O que não significa, como fica dito acima, que não haja poetas que, falando de noite e de amor, mantêm em relação a eles uma puritana reserva.
É o caso de Soares de Passos, poeta a que ainda voltaremos, no tão decantado — e cantado, acompanhado ao piano — “Noivado do sepulcro”, poema narrativo que começa justamente dando logo no primeiro decassílabo as coordenadas temporais e espaciais da história que vai contar: «Vai alta a lua! na mansão da morte». Ou seja: é noite no cemitério. Nessa balada seminal, que tanto epigonismo fez pingar em álbuns de senhoras aliteratadas e tanta lágrima fez derramar a meninas tísicas, o poeta faz da noite do cemitério o cenário para umas núpcias que não foi possível celebrar em vida. De forma que:
É o caso de Soares de Passos, poeta a que ainda voltaremos, no tão decantado — e cantado, acompanhado ao piano — “Noivado do sepulcro”, poema narrativo que começa justamente dando logo no primeiro decassílabo as coordenadas temporais e espaciais da história que vai contar: «Vai alta a lua! na mansão da morte». Ou seja: é noite no cemitério. Nessa balada seminal, que tanto epigonismo fez pingar em álbuns de senhoras aliteratadas e tanta lágrima fez derramar a meninas tísicas, o poeta faz da noite do cemitério o cenário para umas núpcias que não foi possível celebrar em vida. De forma que:
«[...] mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.»
Presume-se, naturalmente que a união “post mortem” dos dois noivos tenha sido casta. De qualquer modo, há a meio do poema uma alusão de passagem ao «infernal prazer» que se presume condenável.
O alemão Novalis, cinquenta anos antes, não tinha ido tão longe na exploração macabra da noite. O romantismo ainda não degenerara e ainda se continha dentro de limites apesar de tudo razoáveis. Os melancólicos “Hinos à Noite” — hoje de leitura quase tão estimulante como um cronicão medieval, mas que na altura (princípios do século XIX) fizeram a reputação do poeta — são a sua obra definitiva. Uma vez mais, estes hinos são o oposto da visão da noite como alcoviteira. A noite é antes uma figuração da morte. De resto, foi a morte da sua amada noiva, Sofia, com apenas quinze anos de idade, que lhe inspirou os hinos. A noite de Novalis é uma porta mística por onde se entra à presença de Deus. Já não está associada a Eros mas a Thanatos — o que para alguns não será tão contraditório assim. Pois não há quem, com boas razões, afirme que o momento supremo do êxtase amoroso é uma benévola prefiguração da agonia final? Novalis, contudo, não foi por esses caminhos, que então ainda estavam por percorrer. Para ele, a noite é um pouco como para Fernando Pessoa, aliás Álvaro de Campos, numa conhecida ode: «enfermeira antiquíssima», que pode arrancar o poeta «do solo de angústia e de inutilidade». Ou seja: consoladora dos aflitos.
Como se vê, a cada um sua noite.
A idade traz consigo consequências que nunca deploraremos suficientemente. Diz um prolóquio galego que também se vai ouvindo, por osmose, na fronteira norte de Trás-os-Montes: ‘Quando o nariz pinga, a pila minga e a carvalheira zoa, a vida não está boa’. Bem decerto que não está. O nariz a pingar e a pila a mingar são desgraçados ónus da velhice. A carvalheira a zoar é senha de Inverno. Velhice e Inverno: qual deles mais triste e castrador?
É pois natural que na idade em que esses malefícios se instalam, a visão epicurista da noite que começámos por rastrear esmoreça, e a gente comece a olhar a noite com outros olhos que não os da carnalidade ou da libertinagem. A noite deixa de ter a mais-valia erótica? Pois busquem-se sucedâneos, novos encantos. Haverá mil e uma maneiras de o alcançar. Um modo possível — pista que quero agora seguir — é concentrarmo-nos na noite já não como cenário de coisa nenhuma, mas na noite em si mesma. Melhor: o céu da noite como espectáculo fascinante que é. Aliás, não é preciso ter-se chegado a velho para a fruir assim: basta que tenhamos dentro de nós uma centelha de inquietude estética.
Claro que ver a noite dessa forma é prazer que a cidade nos tolhe. É preciso ir ao campo para o gozar em pleno. E se vale a pena! Um céu constelado de estrelas é tão belo e inspirador como o binómio de Newton ou a Vénus de Milo, com a vantagem de não ser produzido artificialmente. Numa noite calma de Verão, vibrante da estridulação de insectos, ver aqueles milhares de lumieiras lucilantes, aquele passadiço de poalha prateada da estrada de Santiago, o clarão da lua cheia rompendo de trás da serra — e considerar o assustador mistério de tudo aquilo...
Gozei muitas vezes, e ainda gozo quando se me proporciona, esse espectáculo da noite do campo. Metido num apartamento em Vila Real, cidade sobre a qual a EDP derrama generosamente torrentes de watts em cada rua, iluminando-lhe a giorno as noites, quando me chego, noite cerrada, à varanda e olho o céu — que vejo eu? A Lua, se acaso é noite dela; talvez Vénus ou uma qualquer estrela de maior fulgor — e disse. O resto é escuridão, porque o clarão da luz artificial ao rés da Terra ofusca os astros lá em cima, transformando o firmamento numa cúpula negra. A falar verdade, à míngua de contemplar esse céu assim baço e inexpressivo, acabamos por esquecer onde fica a Ursa Maior, a Ursa Menor, o W da Cassiopeia e todas essas constelações do hemisfério norte que aprendemos a reconhecer na 4.ª classe, no tempo em que havia 4.ª classe e em que na 4.ª classe se aprendia a reconhecer coisas destas.
Soares de Passos — sempre esse poeta fatal! — dá-nos uma ideia do que é um céu autêntico, coalhado de estrelas, num poema que também ficou famoso, intitulado “O Firmamento”. As imagens usadas são de luz e brilho — uma luz e um brilho que hoje a cidade eclipsou —, como seria de esperar: «mil letras de fulgor intenso» (os astros); «vós sois as lâmpadas sagradas» (ainda os astros); «sois as faíscas do seu carro ardente» (sempre os astros); e por aí adiante.
Pois sim. Mas isso era no século XIX, em que a iluminação a gás não fazia esmaecer os luzeiros do céu, mesmo numa cidade como o Porto, onde Soares de Passos nasceu, viveu e morreu. Hoje, para ver um céu estrelado a sério, aquilo a que Eça, na “Cidade e as Serras”, chamou «o sumptuoso céu de Verão», um espectáculo que verdadeiramente nos belisque a costela estética e desperte inquietações místicas, é preciso ir procurá-lo no campo. Como digo, já nem em Vila Real — e mais é um arremedo de cidade — há esse céu.
Havia-o em Tormes, na noite em que Jacinto e o inseparável Zé Fernandes lá chegaram com a alma saturada de civilização: «Na Cidade (como notou Jacinto) nunca se olham, nem lembram os astros ¬— por causa dos candeeiros de gás ou dos globos de electricidade que os ofuscam.»
Assim como o havia na aldeia de Grijó, Macedo de Cavaleiros, ainda há meia dúzia de anos — é um modo de dizer. E era com intenso prazer que, aí por 1980, mais coisa menos coisa, eu me reencontrava repetidamente com a noite do campo.
Antes de ir para a cama, chegava-me à varanda, como faço tantas vezes em Vila Real, para uma derradeira olhadela sobre a vizinhança, a certificar-me de que não há novidade de maior. As lâmpadas da iluminação pública de Grijó, além de se apagarem cedo, por essa meia-noite, não iam então muito além de candeias, no que toca a débito de lúmenes. (Hoje já não é bem assim: as aldeias, à compita com as cidades, exigem uma noite bem iluminada a electricidade. Mas na altura ainda era.) E então que via eu no céu? Lúcida, recortada com firmeza no abismo profundo do firmamento, a Ursa Maior rebrilhava como na minha infância meio rústica. (Ursa é designação de astrónomos; o povo, que faz questão de gerar as suas próprias metáforas, centrando-se nos dados concretos do seu mundo, e prefere dizer ‘o Carro’ ou ‘o Engaço’.) No trapézio que faz o corpo dessa constelação, localizava as assim-chamadas guardas (pelo menos foi deste modo que aprendi a chamar-lhes na tal 4.ª classe de meados do século XX), calculava a distância entre elas e media cinco vezes essa distância pelo céu fora. Louvado seja Deus! Lá estava ela, a Estrela Polar, na ponta da cauda da Ursa Menor, na sua missão nunca abandonada de nos mostrar o norte!
Lá estava ela... Esperaria eu porventura que ela não estivesse no seu posto? Ora, o poder de destruição do homem ainda não chega, felizmente, tão longe. A Terra vai ele destruindo com despreocupada inconsciência. Mas as estrelas, por enquanto, tó ruça! Lá chegaremos... De qualquer forma, reconhecer as constelações era como encontrar velhos companheiros de infância, dos tempos em que o céu da noite tinha um brilho e uma profundidade que as luzes do progresso depois lhe confiscaram. E então lá ia eu à procura delas, e via as Plêiades (setestrelo, na voz do povo), as Três-Marias de Oríon. Via também o passadiço luminoso da Estrada de Santiago — uma estrada que teremos de calcorrear depois de mortos, se não tivermos ido em vida à cidade galega do apóstolo — e uma poalha finíssima de estrelas tremeluzindo a milhares de anos-luz. Tudo coisas que na cidade já me não era possível ver e de que tinha genuínas saudades. Isso, casado com o silêncio magnífico da serra, em que até o ladrar de algum cão estrenoitado parecia um fragmento do mesmo silêncio, enchia-me a alma de paz e espiritualidade. E o sono que depois dormia não tinha preço. Qual Xanax nem meio Xanax!
Entendia então melhor os arroubos cósmico-místicos de Soares de Passos:
«Glória a Deus! Eis aberto o livro imenso,
O livro do infinito,
Onde em mil letras de fulgor intenso
Seu nome adoro escrito.»
E ficava uma boa meia hora a remoer o poema, em que o amável poeta tísico cisma e interroga:
«Estrelas, que brilhais nessas moradas,
Quais são os vossos destinos!»
E depois, descendo da imensidão do céu à pequenez da terra:
«Terra, globo que geras nas entranhas
Meu ser, o ser humano,
Que és tu com teus vulcões, tuas montanhas,
E com teu vasto oceano?
Tu és um grão de areia arrebatado
Por esse imenso turbilhão dos mundos [...].»
E depois ainda, alargando a passada e saltando da pequenez da terra para a mesquinhez do homem:
«E tu, homem, que és tu, ente mesquinho
Que soberbo te elevas,
[...] Tu vives um instante, e de teus ossos
Só restam cinzas que sacode o vento.»
Tudo bem dentro dos cânones ultra-românticos. Mas mesmo assim desinquietador.
Percorria, na noite profundíssima dos campos de Grijó, a via-sacra angustiada de Soares de Passos, levando-lhe se calhar vantagem, por estar alumiado — e, se calhar, por isso mesmo mais angustiado — por teorias que ele ainda não podia conhecer, o Big Bang e essas coisas todas que ainda não decidi se me aproximam ou me afastam de um hipotético relojoeiro celeste.
Em especial, aquela comparação da Terra com um «grão de areia arrebatado/ Por esse imenso turbilhão dos mundos», cavava abismos na minha noite. O mistério do infinito espacial trazia agarrado a si, como se fosse a outra face da moeda, o mistério do infinito temporal, a eternidade, coisa que nunca pude entender — nem de resto é para entender, a não ser vagamente, através de alguma formulação poética, como uma de Hendrik van Loon que li já não sei onde e me deu no goto. Na verdade, a poesia com as suas intuições sempre explicou esses mistérios melhor do que a filosofia. Sabedor disso, em vez de lucubrações filosóficas que o não levariam senão à desistência ou ao desespero, o escritor, holandês de nascimento e naturalizado americano, prefere uma imagem de serena simplicidade: «Longe, ao Norte, numa terra chamada Svithjod, existe um rochedo. Tem cem milhas de altura e cem milhas de largura. Uma vez em cada mil anos, vem um passarinho afiar o bico na pedra. Quando esta tiver sido totalmente desgastada, então terá passado um só dia da eternidade.»
Pondo de lado sáfaros conceitos abstractos, Hendrik van Loon serve-se da sugestiva e frágil imagem do passarinho que afia o bico no formidável rochedo de Svithjod. É evidente que, ainda assim, não logrou fazer-nos apreender a eternidade, mas apenas um período de tempo muito, muito longo — que não é o mesmo que a eternidade. Mas também não vejo outra maneira de nos aproximarmos do infinito, senão reduzi-lo a um finito muito grande, susceptível de ser, com mais ou menos esforço, apreendido pelo nosso espírito.
E, olhando sempre o céu da noite, também entendia melhor o impulso lírico do povo, que o faz cantar coisas cristalinas como esta:
Setestrelo rondador,
Contrário a quem namora,
Recolhe-te, ó Setestrelo,
Que eu quero rondar agora.
E não é que, chegados aqui, estamos de novo a pontos de encarar a noite no seu ancestral papel de alcoviteira? Pois que diferença ética — à falta de melhor palavra — encontramos entre esta redondilha e a quadra acima citada do soneto de Bocage? Que se pede à frouxa lumieira do Setestrelo senão que, retirando-se, fomente a escuridão «amiga de Amor»?
Caramba, foi uma reviravolta de 360 graus!
Foto da internet
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