Faço ideia do espanto — do espanto e do terror — com que os primeiros hominídeos viam todos os dias o sol sumir-se para lá dos montes e o denso mistério da escuridão cobrir a terra, avolumando as muitas ameaças a que mesmo durante o dia estavam sujeitos: os desconfortos da doença, as demasias do clima, as garras dos predadores. Espanto e terror devem ter sido as primeiras emoções provocadas pelo fenómeno noite.
Depois, como tudo, as coisas foram evoluindo naturalmente. A noite passou a ser vista como algo natural, inquietante mas passageiro, em saudável alternância com o dia. A vida estruturou-se em função dessa alternância: passou a haver coisas que se fazem de dia e coisas que se fazem de noite. E acabou por se chegar à conclusão de que a noite, não deixando de ser um reino perigoso, tinha também as suas consolações: aproximava as carnes e incitava ao comércio sexual. Daí nasceu e se consolidou um dos mais populares entendimentos da noite, que ainda hoje se mantém popular e cada vez com mais vigor: a noite como cenário privilegiado para amores. Não andará longe desse sentido a própria palavra ‘noite’, em frases como ‘frequentar a noite’ ou ‘ser um homem (ou uma mulher) da noite’. Ou no título ‘Guerra aberta no submundo da noite’, que leio agora mesmo no meu semanário de estimação.
Entretanto, a literatura fez-se uma grande caixa-de-ressonância desse entendimento, porque ninguém como os escritores para explorar as potencialidades eróticas seja daquilo que for. Bem, nem todos, claro: há sempre aqueles para quem o amor físico é delituoso por definição e uma simples gota de sémen bastaria para poluir um parágrafo, um capítulo, um livro inteiro. Esses ou calam a noite, ou vêem-na com olhos mais castos, ou, enfim, procuram nela outra espécie de atractivos. Já lá iremos. O certo é que a literatura de uma forma geral tem-se prestado, melhor do que todas as outras artes e à compita com o cinema, a fazer essa leitura, digamos, sensual da noite. É grande o número de textos literários em que ela aparece associada ao amor. Melhor: ao pretexto ou ocasião para o amor. Digamos que a noite se tornou o outro nome do amor. Envolvendo-nos em escuridão propícia e criando uma atmosfera de segredo e cumplicidade, uma espécie de bem-vinda cegueira, que convida à intimidade, ao afrouxamento de interditos e à transgressão, ela constitui o ambiente por excelência para os devaneios amorosos. Também os do coração, cândidos, platónicos, naturalmente. Mas muito mais os que entendem com a carne — e quanto mais transgressivos, melhor.
Vêm-me estas considerações à ideia quando leio, na Casa Grande de Romarigães, de mestre Aquilino, esta exclamação jucunda: «Ah, que melhor alcaiota que a noite!» E a seguir: «Todos os demónios da sensualidade saíram à uma dos seus tugúrios, do céu, do inferno, da alma e da carne, e reforçaram o seu poder abismal.»
Vamos por partes. Uma alcaiota é, dito por outras palavras, uma alcoviteira, ou seja, a utilíssima figura tutelar da grande crónica portuguesa dos amores furtivos. Gil Vicente imortalizou esta figura na Brízida Vaz, do Auto da Barca do Inferno. Brízida Vaz, lembram-se?, era aquela que «dava as moças aos molhos» e «criava as meninas/ para os cónegos da Sé». Aquela que se vangloria da sua eficiência apologética desta forma irrespondível: «Santa Úrsula não converteu/ tantas cachopas como eu». Aquela, enfim, que levava na bagagem com que contava embarcar na barca da Glória, por seus merecimentos e seus serviços aos reverendos cónegos da Sé, entre outros apetrechos do ofício, «seiscentos virgos postiços/ e três arcas de feitiços».
Na linguagem incomparável e cheia de propriedade da minha terra, chama-se a uma tal mulher — porque esse é um ofício exclusivamente feminino — uma chegadeira. Pode parecer que o termo ‘chegadeira’ traz consigo uma certa carga humorística ou punitiva (ridendo...), mas não estou certo de que assim seja. Ele é usado com total naturalidade. Vem de ‘chegar’, que, entre outros significados que o verbo partilha com o português normal, significa também, inocentemente, ‘levar a fêmea (geralmente falando da vaca) à cobrição’. ‘É preciso chegar a vaca ao touro’, diz-se com toda a candura deste mundo quando a vaca dá sinais de estar no ponto. No mundo rural, onde os humanos e os irracionais compartilham a condição animal em toda a sua extensão, tanto se chega uma vaca ao touro como uma rapariga ao seu pretendente. Tudo é chegar. Daí o termo chegadeira.
Voltando à alcaiota. Aquela exclamação serve ao romancista — homem com alguma reputação de sanguíneo e vulnerável ao «poder abismal» da noite e aos tais «demónios da sensualidade» que o reforçam — para justificar a rendição da arisca Dionísia às arremetidas de Telmo. Ela capitula porque é de noite, deitando a perder todas as resistências diurnas que até ali opusera aos avanços do primo. Dia versus noite, isto é, virtude versus pecado.
Podia pensar-se que este modo de ver a noite é coisa de hoje, destes tempos em que um erotismo assanhado e desinibido é por assim dizer uma das bandeiras que mais alto drapejam nos mastros do “Zeitgeist”. Mas não. Vejamos, ao desenfado, alguns exemplos do passado que me acodem ao teclado do computador.
Desde logo, o do notório “connoisseur” Públio Ovídio Nasão. Na “Arte de Amar”, um manual de sensualidade para uso deles e também delas, espécie de versão “light” do “Kamasutra” indiano, menos cru do que este (mas ainda assim apimentadinho q. b.) e adaptado às margens do Tibre, ensina (na tradução de Carlos Ascenso André): «De noite, ficam disfarçados os defeitos e desculpam-se todos os vícios, / essa é a hora que torna formosa qualquer uma.» Verdade seja dita, contudo, que Ovídio parece perfilhar uma concepção diurna do amor, em que o sentido da visão, contemplando as belezas do corpo e suas manobras, comunga do festim geral dos sentidos.
Também o puritano John Milton — esse mesmo que nos deixou o severo “Paraíso Perdido” —, numa mascarada com o título de “Comus”, faz a personagem epónima perguntar à virtuosa dama que tenta seduzir: “What hath night to do with sleep?” (Que tem a noite a ver com o sono?), subentendendo-se que a noite foi feita para coisas mais urgentes ou mais interessantes do que dormir. Para Comus, o libertino, a noite é o domínio por excelência do amor, subalternizando o sono em detrimento das capitosas manobras de alcova. Equivale esta pergunta, mais coisa menos coisa, à citação supra de Aquilino Ribeiro.
Bocage, talvez o mais erotizado (pelo menos da fama não se livra) dos nossos poetas anteriores ao século XX, começa um soneto com a quadra:
Noite, amiga de Amor, calada, escura,
Eia! Engrossa os teus véus, os teus horrores,
Enquanto vou gozar de mil favores
Sobre o doce teatro da ternura.
O que pede o poeta à noite, «amiga de Amor»? Que seja propícia e encubra com a sua escuridão uma surtida amorosa, em que espera «gozar de mil favores». Isto é: que seja sua alcoviteira. O «doce teatro da ternura» é, com toda a probabilidade, uma outra maneira de dizer cama.
Lembro-me ainda de ter lido em Keats, poeta romântico inglês em cujos versos ronda muitas vezes uma certa sensualidade difusa, o seguinte passo: “[...] upon St. Agnes eve,/ Young virgins might have visions of delight,/ And soft adorings from their loves receive/ Upon the honey’d middle of the night [...]”. Aqui, anda o cerne da noite associado ao mel... “Quod erat demonstrandum.”
Depois, como tudo, as coisas foram evoluindo naturalmente. A noite passou a ser vista como algo natural, inquietante mas passageiro, em saudável alternância com o dia. A vida estruturou-se em função dessa alternância: passou a haver coisas que se fazem de dia e coisas que se fazem de noite. E acabou por se chegar à conclusão de que a noite, não deixando de ser um reino perigoso, tinha também as suas consolações: aproximava as carnes e incitava ao comércio sexual. Daí nasceu e se consolidou um dos mais populares entendimentos da noite, que ainda hoje se mantém popular e cada vez com mais vigor: a noite como cenário privilegiado para amores. Não andará longe desse sentido a própria palavra ‘noite’, em frases como ‘frequentar a noite’ ou ‘ser um homem (ou uma mulher) da noite’. Ou no título ‘Guerra aberta no submundo da noite’, que leio agora mesmo no meu semanário de estimação.
Entretanto, a literatura fez-se uma grande caixa-de-ressonância desse entendimento, porque ninguém como os escritores para explorar as potencialidades eróticas seja daquilo que for. Bem, nem todos, claro: há sempre aqueles para quem o amor físico é delituoso por definição e uma simples gota de sémen bastaria para poluir um parágrafo, um capítulo, um livro inteiro. Esses ou calam a noite, ou vêem-na com olhos mais castos, ou, enfim, procuram nela outra espécie de atractivos. Já lá iremos. O certo é que a literatura de uma forma geral tem-se prestado, melhor do que todas as outras artes e à compita com o cinema, a fazer essa leitura, digamos, sensual da noite. É grande o número de textos literários em que ela aparece associada ao amor. Melhor: ao pretexto ou ocasião para o amor. Digamos que a noite se tornou o outro nome do amor. Envolvendo-nos em escuridão propícia e criando uma atmosfera de segredo e cumplicidade, uma espécie de bem-vinda cegueira, que convida à intimidade, ao afrouxamento de interditos e à transgressão, ela constitui o ambiente por excelência para os devaneios amorosos. Também os do coração, cândidos, platónicos, naturalmente. Mas muito mais os que entendem com a carne — e quanto mais transgressivos, melhor.
Vêm-me estas considerações à ideia quando leio, na Casa Grande de Romarigães, de mestre Aquilino, esta exclamação jucunda: «Ah, que melhor alcaiota que a noite!» E a seguir: «Todos os demónios da sensualidade saíram à uma dos seus tugúrios, do céu, do inferno, da alma e da carne, e reforçaram o seu poder abismal.»
Vamos por partes. Uma alcaiota é, dito por outras palavras, uma alcoviteira, ou seja, a utilíssima figura tutelar da grande crónica portuguesa dos amores furtivos. Gil Vicente imortalizou esta figura na Brízida Vaz, do Auto da Barca do Inferno. Brízida Vaz, lembram-se?, era aquela que «dava as moças aos molhos» e «criava as meninas/ para os cónegos da Sé». Aquela que se vangloria da sua eficiência apologética desta forma irrespondível: «Santa Úrsula não converteu/ tantas cachopas como eu». Aquela, enfim, que levava na bagagem com que contava embarcar na barca da Glória, por seus merecimentos e seus serviços aos reverendos cónegos da Sé, entre outros apetrechos do ofício, «seiscentos virgos postiços/ e três arcas de feitiços».
Na linguagem incomparável e cheia de propriedade da minha terra, chama-se a uma tal mulher — porque esse é um ofício exclusivamente feminino — uma chegadeira. Pode parecer que o termo ‘chegadeira’ traz consigo uma certa carga humorística ou punitiva (ridendo...), mas não estou certo de que assim seja. Ele é usado com total naturalidade. Vem de ‘chegar’, que, entre outros significados que o verbo partilha com o português normal, significa também, inocentemente, ‘levar a fêmea (geralmente falando da vaca) à cobrição’. ‘É preciso chegar a vaca ao touro’, diz-se com toda a candura deste mundo quando a vaca dá sinais de estar no ponto. No mundo rural, onde os humanos e os irracionais compartilham a condição animal em toda a sua extensão, tanto se chega uma vaca ao touro como uma rapariga ao seu pretendente. Tudo é chegar. Daí o termo chegadeira.
Voltando à alcaiota. Aquela exclamação serve ao romancista — homem com alguma reputação de sanguíneo e vulnerável ao «poder abismal» da noite e aos tais «demónios da sensualidade» que o reforçam — para justificar a rendição da arisca Dionísia às arremetidas de Telmo. Ela capitula porque é de noite, deitando a perder todas as resistências diurnas que até ali opusera aos avanços do primo. Dia versus noite, isto é, virtude versus pecado.
Podia pensar-se que este modo de ver a noite é coisa de hoje, destes tempos em que um erotismo assanhado e desinibido é por assim dizer uma das bandeiras que mais alto drapejam nos mastros do “Zeitgeist”. Mas não. Vejamos, ao desenfado, alguns exemplos do passado que me acodem ao teclado do computador.
Desde logo, o do notório “connoisseur” Públio Ovídio Nasão. Na “Arte de Amar”, um manual de sensualidade para uso deles e também delas, espécie de versão “light” do “Kamasutra” indiano, menos cru do que este (mas ainda assim apimentadinho q. b.) e adaptado às margens do Tibre, ensina (na tradução de Carlos Ascenso André): «De noite, ficam disfarçados os defeitos e desculpam-se todos os vícios, / essa é a hora que torna formosa qualquer uma.» Verdade seja dita, contudo, que Ovídio parece perfilhar uma concepção diurna do amor, em que o sentido da visão, contemplando as belezas do corpo e suas manobras, comunga do festim geral dos sentidos.
Também o puritano John Milton — esse mesmo que nos deixou o severo “Paraíso Perdido” —, numa mascarada com o título de “Comus”, faz a personagem epónima perguntar à virtuosa dama que tenta seduzir: “What hath night to do with sleep?” (Que tem a noite a ver com o sono?), subentendendo-se que a noite foi feita para coisas mais urgentes ou mais interessantes do que dormir. Para Comus, o libertino, a noite é o domínio por excelência do amor, subalternizando o sono em detrimento das capitosas manobras de alcova. Equivale esta pergunta, mais coisa menos coisa, à citação supra de Aquilino Ribeiro.
Bocage, talvez o mais erotizado (pelo menos da fama não se livra) dos nossos poetas anteriores ao século XX, começa um soneto com a quadra:
Noite, amiga de Amor, calada, escura,
Eia! Engrossa os teus véus, os teus horrores,
Enquanto vou gozar de mil favores
Sobre o doce teatro da ternura.
O que pede o poeta à noite, «amiga de Amor»? Que seja propícia e encubra com a sua escuridão uma surtida amorosa, em que espera «gozar de mil favores». Isto é: que seja sua alcoviteira. O «doce teatro da ternura» é, com toda a probabilidade, uma outra maneira de dizer cama.
Lembro-me ainda de ter lido em Keats, poeta romântico inglês em cujos versos ronda muitas vezes uma certa sensualidade difusa, o seguinte passo: “[...] upon St. Agnes eve,/ Young virgins might have visions of delight,/ And soft adorings from their loves receive/ Upon the honey’d middle of the night [...]”. Aqui, anda o cerne da noite associado ao mel... “Quod erat demonstrandum.”
(Continua.)
Foto da internet
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