terça-feira, 28 de junho de 2022

Férias de 1989 - 5. Os animais molestos

 Com a aproximação de Setembro, chega ao fim esta temporada de férias em Grijó. Melancolicamente (de uma melancolia que vem de estar no fim este estado de graça que são as férias, mas vem também de qualquer coisa com sabor a fruto sobre-amadurecido que já anda no ar, à boca de Setembro), começamos a arrumar os trapinhos e a juntar a um canto, para não esquecer nada, o garrafão de azeite, o saco de batatas, o cabo de cebolas e os dois ou três melões da horta, na esperança e na dúvida de que venha a caber tudo na bagageira do carro deixando espaço para as malas, malinhas e maletas que também têm de embarcar. Vila Real e o emprego esperam por nós. Vamos, pois, que el-rei manda trabalhar, não manda veranear. O estafermo do rei!
 Sinto que, nestes últimos parágrafos, para que não se pense que tudo foram maravilhas, devo falar das minhas difíceis relações com a bicharada. Os animais, grandes e pequenos, domésticos e bravios, úteis e daninhos, são com efeito comparte essencial da vida rústica. Pois não há casos de porcos, vacas e jumentos que vivem no rés-do-chão e os donos no andar de cima, separados uns dos outros tão somente por um soalho de velhas tábuas mal ajustadas que deixam passar o cheiro a bedum e a estrume? Como ignorar os animais num meio onde eles são tão conspícuos e tão importantes ou mais do que as próprias pessoas? Não acredita o Leitor? Pois digo-lhe que sei de alguns fulanos que, se tiverem a mulher e a vaca doentes ao mesmo tempo, chamam primeiro o veterinário. Já vê.
 Mas, de toda a arca-de-noé da aldeia, falarei aqui apenas dos bichos que me foram molestos, daqueles que fizeram esforços denodados para me arruinarem as férias em Grijó, e às vezes quase o conseguiram.
 Começarei pela Mulata, a cadelinha da tia Micas. Quando a tia Micas nos vinha visitar, trazia com ela a Mulata, aliás uma cachorrinha linda, viva, meiga e brincalhona, felpudinha e negra de azeviche. Simplesmente, enquanto a tia Micas se retirava depois da visita, a Mulata ficava, engodada pelos nossos afagos. E à noite ia empoleirar-se no terraço das traseiras — que fica resvés com a janela do meu quarto —, que escolhera para posto de vigia e donde pela noite fora ladrava e arremetia contra tudo o que mexesse, fosse ele gato, cão ou um simples papel que farfalhasse rua fora tocado pelo vento. Via-se que estava orgulhosa e felicíssima no seu papel de nos garantir um sono tranquilo — ou pelo menos aquilo que ela considerava como tal. Mas nenhum de nós dava o devido valor a esta sentinela importuna, e mais de uma vez tive de me levantar enfurecido, a tropeçar nas coisas, tonto de sono, para a expulsar do terraço. Saía submissa, honra lhe seja feita, e provavelmente a cismar em como é grande a ingratidão dos humanos. Mas na noite seguinte lá estava outra vez a estramontar-nos o sono, o demónio da Mulata!
 As vacas. Oh, as vacas foram outro dos meus pesadelos. Não quando passavam de madrugada, a chocalhar, caminho dos pastos. A essa hora, confesso que até gostava de ouvir aquele som bucólico das campainhas, que, longe de me tirar o sono, parece que mo propiciava. Lembrava-me o chiar dos carros na acarreja do pão, em tempos longínquos de férias em Alvites. Do que eu me queixo em relação aos bons ruminantes (o Leitor mais anojadiço pode, querendo, saltar este parágrafo) é que, desse-lhes lá a vontade onde lhes desse, à minha porta é que vinham depositar a bosta, pausadamente, uma porção aqui, outra porção um metro mais adiante e assim sucessivamente. Cheguei a supor-me vítima duma conjura bovina. Ou de vingança. Porquê à minha porta, santo Deus? Logo eu, que só como um bife quando o rei faz anos? É certo que tomo leite todos os dias, mas isso não deve ser motivo para retaliação por parte das vacas; na verdade, o leite elas até agradecem que lho tirem, quando trazem o amojo cheio a transbordar. Depois dei em pensar que as vacas deviam talvez ser do CDS, pois defronte da casa que pertence ao Professor Adriano Moreira, a bem dizer pegada à minha, nunca vi raças de bosta: limpinho como um salão de baile. Seria então uma provocação política? 
 Mas, de todas as criaturas do reino animal, foram os insectos — os mais mesquinhos de todos! — que mais me fizeram amargar certas horas de Grijó. Começarei pelas moscas, esses imundos porta-micróbios, que dir-se-ia não terem qualquer préstimo senão flagelar-nos e, dessa forma, ajudar a escancarar-nos as portas do céu pela via do martírio. Mas pelos vistos têm préstimo. Leio no Vocabulário português e latino, do Padre Rafael Bluteau, esta coisa espantosa: «Na Medicina servem as moscas de emoliente e resolutivo. Esmagadas, e aplicadas fazem crescer o cabelo; e por destilação se tira delas uma água, boa para as doenças dos olhos.» As moscas, hã? Quem diria? 
 Claro que, por muitos resolutivos e emolientes de que eu algum dia venha a precisar, não será às moscas que recorro. Tão-pouco jamais as esmagarei e empastarei com elas o couro cabeludo, mesmo estando como estou em fase acelerada de perda capilar. Quanto a água destilada de moscas para doenças dos olhos, estamos conversados. Tal é a aversão que dedico a esses infames insectos que nestas férias não perderam a mínima oportunidade de se introduzirem em minha casa e, uma vez instaladas, de exasperarem toda a gente com a sem-cerimónia com que pousavam em nós, na comida e sabe Deus onde mais. Claro que eu matava muitas, com grande furor insecticida, despejando sobre elas rajadas de “spray”, marimbando-me para o facto de estar dessa forma a adelgaçar um pouco mais a camada de ozono. Quer uma pessoa lá saber da camada do ozono, quando tem meia dúzia de moscas a perturbar-lhe a sesta! Mas tanto fazia dizimá-las como não. Diz o povo que ao enterro de cada mosca vêm vinte, e deve ser certo. Vêm vinte — e vêm para ficar. Creio mesmo que alguns funerais terão estado ainda mais concorridos. Foram as moscas a ruína de algumas sonecas pós-prandiais. Excomungadas sejam elas nas parafundas dos infernos, como diz a gente de Grijó!
 Tão molesta quanto a “Musca domestica” é uma certa espécie de mosca campestre, mais pequena e prodigiosamente pegajosa, que vem atraída pelo cheiro do suor e mortifica a gente nos passeios pelo campo. Nós a sacudi-la duma bochecha, e ela, ligeira como o vento, a pousar na outra. Algumas destas moscas, indiferentes ao galhinho de freixo com que as procurávamos enxotar, arruinaram-nos passeios que prometiam ser gloriosos. O inferno as consuma também!
 Finalmente, a senhora melga. Deixássemos a janela aberta ou fechada, era certo e sabido que por essas duas, três da manhã, aparecia ela. Um zumbido fino e uma insuportável comichão entre os dedos da mão, seu cevadouro favorito, eram o seu cartão de visita. Era só uma por noite, e até já lhe chamávamos ‘a melga de serviço’ ou, com uma pontinha de inocente jacobinismo, ‘a melga nossa de cada noite’. Acendíamos a luz, e logo ela se sumia como por encanto. Oh, ninguém faz ideia de como podem ser ardilosas as melgas de Grijó. Por fim, lá se descuidava e pousava à vista: descarregávamos então sobre ela, com sanha não menor do que aquela com que Santiago se atirava aos sarracenos, um golpe de toalha, que a deixava esborrachada na parede, numa amálgama de patas e sangue — o nosso sangue! Mas enquanto a não matássemos, não era possível pregar olho. Às vezes isso demorava eternidades. Foram muitas noites arruinadas a crédito das melgas. Diabos as levem!
 Como vê o Leitor, a zoologia não me foi propícia nestas férias, e fez com que terminasse este escrito, que quisera ameno, a praguejar. A perfeição não existe.
E pronto. É tudo sobre as férias de 1989.

Foto da internet.

A M Pires Cabral

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