Desde o fim de semana passado que devo ter ficado com uma noção um pouco mais aproximada do que devia sentir, por exemplo, um soldado americano isolado do seu pelotão, perdido nas indóceis florestas do Vietnam, naquela guerra sem glória que por lá se andou fazendo nos anos 70. Quero eu dizer que tive uma experiência quase tão traumatizante como a do pobre soldado ianque: estive hora e meia numa discoteca.
A coisa conta-se em poucas linhas. O meu grupo de amigos deliberou que sábado, dia 2 de Julho de 1994 (para que conste), era dia propício para uma sardinhada, e lá fomos nós a caminho de um restaurante de Folhadela, à cata das sardinhas. Que estavam óptimas — mas deviam ser radioactivas, pois geraram em algumas das pessoas do grupo o extraordinário desejo de ir acabar de esmoê-las numa discoteca!
Fui pelos cabelos, porque já me tinha constado que uma discoteca é um lugar de muitos tormentos e perigos — desde logo para os ouvidos, depois para os olhos, e enfim, num crescendo de malefícios, para a própria sanidade mental.
Devo dizer que o local consegue ser ainda mais inóspito do que eu tinha imaginado — e, por Deus querer, imaginação é coisa que não me falta. Tento a descrição: um espaço aberto, hostil, decorado com restos de gruas e guindastes, espaço esse que deve convir manter na obscuridade, porque mal se vê um palmo à frente do nariz. Aos encontrões, fomo-nos aproximando de uma mesa rodeada de cadeiras feitas, parece, para a gente estar de pé, em vez de se sentar.
Ainda então o local estava meio silencioso, como jibóia prestes a acordar do honesto torpor de quem fez o quilo de um veado inteiro. Mas logo rompe com estrépito um barulho impossível nos altifalantes de não sei quantos megawatts. Era uma música minimal, feita apenas, dir-se-ia, por um órgão que gania de quando em quando dois ou três compassos, nos intervalos que lhe deixava livres a bateria obsessa. Pois não obstante ser um ruído intolerável (que, se as pessoas estivessem em seu perfeito juízo, as devia amotinar e fazer pegar em armas, se preciso fosse, para o calar) — tinha o surpreendente efeito de as arrastar para o meio da pista e as pôr a abanar freneticamente o corpo, como quem mói um interminável quilo de café à biqueira do sapato. Empoleirados em estrados, duas criaturinhas pulavam como saguis, num esforço destinado a entusiasmar, pelo exemplo, a gente que se movimentava na pista.
Entretanto, vindo não sei de onde — de alguma gigantesca chaleira de água a ferver que tivessem destapado —, começou a espalhar-se na quadra um como vapor, um nevoeiro do qual mal emergiam as silhuetas esbracejantes de quem dançava, como se fosse imperioso ocultarem-se uns dos outros. Ouvi um pato-bravo (espécie superabundante no local) que estava próximo de mim chamar àquilo, com embevecido respeito, «os fumos». E era como se mencionasse a última conquista da ciência, da técnica ou do bom-gosto.
Mas ainda faltava um tormento: o das luzes. Uma série de complicados aparelhos pôs-se súbito a girar, a oscilar, a debitar luzes de várias cores, sincopadamente, ao ritmo do que ali era tido por música. De quando em quando um daqueles raios passava vertiginosamente por mim e deixava-me ofuscado por um minuto.
Quando, às duas da manhã, logrei com o meu rosto atormentado, obter a piedade do meu grupo e deixámos a discoteca, esperava-me uma última surpresa. Seria de imaginar que, sofrendo-se ali da forma impiedosa como se sofria, as pessoas deviam, à saída, ser indemnizadas. Pois não senhor. Pelo contrário, ainda tinham que pagar! Alguém percebe isto?
Há religiões que impõem coisas absurdas como a auto-flagelação, as penitências violentas, o caminhar sobre brasas, as mutilações propiciatórias, eu sei lá.
Que estranha e nova religião será esta que leva pessoas aparentemente sãs a este ritual masoquista e auto-destrutivo da frequência das discotecas? Ou que culpas inenarráveis se expiarão desta forma inusitada?
Grandes prodígios há — dizia Ésquilo (ou Sófocles, já não estou bem certo) — mas nenhum maior do que o homem. Estou de acordo. Fui testemunha disso no dia 2 de Julho de 1994 que dificilmente me esquecerá.
A coisa conta-se em poucas linhas. O meu grupo de amigos deliberou que sábado, dia 2 de Julho de 1994 (para que conste), era dia propício para uma sardinhada, e lá fomos nós a caminho de um restaurante de Folhadela, à cata das sardinhas. Que estavam óptimas — mas deviam ser radioactivas, pois geraram em algumas das pessoas do grupo o extraordinário desejo de ir acabar de esmoê-las numa discoteca!
Fui pelos cabelos, porque já me tinha constado que uma discoteca é um lugar de muitos tormentos e perigos — desde logo para os ouvidos, depois para os olhos, e enfim, num crescendo de malefícios, para a própria sanidade mental.
Devo dizer que o local consegue ser ainda mais inóspito do que eu tinha imaginado — e, por Deus querer, imaginação é coisa que não me falta. Tento a descrição: um espaço aberto, hostil, decorado com restos de gruas e guindastes, espaço esse que deve convir manter na obscuridade, porque mal se vê um palmo à frente do nariz. Aos encontrões, fomo-nos aproximando de uma mesa rodeada de cadeiras feitas, parece, para a gente estar de pé, em vez de se sentar.
Ainda então o local estava meio silencioso, como jibóia prestes a acordar do honesto torpor de quem fez o quilo de um veado inteiro. Mas logo rompe com estrépito um barulho impossível nos altifalantes de não sei quantos megawatts. Era uma música minimal, feita apenas, dir-se-ia, por um órgão que gania de quando em quando dois ou três compassos, nos intervalos que lhe deixava livres a bateria obsessa. Pois não obstante ser um ruído intolerável (que, se as pessoas estivessem em seu perfeito juízo, as devia amotinar e fazer pegar em armas, se preciso fosse, para o calar) — tinha o surpreendente efeito de as arrastar para o meio da pista e as pôr a abanar freneticamente o corpo, como quem mói um interminável quilo de café à biqueira do sapato. Empoleirados em estrados, duas criaturinhas pulavam como saguis, num esforço destinado a entusiasmar, pelo exemplo, a gente que se movimentava na pista.
Entretanto, vindo não sei de onde — de alguma gigantesca chaleira de água a ferver que tivessem destapado —, começou a espalhar-se na quadra um como vapor, um nevoeiro do qual mal emergiam as silhuetas esbracejantes de quem dançava, como se fosse imperioso ocultarem-se uns dos outros. Ouvi um pato-bravo (espécie superabundante no local) que estava próximo de mim chamar àquilo, com embevecido respeito, «os fumos». E era como se mencionasse a última conquista da ciência, da técnica ou do bom-gosto.
Mas ainda faltava um tormento: o das luzes. Uma série de complicados aparelhos pôs-se súbito a girar, a oscilar, a debitar luzes de várias cores, sincopadamente, ao ritmo do que ali era tido por música. De quando em quando um daqueles raios passava vertiginosamente por mim e deixava-me ofuscado por um minuto.
Quando, às duas da manhã, logrei com o meu rosto atormentado, obter a piedade do meu grupo e deixámos a discoteca, esperava-me uma última surpresa. Seria de imaginar que, sofrendo-se ali da forma impiedosa como se sofria, as pessoas deviam, à saída, ser indemnizadas. Pois não senhor. Pelo contrário, ainda tinham que pagar! Alguém percebe isto?
Há religiões que impõem coisas absurdas como a auto-flagelação, as penitências violentas, o caminhar sobre brasas, as mutilações propiciatórias, eu sei lá.
Que estranha e nova religião será esta que leva pessoas aparentemente sãs a este ritual masoquista e auto-destrutivo da frequência das discotecas? Ou que culpas inenarráveis se expiarão desta forma inusitada?
Grandes prodígios há — dizia Ésquilo (ou Sófocles, já não estou bem certo) — mas nenhum maior do que o homem. Estou de acordo. Fui testemunha disso no dia 2 de Julho de 1994 que dificilmente me esquecerá.
|Crónica publicada no Repórter do Marão em 15 de Julho de 1994|
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