Foto: Município de Vila Flor |
Depois há o cemitério, esse último reduto e guardião de memórias, mas quando abandonado um local, abandonamos também o culto dos mortos. E a pouco e pouco também as lembranças desses homens e mulheres de ontem. Morremos. É assim que se morre. É assim que “desnascemos”, é assim que agonizamos na lembrança dos vindouros e que finalmente findamos.
Hoje estou aqui perante casas que já não o são. Um moinho derruído, sem nada, um engenho já podre. Apeteceu-me vir aqui para imaginar, para ver as ruas com gentes desenhadas na loucura desta perseguição que faço ao passado. Não conheço ninguém, nunca conheci ninguém e já não há quem se lembre de quem aqui tenha vivido.
Mas posso imaginar as pessoas, observá-las, ouvi-las, ver aquele grupo de crianças que brinca à sombra do castanheiro; o homem que passa de enxada ao ombro. E de repente os sons, todos os sons montesinos que aprendi a reconhecer como meus e da minha gente. E todos aqui estão, como desabrochados de um filme antigo mixado com o choro de crianças, o balir de ovelhas e o latir de cães cansados da fome dos homens. Até quase respondi ao simpático “boa tarde” daquela mulher que passou com o rosto granjeado a sol e geada.
O silêncio entranha-se-me no corpo, encharca-me os poros do cérebro. São agora cinco horas da tarde. Ecoa por todo o lado este silêncio medonho, em sereno conflito com os debilíssimos gemidos que brotam de entre os derrubes das pedras onde sucumbe o passado. Esta aldeia teve tanta vida, tanta gente e hoje é isto: silêncio, arqueologia!
Vim aqui porque gosto de ler. Sempre os livros. Sempre os livros a determinar esta minha banal e insignificante existência. Os livros, esses “malditos objetos” que não me deixam aquietar o pensamento. Vim aqui porque precisei de assemelhar. Precisei de comparar a minha imaginação, a realidade destas ruínas, com a imaginação e a realidade vertida no magnífico livro de Julio Llammazares, onde se fala de extinção, de esvaziamento, de abandono, de finitude.
“A Chuva Amarela” é já um livro antigo que estava ancorado na fila das intenções de leitura que tenho para fazer. Finalmente deitei-lhe mão e logo ao fim das duas primeiras páginas o monólogo do último habitante de um povoado abandonado do Pirineu aragonês prendeu-me a atenção. Também ele, esse tal último habitante, agora aqui está, em Gavião*, mas com o nome de José.
José olha-me daquela porta entreaberta, com os pés assentes no derrube do telhado que aconchegou o seu lar. José fala-me da solidão que lhe impuseram, fala-me do abandono a que o submeteram. Desta aldeia, José foi o último a partir. Há sempre um último a partir. Resistiu. Resistiu o quanto pôde e já sem sequer poder continuou a resistir. Também quase enlouqueceu com o silêncio sepulcral a que o degredaram nos últimos anos de vida. José fala-me agora da solidão que está em toda a parte desta região e que da região apenas mantém a prosápia do seu nome. Fala-me desta solidão de gente que impregna as aldeias, as casas, as palavras, as árvores, o sol e as próprias sombras.
Em “A Chuva amarela” José não fala só de “Ainielle”, fala também de nós, de Gavião, de Trás-os-Montes.
Por isso vim até aqui. Vim até aqui para confrontar, para sentir, para escrever. E enquanto o sol abandona o rosto deformado da aldeia, as sombras vão lambendo lentamente Gavião. Depois, a pouco e pouco, surge o anoitecer. E agora, uma espécie de chuva amarela caí-me asperamente na alma, pesadamente na alma, como gritos derradeiros em ecos de desassossegar.
*Gavião é uma aldeia abandonada do concelho de Vila Flor, distrito de Bragança
António Luís Pereira
Arqueólogo/Historiador de profissão. Desenvolve a sua atividade no âmbito da investigação, gestão e preservação do Património Cultural. É autor de publicações de divulgação e de publicações com carácter científico. Divulgador. Exerce regularmente, por complemento da sua ação cultural, a atividade da escrita jornalística.
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