OPINIÃO
Falar sobre o meu passado e dos meninos da minha aldeia, a sessenta anos de memória ou mais, para quem se encontra a meio caminho entre os sessenta e os setenta, não é tarefa fácil, exigindo muita concentração e algumas consultas aos meus irmãos vivos, cuja memória é diferente da minha, porventura menos extensa.
Em criança, quando via passar à minha porta uma mulher prenhada e já andava muito devagar ou via movimentos apressados da «Julha» do Fena, parteira da aldeia, por «reforma» da Tia Antónia do Xico M.ª, para alguma casa ou casebre era certo que ia parir. Os garotos iam todos para a rua ou para casa de alguma vizinha, porque aquilo era obra de mulheres. Com bacias de água quente e rezas pelo meio lá vinha a notícia de mais um raparigo e que era beijado por toda a família, como se fosse o «bilhete» para fazer parte do clã.
Nunca me lembro de vir algum médico à aldeia por uma situação mais complicada. Não havia dinheiro para esses luxos e prosmeirices e só de barca lá chegaria. A parteira da aldeia resolvia. Depois, no baptizado, era, geralmente, a parteira que tinha a honra de levar o raparigo à pia.
A morte do Maximino «Piqueno» foi dos episódios mais longínquos que retenho. Era um mendigo, que pernoitava na loije de animais, do Xico M.ª Mateus, na «rua de Baixo» e nas costas da casa da Ferreira e do Júlio, quem sai da Igreja, pela porta principal, à direita.
Curioso é me lembro do episódio em que ele ia a passar à minha porta, numa tarde soalheira de Outono ou Primavera, e eu estava sentado ao fundo das escadas, com as minhas irmãs e a Ana M.ª. O mendigo passou de taleigo das esmolas e haveres às costas e, já uma distância de 10 ou 15 metros, a Ana M.ª dispara a nomeada mais desprezível: - Oh! Maximino Piolhoso! Oh! Maximino Piolhoso!
O mendigo volta-se para traz como uma mola em brasa e ameaçadora. Devo ter ficado sem respiração. Mas, o Maximino Piqueno tinha identificado bem a agressora e como um cão danado atira-se a ela, que sentada estava e sentada ficou e ligou a «sirene» a todo o gás. Enquanto o mendigo raivoso repetia: - toma lá o Maximino Pilhoso!
Foram três ou quatro vezes que a Ana M.ª levou com o saco das esmolas e dos haveres pela cabeça abaixo. O mendigo retira-se e segue o seu caminho. As minhas irmãs disseram-lhe: - foi bem-feita! Não tinhas nada de chamar nomes ao «probe» que ia na vida dele.
Recordo-me da cena, mas não me recordo do seu rosto, tal é o tempo recuado da minha memória. Como me recordo do cair de tarde em que este probe morreu na loije dos machos. Devia ter eu três ou quatro anos, porque só chegava à entrada da porta e recuava para trás com os maiores. Alguns éramos muito pequenos, quando íamos para ver o probe a morrer ou já morto, voltávamos para trás com os maiores, que já recuavam em passo bem ligeiro e amedrontados com o espectro da morte na penumbra da loije.
Assim, a minha memória de criança, recua aos meus três ou quatro anos.
Dos primeiros anos de vida, lembro-me do hábito de aconchegar uma das mãozitas no peito da minha mãe. E a vontade ou aconchego que sentia era tanto que o normal era ter uma mãozita junto ao peito. O meu pai contrapunha que andava lá uma lagartixa e eu, assustado, retirava logo a mão.
Um dia, com o meu pai vencido pelo sono, suplico: - oh Mãe! Deixa-me meter a mão no teu peito, que ele agora está com os «cornos» ferrulhados e não «bê»!
Este meu duro e inocente desejo fazia parte do rol de ditos que a minha Mãe avivava, de quando em vez, com risota.
As crianças na minha aldeia, na década de trinta a cinquenta eram duros para mães e filhos, principalmente se eram os primeiros e não havia pessoa idosa para ficar com eles. As crianças ficavam a dormir no «gaiolo» ou no berço de madeira com algum xaile ou manta velha a tapá-los, enquanto as mães saíam de madrugada para a faina do campo, ganhar a vida.
O terceiro ou quarto filho, com três, quatro ou cinco anos tinha de tomar conta dos mais novos e quando as mães regressavam estava tudo com fome e cheios de gaitar.
Sei que dos momentos mais duros que a minha mãe teve de enfrentar, para além dos tempos de racionamento, durante a Guerra Civil Espanhola e da Segunda Grande Guerra, era quando ia para o campo trabalhar e tinha de deixar os dois primeiros filhos sozinhos em casa. Falava-me na cena dolorosa de eles, crianças de tenra idade (com quatro ou cinco anos já acompanhavam os pais no campo), quando, no Inverno, a minha mãe lhes apagava o lume. Eles desatavam num berreiro, que lhe sangrava a alma e a dor acompanhou-a pela vida fora.
Dizia-me que apagava o lume para evitar que se queimassem ou provocassem algum incêndio.
Depois, deixava-os envoltos num xaile velho, fechados na cozinha, que apenas tinha como luz a que passava pela telha-vã e por duas ou três telhas de vidro.
Eu, como benjamim do rebanho, fui um privilegiado, porque a minha irmã mais velha tomava conta de mim. E até tinham autorização de me trazer para o recanto soalheiro do sol poente, ao fundo das escadas da casa paterna.
Neste tempo de deixar as crianças com um, dois ou três anos fechadas em casa a dormir, por vezes pedia-se a alguma vizinha (os homens não tomavam conta dos raparigos) que não saísse para o campo para lhe ir escutar o raparigo.
Havia todo um ritual com os filhos, mas os trabalhos do campo estavam primeiro, para uma vida pobre e de sobrevivência.
Se a criança era saudável, procurava-se uma data festiva para se baptizar. E ser padrinho era uma honra, uma prova de consideração e de prestígio.
Recordo-me que os meus pais tiveram um afilhado cigano, ao baptizar um filho ao Luís (Cigano) de Miradeses e se o compadre passava pela minha aldeia era convidado para comer à nossa mesa. A última afilhada que teve, a Madalena (?), filha do Serafim e da Filomena, foi criada com leite de ovelha que o meu pai lhe dava diariamente. Eu tive menos sorte, fui criado com leite de cabra, mais fraco, em termos alimentares.
Sobre o meu baptismo, que ocorreu pela festa da padroeira, Santa M.ª Madalena, houve um episódio curioso, por haver dois baptizados a 22 de Julho de 1948: o do Manuel Grilo e o meu. Alguém avisou a minha Mãe, que o último de dois a ir à pia, morria. A minha Mãe nem pensou: Oh, M.ª! Deixa-me baptizar o meu primeiro, porque dizem que quem for de trás morre!
A M.ª (Ruça) Mateus, amiga de uma vida, deu-lhe logo a vez e lá vou eu à Pia na frente. Morreram-lhe, à M.ª Ruça, vários dos nove filhos, mas o Manuel, do meu tempo, cá anda.
A minha mãe tinha perdido o João e essa dor de perder o sexto filho acompanhou-a por toda a vida, tantas foram as vezes que lhe ouvi contar episódios de um irmão que não conheci. Nem podia conhecer, porque só vim ao mundo, para ocupar o lugar dessa perda.
Certo é que a Ruça deixou-me passar à frente no ritual baptismal e Deus abençoou-nos aos dois. E fomos companheiros inseparáveis até ao fim da escola primária, a que se juntou, mais tarde, o César Riça.
De tenra idade, com o tempo bom eu também ia para o campo e gostava de acompanhar o meu Pai. Foi com ele que aprendi a memória da ruralidade. Para um aldeão e agricultor o campo era sinónimo de fartura e de uma vida sã. Havia grão na tulha, batatas no baixo e horta farta. Dos da «Bila» (leia-se, Mirandela), dizia-se, «compravam tudo por reção».
Desde pequeno me apercebi que ser pastor de um rebanho pouco esforço físico exigia e depois quase todo o gado ovino é dócil e os cordeirinhos (cavalinhos, burricos, vitelos e cabritos) eram a minha perdição. O que mais queria ser era pastor. E, com dez ou onze anos, no dia que me deixaram tocar sozinho o rebanho uns dois quilómetros entre o areal do rio da «Azenha do Treboadas» e o nosso cabanal em Chelas, foi um momento de emancipação que nunca mais esqueci.
Conhecia e sabia o nome das ovelhas todas do rebanho. Todo o gado ovino, asinino, muar e bovino tinha nome como as pessoas. Era como se fossem a continuação da família duma casa de lavoura. Numa casa de lavoura dava-se atenção a tudo. Se um animal ficava doente tinha que se lhe fazer um defumadouro ou dar-lhe uma mezinha. Se uma oliveira ou olival ficava com a folha mais «marela» era preciso drenar o terreno e construía-se um cano em pedra.
Alguns dos episódios que vivi em pequeno eram comuns a outras crianças. Quando estava deitado e não via ninguém no quarto, chamava logo: - ó nha Mãe! E repetia até que a minha Mãe me vinha buscar à cama para ir para o escano da lareira. Por vezes era a minha irmã mais velha (a segunda Mãe).
Era comum ir-se espreitar o menino. Isto é, se estava a chorar ou se ainda dormia.
Como vou ser avô, decidi contar aos filhos alguns episódios da minha meninice. Assim, sempre que vinha uma doença mais forte, e a febre me fazia delirar, pedia sempre a minha Mãe para me levar à Bila: - Mãe! Leve-me à Bila ao deitor, que eu morro!
A minha Mãe queria-me como ao sangue que lhe corria nas veias, lá me ia prometendo que se não melhorasse me levaria no dia seguinte. Eu tinha a noção da gravidade e dos delírios que para os suportar estarrincava os dentes e ia repetindo o pedido sem fim.
Depois de tanto pedir lá ia eu «a cabalo» na burra, bem albardada e agasalhado se era tempo frio e de sombreiro se era tempo quente.
Após algum tempo de cama e alguma injecção, lá ia melhorando e não fossem os cuidados da minha Mãe eu teria morrido em criança.
Ainda me recordo que a minha Mãe me lavava numa grande bacia de zinco quando andava muito sujo.
Depois um dia de Outono a minha irmã, Alfredina, lavou-me e vestiu-me o melhor que pode e fui para a escola da D.ª Ângela. Não fazia a mínima ideia que a escola tinha regras. Sentados três por carteira de madeira, peguei-me com o parceiro do lado porque ele quereria o meu lápis ou régua. A D.ª Ângela pôs-nos logo de castigo à frente. Sentindo-me injustiçado, olhei para a porta de saída e vendo-a aberta, já não estava lá dentro. Marcou-me, na escola, para o resto dos dias. Não foi fácil a minha relação com algumas mestras.
Quando descobrimos que tinham um livro com os problemas resolvidos não achávamos correcto que nos batessem se elas, também, não os sabiam solucionar.
Jorge Lage
in:diario.netbila.net
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