sexta-feira, 24 de junho de 2022

FÉRIAS DE 1989

 1. Duas inquietações

 Escapo-me com a família da pequena fornalha em que Vila Real está transformada neste Agosto de 1989 — fornalha de calor e fornalha de bulício com sotaque francês — e vimos refugiar-nos em Grijó, na esperança de quinze ou vinte dias de sossego total.
 Durante a viagem de cem quilómetros, confesso que trazia, a envenenar-me as expectativas, duas inquietações incómodas e persistentes que não lograva sacudir de todo — tal qual como não consigo sacudir as moscas que, no preciso instante em que escrevo isto (no dito sossego total de Grijó... que ironia!) me apoquentam e aferroam com sanha homicida.
 Começarei por falar do primeiro desses receios. 
 O qual vinha a ser o de que um senhor emigrante qualquer tivesse resolvido presentear a igreja da aldeia com aquilo que para ele seria a última palavra do progresso e do bom gosto. Ou seja: um desses relógios canoros que de quarto em quarto de hora entoam uns compassos do “Avé de Fátima” e logo após debitam uma tremenda bimbalhada de sinos, amplificado tudo electronicamente. Como em Grijó moro a dez passos da igreja, está bom de ver onde ia parar o sossego que almejava. Era melhor nem desfazer as malas e regressar de pronto à fornalha de Vila Real, onde, por Deus querer, moro longe da igreja de Nossa Senhora da Conceição, que oiço dizer que também padece dum relógio assim.
 É que, decerto por brincadeira, alguém me tinha dito que isso acontecera efectivamente. Não estranhei. Acontece muitas vezes. Os senhores emigrantes, uma vez alcançada a prosperidade que já dá para uns gestos de beneficência (!), gostam de embasbacar desse modo os aldeões que por cá se deixaram ficar e por isso nunca passaram da cepa torta. Para não ir mais longe, aqui ao lado de Grijó, a povoação de Vale Benfeito sofre de uma calamidade dessas, e eu bem escuto, por noite velha, se calha estar acordado e o vento de feição, os peregrinos compassos do “Avé, avé, avé, Maria” a reboar toda a santa noite pelas quebradas da serra, levantando ecos e assarapantando os animais monteses. 
Como os senhores emigrantes não fazem tenção de serem incomodados por tais relógios lá nas franças e araganças onde se respeita o descanso dos outros, e como, depois de adquirido o carro turbo e construída a “maison” tipo chalé suíço, já lhe vão sobrando uns francos — toca a fazer jus à gratidão do povo, pondo-o “à la page” com esse primor da indústria relojoeira. E como, não raro, encontram um pároco perfeitamente sintonizado com esta peregrina ideia de progresso e borrifando-se para o direito dos fregueses ao sossego nocturno, aí temos, volta e meia, mais uma povoação mártir dos impulsos filantrópicos dos senhores emigrantes, e mais uns contos de réis a entrarem nos cofres do relojoeiro de Braga que se especializou nesta nova forma de suplício, a pedir meças à aspa e à polé medievais, e “ipso facto” se transformou num autêntico inimigo público, que o Estado devia meter na ordem.
 Vinha eu pois com o coração nas mãos e o credo na boca enquanto à perspectiva de encontrar instalada no campanário da igreja uma tal parvoiçada. É certo que a ideia que faço do Sr. Padre Martins, o bondoso e compreensivo pároco de Grijó, não autorizava muito esses receios, mas nunca se sabe... Mal dei a última curva que me tolhia a visão da igreja, procurei ansiosamente o temido altifalante de corneta. Parece que não havia... Mas ainda assim esquadrinhei bem, descuidando a direcção do carro, com risco de atropelar um pacífico suíno que atravessava a rua — não fosse o marau do altifalante estar por lá dissimulado algures ou tapado pelas belas acácias do adro. Não estava. 
 Por coincidência, e como para me tranquilizar de todo, o velho relógio mecânico da torre deu nesse momento as sete horas — e era a boa voz antiga, pausada, grave e limpa do velho relógio convencional. Da qual voz já tinha aliás dito, em ocasiões anteriores, cobras e lagartos, mas que agora me chegava a parecer cheia de poesia, musicalidade, encanto e bucolismo. O que é o homem! Já dizia o velho Sófocles, se a memória me não trai: «Muitos prodígios há, porém nenhum maior que o homem!»
 Não havia pois a tal temida monstruosidade. Graças a Deus! Saltei agilmente por cima do meu agnosticismo e agradeci ao Senhor, pedindo-lhe de passagem que influísse no ânimo dos senhores emigrantes por forma a que, se algum dia decidirem obsequiar a igreja com alguma benfeitoria sonora, que seja apenas com um órgão que acompanhe o serviço religioso — e jamais com a abominação, o desacato e o mau gosto de um relógio electrónico. Ámen.
 Seja como for, por estas férias creio ter o sossego garantido. Habituado como estou ao velho relógio da torre, já quase não me perturba o sono. O ladrar longínquo de algum cão vigilante também se casa tão perfeitamente com a atmosfera aldeã que mal incomoda. Idem as vozes de galos, galinhas e demais bicharada sonora que tenho por vizinhos.
 Nesta matéria de agressões sonoras, na aldeia, apenas uma coisa me arrepia ainda os nervos: o buzinar frenético e prolongado com que os almocreves do tempo presente — que se fazem transportar já não nos silenciosos machos de outrora, mas em carrinhas desgraçadamente dotadas de buzina — anunciam às donas de casa a sua chegada ao povoado. Ele é o carro do pão, ele é o carro do peixe, ele é o carro dos melões e melancias... Chegam de madrugada ao largo central e desatam a buzinar, a buzinar desalmadamente, quase numa ânsia de sinos a rebate, indiferentes a sono e a doença, indiferentes de resto a tudo que não seja a freima de impingir o seu pão todo fermento, o seu peixe ardido, o seu melão que mais parece pepino. Alguns trazem mesmo amplificação sonora, e regalam o povo com as pachouchadas brejeiras do Quim Barreiros. Estes chatins de agora não fazem a coisa por menos. Ah, que saudades da gaitinha do amolador de tesouras...

* * *
 Agora, Leitor, lhe falarei do segundo receio que transportava comigo, na viagem de Vila Real para Grijó.

 Este segundo receio era o de chegar à aldeia, sedento da viagem, rodar a torneira para um bom copo daquela água que ainda vai sabendo a serra — e água viste-la. Levei toda a santa viagem a parafusar nisto. Nisto e naquela coisa do relógio, alternadamente.
 Quanto à água, tinha a enegrecer-me ainda mais os presságios a experiência de férias em anos anteriores, em que passei uma boa fatia do tempo que podia ter passado a ler, passear ou preguiçar, carreando garrafões de plástico cheios de água, do fontanário público para casa. Por vezes não era só eu: era a família inteira que se entregava de alma e coração a essa ingrata tarefa — se queríamos meia dúzia de litros de água para o banho. E havíamos de lembrar a quem nos visse um carreiro diligente de formigas a acautelar o Inverno.
 Nada, caro Leitor: Grijó sem água perde todo o encanto, torna-se mesmo medonho. Tudo é relativo: a população de Vila Real queixa-se de que, se abre a torneira, sai um líquido acastanhado, a saber e a feder a cloro e a lodo. De facto, a água de Vila Real, neste Verão de 1989, é um pouco uma mistura das duas coisas: lodo e cloro. Mas pelo menos há água na rede. E que consolo não é, senhores, abrir a gente uma torneira e ver que esta responde, não com um gorgolejar de tripa vazia, que lembra uma gargalhada de escárnio, mas com qualquer coisa parecida, embora remotamente, com água — principalmente quando nos lembramos daqueles para quem (e são talvez milhões, neste país) as torneiras se transformaram em meros ornatos da cozinha e do quarto-de-banho. Dois dias numa terra sem água nos canos, garanto, são o bastante para sobredourar a nossos olhos, pituitárias e papilas gustativas este arremedo de água que as torneiras debitam em Vila Real.
 Rapei pois alguns Agostos de penúria de água, em Grijó. O que mais me exasperava era dizerem-me que todas as manhãs havia muita água na madre.
 – Então, se a há, por que diabo é que a não dão?!... – perguntei eu, exasperado, um dia em que não tinha tido pinga dela na torneira.
 – Eles dar, dão-na. Mas a gente põe-se a regar as hortas e os quintais e gastam-na toda, não chega para as casas – responderam-me.
 E contaram-me como determinada criatura pusera na noite anterior a água a correr para a horta e depois fora à vida, acabando por se esquecer de fechar a mangueira, e a água correra toda a santa noite e provocara mesmo uma pequena inundação nos baixos da casa da dita criatura, e em consequência do descuido faltara a água todo o dia seguinte nos canos da outra gente. E — pasme o Leitor! —a pessoa que isto me referia, o que lamentava não era que toda a aldeia tivesse ficado um dia inteiro sem água por negligência da criatura, mas sim que a inundação lhe tivesse provocado estragos. Isto é: não só absolvia a criatura como lhe lastimava os danos, que aliás foram muito ligeiros.
 Calei-me, esclarecido, fulminando porém no meu íntimo pragas soezes contra esta gente que tanto mostra desprezar a higiene pessoal e prezar em contrapartida os pepinos, os tomates, os repolhos, o cebolinho e outras estimáveis hortaliças que, por me disputarem a gota de água, em certas horas chego a considerar inimigos figadais.
 Na verdade, é inacreditável a pouca quantidade de água per capita de que esta gente precisa para os compromissos da limpeza da casa, da higiene pessoal e da culinária. Não fiz cálculos apurados, mas da simples observação empírica estou em crer que um único litro de água diário lhes satisfaz todas essas necessidades e, bem aproveitado, poderá mesmo sobrar ainda um fundinho, que despejarão carinhosamente sobre o tabuleiro das alfaces ou das cebolas, ali ao pé da porta. Porque a horta é tudo. Se é dela que a gente come... Que culpa têm eles de que eu, feito bicho presumido da cidade, tenha criado hábitos de asseio que exigem mais de um litro de água por dia?
 Bom, mas o Leitor há-de querer saber em que ficamos. Isto é, se o segundo e não menos pavoroso receio se veio a confirmar ou não. Pois saiba que nem sim nem não. Quer dizer: temos água três vezes por dia, durante algumas horas. Podemos sobreviver com essa “entente cordiale”. É questão de nos organizarmos.
 Chegou-se a esta relativa prosperidade adoptando uma medida drástica, que aliás levantou na aldeia um assanhado coro de protestos: a Junta de Freguesia pôs contadores nas casas e obriga ao pagamento de uma taxa em consumos acima de um mínimo razoável, salvo erro cinco metros cúbicos por mês. Porque até agora, a água era pouca mas gratuita. Por isso as pessoas a malbaratavam sem sobressaltos de consciência nem da costela da poupança. Mas agora, confrontadas com a perspectiva de pagar trezentos ou quatrocentos mil-réis de água ao fim do mês, pensam duas vezes antes de pegarem nas mangueiras e se porem a regar as hortas a rego cheio. Quando acabam de pensar, estão decididas: não regam, que fica caro. Deus Nosso Senhor se há-de lembrar delas, mandando-lhes gratuita a água da chuva. 
 E não é que tem mandado mesmo? Pelo menos duas vezes, desde que cá estamos. Pois olhem que chover duas vezes em pleno Agosto é obra. Não há dúvida: Deus é grande, e a gente de Grijó pouco menor é!
 Vamos agora ao happy end da história. Como um dos períodos em que há água nos canos coincide com a hora do duche, segue-se que ando satisfeito e tenho cantado durante o dito duche mais do que ordinariamente cantaria. Isto deve ser da alegria de ter água para me lavar; mas é também, estou certo, contágio da toutinegra que ouço chilrear ali fora, na ramada.
 Sejamos pois honestos: sem relógio electrónico a massacrar-me noite fora e com água três vezes por dia nas torneiras — o que me falta para a completa beatitude, em terras de Grijó?

(Continua.)

A M Pires Cabral

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