apresentadas várias propostas ao Ministério da Educação no sentido de melhorar o ensino, mas nunca foram atendidas.
Desde que se tornou oficial, o ensino tem sido ministrado sobretudo por professores autóctones, com formação nas áreas das Línguas ou da História. Duarte Martins, natural da aldeia de Malhadas, no concelho de Miranda, é há oito anos um dos mestres do mirandês. Aprendeu a falar em casa, mas só muitos anos mais tarde aprenderia a escrever a língua – depois de passar por um curso de Verão na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD).
Para quem aprendeu a língua de ouvido, o trabalho dos últimos anos é notável. Basta entrar na aula de mirandês da turma de 15 alunos do 4.o B da Escola Básica de Miranda do Douro. Os miúdos têm só dez anos, já vão no quarto ano da disciplina e falam mirandês como gente crescida. A aula acontece do princípio ao fim em mirandês e ninguém falha uma resposta.
No ensino básico, e apesar de a disciplina ser opcional, a taxa de adesão é de quase 100%, mas vai diminuindo à medida que os alunos avançam no nível de ensino. “A taxa mais baixa regista-se no secundário, porque nessa fase os alunos já têm outras preocupações e menos tempo disponível”, justifica o professor. Mesmo assim, estima-se que nos últimos anos mais de 2 mil crianças tenham aprendido mirandês na escola. Só que ensinar sem mais nada não chega para manter a língua viva. Para começar, porque assim que os alunos chegam ao 12.o ano, são obrigados a sair de Miranda do Douro se quiserem prosseguir estudos. Ou, simplesmente, arranjar trabalho. “A problemática da preservação da língua está directamente ligada ao problema da fixação dos jovens. O nosso trabalho de transmissão da língua é feito, mas os falantes saem da região e na maioria dos casos nunca mais voltam, distanciando-se das suas raízes e, consequentemente, da sua cultura”, diz o professor.
L NUOBO PELIGRO Os indicadores socioeconómicos de Miranda do Douro mostram que o mirandês enfrenta agora uma nova ameaça. Real e difícil de contornar. Só entre 2001 e 2011, de acordo com os dados do censo, a população residente no concelho diminuiu 7,3%. Há dois anos havia apenas 7462 pessoas a viver na região, espalhadas por uma área total de cerca de 487 quilómetros quadrados. O número de falantes cai todos os anos – sempre que morre um velho perde-se um pedaço de cultura e os indicadores apontam para um aumento exponencial do envelhecimento populacional. Além disso, nos últimos dez anos, a taxa de desemprego subiu de 3,3% para 4,5% – o que tem levado muitos mirandeses a fugir para outras regiões do país e até para o estrangeiro.
Um dos exemplos do que a desertificação fez a Trás-os-Montes é a aldeia de Vilar Seco, no concelho de Vimioso, onde o mirandês ainda sobrevive. No único café da aldeia juntam-se todos os finais de tarde meia dúzia de velhos. Há 14 anos que não nasce uma única criança na terra. E há quase 30 que a aldeia – com pouco mais de 200 eleitores – é atravessada por uma linha de comboio abandonada. Nas paredes do café multiplicam-se cartazes escritos em mirandês. Um deles anuncia a próxima batida à raposa. Há uns anos, caçar uma podia render 3500 escudos. Hoje só sobram cinco caçadores e as peles de raposa pouco valem. “Há uns tempos apareceu aí um espanhol a comprar, pagava 10 euros por cada uma”, conta o presidente da junta, Armando Pinto, que vive em Vimioso, a quase 20 quilómetros de distância.
Outro dos cartazes expostos anuncia um torneio de sueca – os prémios variam entre um porco com 70 quilos, cordeiros, galos e chouriças. “Foi-se toda a gente embora, mas aqui há uns anos ainda havia trabalho”, garante o autarca. Nos arredores da aldeia existiam meia dúzia de grandes estábulos, que chegavam e sobravam para empregar a gente da terra, além de uma serralharia e uma carpintaria. Fechou tudo. “É irónico não termos gente, porque nunca existiram tantas estradas e tanta qualidade de vida na região como agora”, desabafa o presidente da junta.
ANQUANTO LHA LHENGUA FUR CANTADA A fuga da população tem sido a maior dor de cabeça de Paulo Meirinhos, membro do grupo de música tradicional Galandum Galundaina, que nos últimos anos se tem dedicado a dar aulas de Música às crianças de Miranda do Douro e a formar novos grupos de cantares, de danças e de tocadores da região. “Conseguimos formar os grupos, porque há interesse por parte dos mais jovens, mas a dificuldade é mantê-los. Acabam todos por se ir embora daqui e temos de começar tudo de novo”, lamenta. A língua mirandesa é uma espécie de chapéu que abriga toda uma cultura específica de Miranda e que se reveste das mais variadas formas – do teatro aos contos, das lendas aos saberes e fazeres. Passando pela música. Os Galandum Galundaina – que já gravaram três discos, um DVD e correm meio mundo a cantar em mirandês – fazem parte de uma nova geração de músicos que têm preservado a língua em forma de cantar.
São três irmãos – Paulo, Alexandre e Manuel Meirinhos – e ainda Paulo Preto. Todos estudaram Música fora da região, mas escolheram regressar às origens. Constroem instrumentos, compõem, recolhem sons tradicionais e dão-lhes uma nova roupagem. Mais moderna. “O que temos ensinado aos mais novos é que, se quisermos preservar a cultura, não podemos parar no tempo. É preciso pegar naquilo que é tradicional e trazê-lo para os novos tempos”, defende Paulo Meirinhos.
O avô dos três irmãos era carpinteiro e tocava num dos muitos grupos de pauliteiros que existiam na região – hoje sobram apenas 40 ou 50. Como herança, deixou aos netos os bombos e as caixas que tocava. E ainda o gosto pela música tradicional. “Que é muito importante na transmissão da língua”, defende Paulo Meirinhos. “Nos nossos concertos há muita gente que não fala mirandês, mas que canta em mirandês”, garante.
Unir a modernidade e a tradição tem sido também a tarefa, nas últimas duas décadas, de Mário Correia – o responsável pelo Centro de Música Tradicional Sons da Terra em Sendim. O edifício, inaugurado recentemente, era a residência de um padre, mas foi reconvertido em espaço cultural com a ajuda de financiamentos comunitários.
Nas prateleiras há centenas de CD e DVD etiquetados e meticulosamente organizados: são o resultado de dez anos de recolha no terreno de cantares e dizeres tradicionais, interpretados pela gente das aldeias de Miranda. Carolice de Mário Correia, que nem sequer é de Trás-os-Montes: os pais eram minhotos, nasceu e cresceu no Porto e formou-se em Economia. Passou pela gestão de grandes empresas, pela Inspecção-Geral de Finanças e pela Inspecção Tributária. Até que um dia decidiu fazer as malas e rumar a Miranda com uma ideia na cabeça: gravar os sons dos gaiteiros tradicionais, que na altura em 1994, estavam praticamente em extinção. O economista foi ficando, estabeleceu-se na vila de Sendim, criou uma editora – a Sons da Terra – e já lançou mais de uma centena de discos. Pelo meio inventou o Festival Intercéltico de Sendim, que está nas rotas internacionais dos festivais de músicas do mundo e que este ano vai para a 14.a edição.
O centro abriga ainda uma biblioteca, que tem servido de apoio a investigadores e estudantes da língua mirandesa – que chegam do mundo inteiro. Já passaram por Sendim estudiosos japoneses, polacos, espanhóis, húngaros, alemães, brasileiros ou austríacos. A maioria da clientela que vai chegando – cerca de 70% dos utilizadores da biblioteca – é estrangeira. E as raras vezes que aparece um português as diferenças são notórias: “Os investigadores portugueses vêm a contar os tostões e praticamente sem material de suporte”, conta Mário Correia.
Outra das jóias do centro é um espólio de mais de 50 mil fotografias antigas que permitiram fixar no tempo rostos de antigos gaiteiros, cantores e pauliteiros. Todos falantes de mirandês. “O monumento mais vivo são as pessoas”, diz Mário Correia. Mas as pessoas são a matéria que mais vai faltando em Miranda do Douro.
in:ionline.pt – por Rosa Ramos
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