quinta-feira, 30 de junho de 2022

PÁSSAROS 1. Ressurreição?

 Vamos agora falar um pouco de pássaros, valeu? Pássaros, essas criaturinhas graciosas que quem diria que, a fazer fé nas proposições de Charles Darwin, são os descendentes bem-sucedidos dos feios répteis antediluvianos...

PÁSSAROS
1. Ressurreição?

 Já numa crónica que ficou para trás dei um lamiré sobre este tema, mas é bom que o desenvolva um pouco mais. 
 A palavra ‘pássaros’ tem que se lhe diga. Além do bem conhecido sentido geral, tinha no meu Trás-os-Montes um sentido restritivo. Pássaros, neste sentido restritivo, vinham a ser só aquelas aves de arribação, pequenos dentirrostros estouvados, que apareciam sobre o fim do Verão para a safra das amoras e da mosquitada, e que, por volta do dia de São Mateus, que cai a 21 de Setembro, pressentindo e temendo o frio que aí vinha, batiam asas e voltavam às terras de origem. ‘Pelo São Mateus, deixa os pássaros, que não são teus’, dizia o povo, sinalizando dessa forma o termo da época da caça com pescoceiras e costelas, que faziam neles grandes razias. Eram sobretudo tralhões, mas também mosqueiros, pardinhas, tanjasnos, papa-moscas e mais umas quantas espécies, que chegavam, engordavam e, se tivessem sorte, tornavam a partir rumo ao país de origem. Mas a verdade é que grande número deles encontrava cá a morte, esganados entre os arames das armadilhas que o rapazio armava pelas bordas dos lameiros fora, cevadas com formigas-de-asa, a que também se chamava aludas. 
 O povo engendrou mesmo uma conta curiosa a esse respeito. Segundo ele, nas suas migrações desencontradas, as andorinhas que partem encontram-se no caminho com os tralhões que chegam. E perguntam-lhes: ‘Onde ides, tralhões loucos, que ides muitos e voltais poucos?’ Ao que os tralhões respondem: ‘Donde vindes, andorinhas putas, que fostes poucas e voltais muitas?’ Humor retintamente trasmontano, como se vê. Há um certo desacerto quanto à época de migração — partida e chegada — das espécies envolvidas na conta, mas o que interessa é a realidade das matanças fini-estivais de tralhões e companhia, e da protecção quase supersticiosa de que as andorinhas gozam junto do povo trasmontano.
 Uma palavra também quanto às aludas. O nome faz-me irresistivelmente pensar que se trate de um arcaísmo, um desses particípios passados em ‘–udo’, como teúdo e manteúdo. Conheçuda cousa seja a quantos esta carta virem é fórmula muito encontradiça em forais e outros diplomas da Idade Média. A ter bom pé esta minha suposição, aluda vem a ser o mesmo que alada, isto é, dotada de asas. Um velho particípio passado que entretanto se substantivou. E na verdade é isso que as aludas são: formigas com asas. Bastante maiores do que as suas irmãs pedestres, saem em chusmas dos formigueiros logo após as primeiras chuvas de Setembro. Os rapazes apanhavam quantas podiam e metiam-nas em pequenas cabaças, juntamente com os cangos de uva com que as alimentavam, e cevavam com elas as pescoceiras, presas com crinas de cavalo, asno ou muar, à falta de melhor atilho. E aquele ébano movediço e luzidio era uma tentação fatal para os tais pássaros de que vimos falando. 
 Mas não é desses pássaros em sentido restrito que quero falar. Aliás, se falasse deles, seria para lamentar que praticamente já não os haja. Lá foram, embrulhados em pesticidas, para a região de onde se não volta mais. Quero falar, sim, de aves em geral — incluindo algumas que, à luz da taxonomia zoológica, a rigor nem pássaros são. 
 A rarefacção do mundo alado foi coisa que me inquietou durante muito tempo. Quando em férias calhava dar um passeio pelo campo — onde estavam os pássaros que na minha juventude tinha visto, bastos e conspícuos? A falta que eles faziam, com os seus gorjeios e bulício, acabrunhava-me e punha-me a antecipar com pessimismo o dia não muito longínquo em que terão desaparecido de todo.
 Porém, num domingo de Pascoela de já não me lembra bem que ano, mas que seria por finais do século passado — domingo que esteve radioso e convidava a ares amplos e andurriais da serra — descobri com surpresa e prazer, ao longo dos caminhos de Grijó, o que me pareceu ser a ressurreição da passarada. 
 Esta palavra ressurreição nada tem de intenção sacrílega, descansem os guardiões do templo. Mas quem já viu, como eu vi, aqueles mesmos campos silenciosos de morte e o céu vazio de voos, não pode deixar de exultar como se exulta diante duma verdadeira ressurreição de coisa boa que julgávamos extinta, seja ela o Filho de Deus, sejam os pássaros criaturas do mesmo Deus. Na verdade, a aleluia triunfal daquele domingo de Pascoela, nas faldas da serra de Bornes, tinha qualquer coisa do júbilo duma ressurreição, e sacrílego e blasfemo será aquele que a não entender assim. Ressurreição, sim senhor: das aves, que eu já dava por perdidas e incapazes de renascer das próprias cinzas, ao invés da sua irmã mitológica, a fénix. Parecia uma orquestra enlouquecida, em que cada executante se perdesse nas voltas da sua partitura, indiferente à partitura dos demais, uma babel de trinados que, no próprio caos, era bela, sabia bem e tranquilizava. A passarada estava de volta.
 O cuco ouvia-se ao longe, prognosticando maldosamente anos e anos de solteira a uma qualquer rapariga casadoira e insofrida que andasse entretida nas fainas da horta e caísse na asneira de lhe perguntar. Num galho de oliveira, poiso muito a seu gosto, o milharengo desfiava a sua cantilena sempre igual, muito enredada e baça, lembrando velha dona a dobar infindavelmente as suas meadas. Adiante, era um verdelhão que lançava da frança mais alta de uma árvore o seu tchrrr tu tu tu ocioso, seu modo de referir que o dia não estava mau de todo e que não valia a pena um sujeito andar com trabalhos escusados, antes apetecia catar-se do piolhinho nas raçadas de sol. O pachacim, ave mais irrequieta, acrobata sem igual (fora no trepar a festo nos troncos, que nisso quem dá cartas é a engatadeira), lá andava pendurado pelas galhas de pernas para o ar, bicando o seu insecto e tocando pratos: tchim-tchim-tchim. Do coruto de um choupo, o chinchalarraiz atirava o seu canto arrogante e cacarejado, como de perdiz rouca de tanto dar à taramela, a que outro respondia à distância. Perdido algures do interior de uma balsa, uma avezinha maviosa que não identifico nem sequer consigo enxergar, por muito que escogite, fazia malabarismos prodigiosos com a voz cristalina, toda em glissandos e trémulos, escala acima, escala abaixo, um autêntico exercício de virtuosismo. Enfim, de quando em quando, um melro saía impetuoso duma balça, a rir-se-nos na cara à gargalhada, o grande meliante, e a espargir salpicos de tinta-da-china sobre o verde dos lameiros.
 Todo um catálogo de pequenos cantores de que já esqueci os nomes, se é que algum dia os soube todos — corpos minúsculos onde parece milagre caberem vozes tão sonoras — davam graças pelo dia magnífico que estava e iam demarcando os seus domínios a malabarismos de garganta. 
 Todos estes bicos, pensei, cantavam de amor. Era altura de ajustar contas com o Eros dos bosques, de convir em acasalamentos, de fazer por perpetuar os genes. Os ornitólogos gostam de falar em territorialidade. Assim como se cada pássaro cantasse para demarcar os seus domínios, em jeito de quem diz: ‘Atenção, amigos, esta nesguinha de terra fui eu que a vi primeiro. Todas as suas ervas e bicharada miúda, todas as sementinhas que ficaram sáfaras do Inverno que passou, todos os galhos virados ao sol, tudo o que nela existe é cá do rapaz. Quem não quiser complicações nem rixas, que passe de largo’. Menos poético, sem dúvida. Mas no fundo vai dar tudo ao mesmo. O que as aves querem é afirmar-se e, afirmando-se, caçar na esparrela companheira com que, às urgências do sangue, cumpram o que o Criador lhes marcou no dia quinto da génesis: crescei e multiplicai-vos. É o que eles fazem, laboriosos, obedientes e canoros, com licença dos senhores ornitólogos.
 Eu, por mim, estava pasmado. Satisfeitíssimo, mas pasmado. Segundo todas as aparências, a passarada voltara, quando já todos limpávamos a garganta do pigarro para lhe cantar os responsos. Será que ela criou resistências aos pesticidas e ressurge gloriosa dos prenúncios de morte? Ou, melhor ainda, será que o senhor homem engendrou pesticidas menos danosos para a cadeia alimentar? Oxalá. Tanto ecologista a malhar em ferro frio, tanto cientista a provar por A+B a futura solidão do homem à face do planeta caso não arrepie caminho, tanto sinal dado pela mãe Terra de cansaço e rotura, bem pode ser que comecem enfim a dar os seus frutos no chão asséptico da consciência dos homens da bata branca.
 Já o disse muitas vezes, e repito-o hoje: o meu coração está com os ecologistas. Eles são hoje uma referência ética fundamental. E, por sorte, são abelhudos, isto é, metem o nariz em tudo, desmascaram, incomodam, são puros e duros, incorruptíveis, insubornáveis. Eles têm verdadeiramente um espírito de missão duma nobreza indiscutível: conservar a Terra habitável para os nossos filhos e netos e netos dos netos.
 Claro que os governantes não gostam nada deles, olham-nos de soslaio, como quem sabe que traz à perna um vigilante tenaz, atento e sempre disposto a denunciar os agravos feitos ao equilíbrio ambiental em nome de uma coisa a que chamam eufemisticamente progresso. E então, desesperados, dizem os governantes que os ecologistas são fundamentalistas radicais e que as coisas não são bem como eles as pintam. Pode calhar que tenham a sua migalhinha de razão. Mas, exagero por exagero, não serão eles também, governantes, excessivos? Onde não chegaria a delapidação dos recursos naturais e o atropelo do ambiente se ao exagero desenvolvimentista dos governantes se não opusesse o exagero moderador dos ecologistas? É possivelmente da dialética destes dois exageros que resulta o precário equilíbrio possível. Abençoados ecologistas, portanto. O meu coração está com eles.
 Veio tudo isto a propósito dos pássaros da serra de Bornes. Imaginem: quando saí de casa, ia a ruminar uma crónica sobre Grijó, e acabei por escrever de coisas que estão na última linha das preocupações da gente de Grijó, que anda nas hortas absorvida pelos trabalhos da rega e da reposição do cebolinho. Mas o Leitor compreenderá: as ideias são como as cerejas, puxa-se uma, saem meia dúzia agarradas pelo pé, que remédio senão comê-las. 
 Cerejas que, a propósito, não tarda que estejam maduras nos cerdeiros bravos dos caminhos da serra e sejam pretexto para novos e mais vibrantes hossanas da passarada contente. Quem me dera estar então por perto, só para ouvir!

(Continua.)

A M Pires Cabral

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