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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Ondas de Solidão

Em Trás-os-Montes, uma das regiões mais desertas do país, o vazio da solidão é preenchido pelo som que ecoa dos aparelhos de rádio. A voz do célebre Tio João, que já faz parte de muitas famílias transmontanas, acolhe muitos idosos que vivem isolados nas suas casas. A ‘Avó Laurinda’, prestígio que as suas 92 primaveras alcançaram no programa de rádio, é uma das suas ouvintes mais fiéis.

A “família do Tio João” é, talvez, a maior do país. Com ouvintes nos cantos mais recônditos de Bragança, Mirandela, Miranda do Douro, Valpaços, Chaves ou Vila Real, são os pastores e agricultores quem mais liga. Engane-se quem pensa que, no “Reino Maravilhoso” de Miguel Torga, as tecnologias não têm lugar. Os telefones não cessam e os primeiros toques de chamada antecipam o cantar do galo.

“As portas estão escancaradas para quem quiser entrar”, confessa Nicolau Sernadela, o tão famoso ‘Tio João’. Nesse momento, entra no ar uma voz familiar. Aos mais próximos, conhece-os pelo tom: “é a costureirinha de Vila Real”, sussurra, sorrindo. A senhora, uma das Tias do rebanho, pergunta-lhe pelo filho, que tinha jogo nesse dia, em Vila Flor.

A Avó Laurinda é uma das personagens principais da família, não fosse o peso e a sabedoria que a idade e o título acarretam. “Sou a avó com mais netos do mundo”, sublinha, orgulhosa e com uma luz no olhar. Quem liga para o programa diariamente, escassas vezes se esquece de lhe mandar um beijinho (ou dois). “É bom ser tão mimada, mas, às vezes, sinto que não mereço”, assinala, enquanto limpava a toalha de mesa laranja e cabisbaixa.

Aprendeu o ofício de tecedeira com a sua avó, que o queria deixar a uma das duas netas. Natural de Milhão, uma das aldeias do concelho, vive em Bragança desde que se casou, aos 20 anos. “Faz hoje [18 de maio] exatamente 72 anos que me casei”, segreda, vaidosa. Foi a fazer renda, com as mãos rugosas das marcas do tempo, que recebeu os convidados, em casa do Tio João, de quem é vizinha. “Conheço-o desde pequenino”, mas foi apenas quando o seu neto foi trabalhar com ele, na antiga rádio transmontana RBA, que as amizades se travaram com mais afeição. Agora, faz parte da mobília “e não deixo de vir cá ajudar a Leninha [mulher do Nicolau] e o menino”. Como quem conta um segredo, diminuiu o tom de voz e aproximou-se: “sabe uma coisa? Ele pede sempre que ponham um prato a mais na mesa, para mim”, enquanto os seus olhos cantavam.

“Envelhecer é a única forma que se inventou de viver mais anos”, sublinha Nicolau. Por isso, o seu programa, como faz questão de repetir, “é eterno”. “Eu já não sou o Nicolau, sou 24 horas o Tio João”, afirma, com ar de quem se sente feliz pela conquista. Paulo Afonso é jornalista na Rádio Brigantia e considera que o sucesso da rádio “é o facto de ser tão dinâmica”. Além disso, numa sociedade que se diz, cada vez mais desligada dos media, o segredo da reconquista está em “trabalhar a linguagem regional, porque nós falamos de nós para nós”. É isso que, segundo Paulo Afonso, prende os ouvintes: “o segredo é o regional”, assegura, confiante.

Como muitos outros idosos, a Avó Laurinda vive sozinha em casa. O seu marido, irmão do fadista António Alexandre Aleixo, e pai dos seus dois filhos, faleceu com 62 anos. Quando ele foi para o hospital, numa das visitas “pediu um pente”. Como não o tinha consigo, gesticulando com as mãos, imitou o afago do passado no cabelo do marido. “Era muito bonito, sabe?”, reconhece, com lágrimas nos olhos e um sorriso nos lábios, pela recordação da memória. Mas, a “avó com mais netos do mundo” vive uma solidão acompanhada. Depois das suas rezas, quando acorda, sintoniza o rádio no programa do Tio João, que começa às seis da manhã até às dez. “Quando estou sozinha em casa, é uma loucura”, refere, entre gargalhadas sonoras. O seu telefone não para de tocar ou de receber chamadas da sua família transmontana alargada. Ao ritmo de um dos hinos de António Variações, brinca que, em sua casa, “o telefone é que paga”.

O interlocutor responsável por ser a companhia de muitos transmontanos demarca que “a grande vitória é derrotar a solidão”. O objetivo do programa é, sobretudo, “falar e não tanto ouvir”. Enquanto fazia a voz de alguns dos anúncios, que são parte do financiamento da Rádio Brigantia, “a rádio do coração”, esperava a chamada dos “artistas do povo”. Muitas vezes, “ligam para tocar ou cantar e as pessoas gostam”, relata. O Tio Zé Leonardo, natural de Grijó (Macedo), é um deles. Na sua chamada do dia, confessa que “não quer falar com a boca, mas sim com o coração”. Terminou a sua conversa com cumprimentos para a família e um beijinho especial para a Avó Laurinda. Humilde, Nicolau acredita que “o Tio João não sou eu, mas todo o povo da região transmontana”.

A dimensão do programa ultrapassa as barreiras físicas da porta da estação de rádio. Desde que começou, é responsável por organizar passeios a várias regiões do país e visitas ao estrangeiro. Paulo Afonso, que trabalhou na Antena 1, revelou o espanto dos jornalistas, quando lhes “disse que o piquenicão, um dos eventos mais pequenos, chega a juntar quase 3000 pessoas. Isso é o que juntam os concertos deles, que são uma rádio nacional”, acrescenta. A Avó Laurinda também não gosta de ficar em casa. Com eles, já foi a Fátima, a Lisboa, ouvir um espetáculo da Amália Rodrigues, de quem tanto gosta, e até Santiago de Compostela. Uma vez, no Alentejo, ofereceram-lhe laranjas e um convite:

“Um casal disse-me que não tinha conhecido os seus avós, o Tio João dos Santos e a Maria Isabel. E perguntaram:

- A senhora não se importa? Nós também queríamos ser seus netos!”.

Agora, ligam-lhe todos os dias. Mas Laurinda, uma“jovem muito alegre” de olhos verdes cintilantes, tem um desejo: ir à praia, “ficar morena”. Roçando o polegar e o indicador, ri-se e afirma “que a reforma é apertada”, por isso, não consegue ir. A avó, com a sua boa disposição, revela que “o rádio é uma distração”. E não deixa de ouvir os fados, por isso, mostra-se arreliada, porque, no passeio de domingo, vai perder a hora habitual de os ouvir na rádio. “Ainda vou dizer ao Tio João para os pôr a dar, que ele sabe que eu gosto”, ri.

Nicolau recorda que, quando começou, “as pessoas iam ao posto público ligar para nós”. Hoje, com as novas tecnologias, “é uma loucura”. Conta a história de um ouvinte que estava emigrado, como tantos outros portugueses, na Austrália e ligava para o programa, porque sabia que os pais estavam a ouvir. “Um dia, coloquei o filho e a mãe em simultâneo. No final, ele pediu para a mãe lhe abrir a porta”. Todos os que ouviam sentiram a emoção do reencontro. “Essa é a magia da rádio”, assinala, emocionado.

“Os custos do online são reduzidos”, aponta Paulo Afonso, o que fez com que a rádio perdesse prestígio para os anunciantes. Contudo, a Rádio Brigantia mantém ouvintes que casaram com os seus programas. “O sucesso de um programa como o do Nicolau vive da dinâmica que o locutor lhe imprime”, acrescenta. “A magia está em ter aquilo que toca a vida das pessoas”, conta. A avó Laurinda não gosta da televisão, até porque tem “pouco ouvido”. Como vive perto da rua, tinha de a ligar muito alto, e “as pessoas iam pensar que era uma tasca”, ri, sonoramente. O jornalista refere que, hoje em dia, a dificuldade da televisão reside no facto de “as pessoas não se identificarem com ela, pois não obtêm resposta do outro lado”.

A proximidade é a chave para o sucesso. Mesmo com pastoras, como a Tia Palmira, que fazia a renda, enquanto o gado pastoreava, assinala que “é um conforto ouvir o Tio João”. Com a sua voz rouca e brincalhona a Avó Laurinda, relata, com o dedo indicador em riste, que já lhe disseram “que era mais falada que o primeiro-ministro”. Apesar de ter “medo de cair”, não deixa de dançar, “que é a melhor fisioterapia”. Sentada na cadeira, mas mexendo os braços ao ritmo da sua canção, “é sem vassoura e sem nada, quando estou sozinha em casa”. Os seus olhos verdes reluzem em conluio com a alegria que sente e Laurinda não para de mexer.

Digitalis

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