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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

domingo, 24 de julho de 2022

BABA DE CAMELO

 Escrevo estas linhas no dia primeiro de Janeiro de 2010, regressado (e um tanto enjoado, convenhamos, e também arrependido) de uma orgia de filhós, rabanadas, arroz-doce, aletria, leite-creme, bombons e outras doçuras da quadra, que são um quebra-cabeças para qualquer cinto e para qualquer balança. Come-se muito, no Natal. Não só em nossas próprias casas, como nessas ceias que se tornaram moda nos últimos anos, de funcionários daqui, empregados dali, professores dacolá, amigalhaços de longa data, etc. e tal. Não há corporação que não organize a sua ceia de Natal. No restaurante em que participei numa delas, estavam a decorrer simultaneamente cinco ou seis outras ceias de Natal. Em tempos que são de crise, o Natal vai-se tornando assim num São Miguel dos restaurantes e casas de pasto, como já o era dos comerciantes.
 Depois é que são elas. Aqui d’el-rei que engordei dois quilos, aqui d’el-rei que as calças não me servem (ou as saias, no caso — porventura mais dramático — das senhoras). E fazem-se então juras e promessas de desfazer, ao longo do ano, os malefícios dos excessos do Natal, esmoendo os quilos a mais a poder de dietas e chá verde — só para, chegado outro Natal, voltar tudo à estaca zero. A isto se podia chamar metaforicamente a cobra que morde a própria cauda.
 Bom, mas não é destas fraquezas humanas que eu quero falar hoje. Em todo o caso, falarei de comida.
 Uma travessa bem apresentada, se possível alegrada com as cores vivas dos legumes, redobra o prazer da mesa. Pelo contrário, um troço de carne partido às três pancadas, longe de apetecer, aborrece. O nosso povo sabe disso muito bem, e por isso inventou um anexim que diz: ‘Os olhos também comem’. 
 Quando era muito pequeno e ouvia dizer isto, levava o caso à letra e ficava-me a cismar como diabo é que seria possível meter por exemplo uma garfada de couve-troncha pelos olhos adentro. E os olhos teriam dentes? Com o passar dos tempos e o advento gradual da capacidade de tresler — isto é, de distinguir o sentido real do sentido figurado —, pude enfim compreender aquela coisa de os olhos comerem. E nada me pareceu então mais acertado, a mim, que sempre fui um esquisito no que toca ao aspecto das comidas.
 De facto, os olhos também comem, e por isso conheço muito boa gente que, incapaz de abstrair do aspecto pouco sugestivo de certos pratos — um arroz de lampreia ou uma chanfana, por exemplo — não os comem e não sabem por isso o que perdem.
 Ultimamente, deu em aparecer em todos os restaurantes uma sobremesa chamada baba de camelo. Reflectindo sobre este estupor deste nome — o padrinho deve estar a estas horas a prestar contas do desconchavo a Belzebu — acabei por decidir que a gente come não só com os olhos, como come também com os ouvidos. Pela parte que me toca, nego-me em absoluto a comer baba de camelo. Dizer este nome é representarem-se-me muito vividamente na ideia as escorrências bucais de um camelo acabado de chegar de uma travessia do Deserto do Saará. Possivelmente perco muito com esta repulsa, mas é superior às minhas forças.
 Podia até citar contra mim o grande Shakespeare: What’s in a name? that which we call a rose / By any other name would smell as sweet. Vem esta pérola no Romeu e Julieta. Traduzindo livremente, para quem não meta dente no inglês: “Que importa o nome? Aquilo que chamamos rosa cheiraria bem à mesma com outro nome qualquer.”
 E é capaz de ser verdade. Mas nem doutrinado por Shakespeare, um dos santos do meu altar, sou capaz de comer baba de camelo. Recuso-me em absoluto. E gosto até de brincar nos restaurantes — quando a maré vai de brincar — perguntando ao empregado, na hora de pedir a sobremesa:

 – Tem baba de camelo?
 – Temos, sim.
 – E ranho de hipopótamo?

 Alguns afinam.

(Repórter do Marão, 1 de Janeiro de 2010)

A. M. Pires Cabral

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