Nesta quinta-feira, um outro Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, faz parte da meia centena de grandes figuras políticas que se juntam em Jerusalém para, em vésperas dos 75 anos da libertação de Auschwitz, recordarem o Holocausto e denunciar o antissemitismo. Estão lá o russo Vladimir Putin, o francês Emmanuel Macron, também Felipe VI de Espanha e o príncipe Carlos de Inglaterra, ainda Mike Pence, o vice-presidente de Donald Trump. E, claro, o presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, que, tal como a chanceler Angela Merkel, tem sido digno representante de uma tradição democrática de assunção das responsabilidades do nazismo e de denúncia de quaisquer revivalismos dessa doutrina, seja em casa seja no estrangeiro. Merkel, que há um mês visitou o campo de extermínio de Auschwitz pela primeira vez, não teve dúvidas em relembrar as culpas dos alemães nem de assumir a vergonha pelo ali sucedido.
Morreram seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Não foram as únicas vítimas, mas foram, enquanto povo, o alvo eleito por Adolf Hitler. Um dia, ao ler a biografia que Edgar Morin escreveu sobre o seu pai Vidal, percebi a diferença de nível entre a Solução Final e os pogroms e perseguições que durante séculos os judeus sofreram na Europa: Vidal Nahoum, sefardita nascido em Salonica nos tempos do Império Otomano e imigrante em França, julgou que bastava pendurar um crucifixo na parede da sala para se livrar do ódio aos judeus. Desta vez, os perseguidores visavam todo o chamado Povo Eleito, praticasse ou não a religião. Eram muito mais científicos do que alguma vez foram os inquisidores, mesmo os espanhóis.
Tal como Portugal, séculos antes, a Alemanha ficou a perder tremendamente com a perseguição aos judeus: Basta lembrar que Albert Einstein morreu americano. Nós portugueses podemos lembrar o médico João Rodrigues, nascido em Castelo Branco e que morreu em Salonica, famoso em toda a Europa como Amato Lusitano, ou a lisboeta Gracia Mendes, que como Gracia Nasi se refugiou entre os turcos e foi banqueira dos sultões mas também de reis cristãos. E dessa diáspora judaica portuguesa resultaram também, ao longo das gerações, nomes ilustres como o holandês Bento Espinosa ou Elias Canetti, nascido na Bulgária numa família que falava ladino e que, não por acaso, deu o título de Auto-da-Fé a um romance, recorrendo a uma das poucas expressões portuguesas que se impôs em várias línguas, tamanha a barbaridade que descreve. Também podia falar de Emma Lazarus, a poetisa que escreveu o soneto que no pedestal da Estátua da Liberdade dá as boas-vindas aos que escolheram a América como destino, ou de Benjamin Cardozo, que foi juiz do Supremo Tribunal dos Estados Unidos.
Um dia, em entrevista ao rabino Shlomo Pereira, professor de economia na América, este descreveu-me a Península Ibérica do século XV como o coração intelectual do mundo judaico da época. E destacou entre os judeus portugueses de então Isaac Abravanel, filósofo e estadista, figura de grande destaque na corte de Afonso V e que se refugiou em Espanha após a ascensão ao trono de D. João II, que o perseguiu não por razões religiosas mas por ligação aos duques de Bragança, seus rivais. Ora, não será mera coincidência que 1400 tenha sido o século em que se preparam as Descobertas, com os povos ibéricos como pioneiros. E o rabino relembrou-me que a consequência maior da cegueira religiosa dos Reis Católicos e do seu genro português foi o imenso capital humano que se ofereceu às potências rivais, sobretudo a Holanda: "Portugal, ao expulsar os judeus, deu mundos ao mundo. E ficou a perder."
Foi um erro e Soares pediu perdão por ele em nome de todos nós. E é interessante que seja consensual que foi um erro (além de uma injustiça e de uma barbaridade) esta expulsão dos judeus. Não foi o único caso de zelo religioso na nossa história, basta pensar no desaparecimento total dos mouriscos ou, já no século XIX, a perseguição aos protestantes na Madeira, levando à emigração maciça de milhares de portugueses para as Caraíbas, entre eles os antepassados de Sam Mendes, o realizador que volta a estar entre os favoritos para os Óscares. Mas existe entre os portugueses a ideia de que com essa grande expulsão, a dos judeus, e com a perseguição sistemática aos cristãos-novos, começou a decadência nacional. Perdeu-se demasiada gente, ainda por cima gente educada, ligada às ciências, muitos sábios.
O antissemitismo parece hoje ausente de Portugal. Mesmo o regime salazarista soube, nessa matéria, manter as distâncias em relação a uma Alemanha nazi que chegou a ter admiradores por cá. Na pior das hipóteses, pode dizer-se que Oliveira Salazar era ambivalente, pois se por um lado era amigo de Moisés Amzalak, chefe da comunidade israelita portuguesa, por outro permitiu decisões dramáticas para os judeus em fuga do nazismo, como o caso de um comboio com refugiados, o qual foi mandado para trás ao chegar à nossa fronteira, ou as indicações a Aristides de Sousa Mendes para recusar vistos enquanto cônsul em Bordéus. Com todos os condicionalismos políticos, o país acabou mesmo assim por acolher dezenas de milhares de judeus, e os que ficaram depois da guerra terminar juntaram à comunidade o elemento ashkenazi, uma corrente judaica mais ligada à Europa Oriental, enquanto os sefarditas vão buscar a sua designação a Sefarad, o nome hebraico para a Península Ibérica (e também título de um recente filme sobre o capitão Barros Bastos, que ajuda a fundar já no século XX a comunidade israelita no Porto e traz os marranos de Belmonte de volta ao judaísmo - assisti à estreia em Lisboa e vi como choravam os descendentes do capitão, cuja vida foi também uma de perseguição pelo salazarismo). Cada vez mais a história dos judeus em Portugal tem vindo a ser contada, com grande mérito de Esther Mucznik, de origens polacas, cuja família se deixou seduzir por um país que já no passado deslumbrara os judeus - "nunca vi em toda a minha vida uma cidade tão bonita, tão estudiosa e tão bondosa como Lisboa", escreveu um dos seis rabinos que constam no livro Vozes Judaicas de Portugal, editado em 2018, livro extraordinário de Shlomo Pereira e de Eli Rosenfeld, um judeu americano.
Com os incidentes antissemitas em crescendo na Europa e também nos Estados Unidos, desde a vandalização de cemitérios até ataques a tiro a escolas judaicas e sinagogas, a cerimónia de hoje em Jerusalém ganha uma enorme atualidade. Claro que tem havido denúncias de aproveitamento político, sobretudo da parte de Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelita que busca a sua reeleição dia 2 de março, nas terceiras legislativas no espaço de um ano, que pretendem romper o impasse entre partidos de esquerda e de direita, laicos e religiosos, até judeus e árabes (um quinto dos oito milhões de israelitas). Mas o fenómeno do regresso do antissemitismo é tão evidente, com alguns partidos extremistas na Europa a não esconderem o seu neonazismo, que a justificação para este Fórum Mundial sobre o Holocausto é evidente e Portugal faz muito bem em juntar-se. Mesmo em países onde são numerosos, como os Estados Unidos, o Reino Unido ou a França, os judeus sentem medo. E as ameaças não vêm apenas dos inimigos do passado. Ainda na quarta-feira o presidente Macron, tendo a seu lado o homólogo israelita Reuven Rivlin, afirmou que o antissionismo, no sentido de recusa da existência do Estado de Israel, é antissemitismo. O que não significa que Israel não possa ser criticado, até porque o efeito de choque da sua criação em 1948, na sequência do Holocausto e graças a uma decisão da ONU, ainda existe, seja sob a forma da falta de um Estado para os palestinianos em Gaza e na Cisjordânia seja pelo desaparecimento das comunidades judaicas do mundo árabe, restando hoje poucos, quase só em Marrocos e na Tunísia, a ponto de no Egito uma sinagoga ser reconstruída em Alexandria pelo governo e menos de uma dúzia de judeus estarem presentes, quando na cidade na década de 1940 eram cerca de 40 mil.
Marcelo Rebelo de Sousa deverá nos próximos tempos voltar a Israel. Está prevista uma praça Aristides de Sousa Mendes em Jerusalém, um reconhecimento mais ao diplomata que desobedeceu às ordens de Salazar e salvou milhares de pessoas com a atribuição sem parar de vistos para Portugal, país neutral. Sousa Mendes não é o único português no Jardim dos Justos, local onde Israel homenageia aqueles que salvaram judeus do Holocausto. Estão lá outro diplomata, Carlos Sampaio Garrido, embaixador na Hungria, José Brito Mendes, um emigrante português que salvou uma órfã em França, e o padre Joaquim Carreira, que protegeu judeus em Roma durante a ocupação nazi entre 1943 e 1944.
Perante os outros presidentes, também perante os primeiros-ministros e as cabeças coroadas, o Chefe de Estado pode estar orgulhoso do nosso Aristides, mas também da política portuguesa (partilhada com Espanha) de oferecer a nacionalidade aos descendentes dos judeus expulsos. Já foram atribuídas mais de mil e sabe-se que quase 50 mil pessoas, pelo mundo fora, estão interessadas. Depois do simbólico pedido de desculpas de Soares há já 30 anos é mais uma forma, e bem mais efetiva, de nos reconciliarmos com os judeus, todos eles, mas sobretudo com os Amatos Lusitanos que perdemos e que Marcelo Rebelo de Sousa, numa visita à Sinagoga de Lisboa logo no início do mandato, sublinhou que "mantiveram acesa a esperança do regresso a terras lusas, esperança essa que foi passando de geração em geração".
Leonídio Paulo Ferreira
Toda a Europa ficou mais pobre com a perseguição aos judeus, quer no aspeto económico, científico, cultural, social. Alguns reis portugueses, ainda os aplidaram de "nossos Judeus". O seu saber e dinheiro ajudaram nas viagens dos descobrimentos. Padre António Vieira dizia: "de nada vos vale queimar um judeu, porque das suas cinzas, ressurgirão muitos…"Felizmente que tudo mudou com o encontro de Culturas. Oxalá não volte o pesadelo...
ResponderEliminar