Número total de visualizações do Blogue

Pesquisar neste blogue

Aderir a este Blogue

Sobre o Blogue

SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Guerra Junqueiro: "Os animais agradecidos"

 Um rei, que viajava nos seus estados, encontrou uma vez um homem a quem perguntou como se chamava, de onde era, e que ofício tinha. Este respondeu:

- Senhor: eu sou um desgraçado, um miserável; nasci no vosso reino, e chamo-me Ingratidão.

- Se pudesse contar com a tua fidelidade, disse o rei, tomava-te ao meu serviço.

O nosso homem prometeu ser fiel, e o rei ordenou-lhe que o seguisse. Desde que chegaram a palácio, deu tais provas de habilidade, mostrou-se tão esperto e tão solícito, que o rei afeiçoou-se-lhe de tal modo, que o nomeou seu intendente, confiando-lhe a administração da sua casa. Deslumbrado por uma fortuna tão rápida, o seu orgulho desde então não conheceu limites; maltratava os inferiores, e não tinha compaixão dos desventurados.

Ora, na vizinhança do palácio havia uma floresta cheia de animais selvagens e perigosíssimos. O intendente mandou aí fazer por toda a parte covas profundas, cobertas com folhas, de modo que as feras, caindo dentro, pudessem ser agarradas. Um dia que o intendente atravessava a floresta, ia tão absorvido pelos seus pensamentos orgulhosos, que se precipitou ele mesmo dentro de uma das covas.

Passado um instante, caiu um leão dentro do mesmo poço; caiu depois um lobo e em seguida uma enorme serpente, de aspecto horroroso. O governador, ao ver-se em tão extraordinária companhia, ficou tão horrorizado, que lhe embranqueceram os cabelos; e toda a esperança de salvação lhe parecia inteiramente perdida, porque por mais que gritasse, ninguém o vinha socorrer.

Esqueceu-nos dizer que havia na cidade um homem extremamente pobre, chamado Antônio, que todos os dias ia rachar lenha à floresta, para ganhar o pão necessário à sua mulher e aos seus filhos. Antônio também lá foi nesse dia, como de costume, e pôs-se a trabalhar não longe da cova em que caíra o intendente, cujos gritos de aflição não tardou a ouvir. O pobre rachador aproximou-se e perguntou, quem era que estava ali.

- Sou o governador do palácio do rei, e, se me tirares daqui, prometo encher-te de riquezas; estou em companhia de um leão, de um lobo e de uma enorme serpente.

- Eu, respondeu o lenhador, sou um miserável jornaleiro, não tendo para sustentar a minha família, mais que o produto do meu trabalho; bastava um dia perdido para me causar um grande desarranjo; vê lá pois, se cumpres a tua promessa?

O intendente continuou:

- Pela fé que devo a Deus e a el-rei nosso senhor, juro-te que cumprirei a minha palavra.

Confiado nisto o rachador de lenha foi à cidade, e voltou com uma corda muito comprida, que deixou correr dentro do abismo. O leão atirou-se a ela, e suspendeu-se com uma tal energia que o lenheiro julgava que era o intendente.

Quando chegou acima, o leão agradeceu ao seu salvador com a maior amabilidade, e foi-se embora à procura de jantar, porque tinha fome.

Antônio deitou outra vez a corda ao fundo do poço, e, julgando tirar o governador, enganou-se, porque era o lobo; à terceira vez subiu a serpente; foi necessário fazer uma quarta tentativa, para sair o governador. Este não perdeu tempo em agradecimentos, e partiu a correr para o palácio. O jornaleiro voltou para casa, e contou à mulher tudo o que se tinha passado, não lhe esquecendo, é claro, as brilhantes promessas do intendente. No dia seguinte logo pela manhã, foi o pobre homem bater à porta do palácio. O porteiro perguntou-lhe o que queria.

- Faça-me o favor, respondeu o rachador de dizer a s.ex.ª o intendente que o homem com quem ele esteve ontem na floresta lhe deseja falar.

O porteiro foi levar o recado, mas o intendente zangou-se, e exclamou:

- Vai dizer a esse homem, que eu não vi ninguém na floresta; que se ponha a andar, porque o não conheço.

O porteiro voltou, e repetiu o que o governador lhe tinha dito.

O pobre homem tornou para casa mui descorçoado, e contou à mulher a odiosa perfídia de que tinha sido vítima.

A mulher disse-lhe:

- Tem paciência; o sr. intendente estava hoje decerto muito ocupado, e foi talvez por isso que te não pôde receber.

Estas palavras sossegaram o rachador que outra vez nutriu esperanças.

Na manhã seguinte, ainda muito cedo, bateu de novo à porta do palácio. Mas o intendente mandou-lhe dizer em termos ásperos, que não tornasse ali a aparecer, quando não ver-se-ia obrigado a empregar meios violentos. A mulher ainda desta vez procurou consolá-lo:

- Experimenta terceira e ultima vez, disse-lhe ela, talvez Deus o inspire melhor. E se assim não for, ainda que te custe, não penses mais nisso.

No dia seguinte o bom do homem voltou à carga; e tendo o porteiro consentido à força de súplicas em anunciá-lo ainda ao governador, este encolerizado atirou-se praguejando fora do quarto, e crivou o pobre homem de uma tal chuva de bengaladas, que o deixou quase morto no meio do chão. A mulher dele, sabendo disto, correu imediatamente com um burro, pôs-lhe em cima o marido, e levou-o para casa: As feridas levaram-lhe seis meses a curar, estando sempre de cama, vendo-se obrigado a contrair dividas para pagar ao medico. Quando finalmente tinha recobrado algumas forças, voltou ao bosque segundo o costume para fazer alguma lenha. Apenas lá chegou, apareceu-lhe o leão, que ele tinha ajudado a sair do poço. O leão conduzia um burro diante de si, e este burro estava carregado de sacos cheios de preciosidades. O leão, vendo Antônio, parou e inclinou-se diante dele com um ar de respeitoso agradecimento. Depois disto continuou o seu caminho, fazendo-lhe sinal de que ficasse com o jumento. Antônio doido de alegria levou o animal para casa, abriu os sacos, e viu que estava rico.

No dia seguinte, voltando de novo à floresta, apareceu-lhe o lobo, que o ajudou no seu trabalho, querendo provar-lhe desta maneira o quanto lhe era agradecido. Quando a tarefa estava concluída, e tinha carregado o burro com a lenha, viu vir ao seu encontro a serpente, que ele tinha tirado do fojo, e que trazia na ponta da língua uma pedra preciosa, em que brilhavam três cores, o branco, o preto e o vermelho. Quando a serpente chegou ao pé do rachador de lenha, deixou cair a pedra junto dele, e depois dando um salto desapareceu no matagal. Antônio levantou a pedra, examinou-a por todos os lados, para ver que propriedade ou virtude ela teria. Para isto foi ter com um velho, afamado pela sua habilidade em decifrar o que diziam os astros. Este, assim que viu a pedra, ofereceu-lhe por ela uma grande quantia. Antônio respondeu-lhe que a não queria vender, mas simplesmente saber se seria boa.

O velho respondeu:

- São três as virtudes desta pedra: abundância continua, alegria imperturbável e luz sem trevas. Se alguém t'a comprar por menos dinheiro do que vale, tornará imediatamente para a tua mão.

Antônio ficou muito contente com esta resposta, agradeceu ao velho da ciência maravilhosa, e correu a contar à mulher a sua felicidade. Como se imagina, graças à virtude da famosa pedra, não lhe faltaram Daí em diante, nem honras nem riquezas.

Tendo chegado aos ouvidos do rei a notícia destas prosperidades, mandou chamar Antônio, e mostrou-lhe desejos de adquirir o precioso talismã.

Antônio, vendo que semelhante desejo era uma ordem, respondeu:

- Devo prevenir a vossa majestade de que, se esta pedra me não for paga pelo que vale, tornará ela mesma para o meu poder.

- Hei de pagar-te bem, disse o rei.

E mandou-lhe dar trinta mil libras em ouro. No dia seguinte de manhã, Antônio achou outra vez a pedra em cima da mesa; e a mulher sabendo isto disse-lhe:

- Torna a levá-la ao rei imediatamente; não vá ele persuadir-se que lh'a furtaste.

O nosso homem seguiu este conselho, e, quando chegou à presença de sua majestade, pediu-lhe que lhe dissesse aonde tinha guardado a pedra preciosa.

- Mandei-a meter com todo o cuidado dentro de um cofre de ferro, fechado com sete chaves, disse o rei.

Antônio mostrou-lhe então a jóia preciosa, e o rei ficou extraordinariamente espantado, e quis saber como ele tinha adquirido semelhante tesouro.

Antônio contou-lhe tudo que tinha havido, a ingratidão do governador e o reconhecimento dos animais ferozes. O rei indignado, mandou chamar o seu intendente, e disse-lhe:

- Homem perverso, com justo motivo te puseram o nome de Ingratidão, porque és mais falso e mais pérfido que os animais ferozes, e pagaste com o mal o bem que te fizeram. Mas justiça será feita. Dou a Antônio as tuas honras e os teus bens, e a ti, hoje mesmo, o castigo de seres enforcado.

Admiraram todos a sentença do rei, e Antônio desempenhou as suas altas funções com tanta sabedoria e bondade, que depois da morte do rei foi escolhido para o substituir, e reinou pacificamente durante longos anos gloriosos.

Fonte:
Guerra Junqueiro: "Contos para a Infância", Publicado originalmente em 1877.

Sem comentários:

Enviar um comentário