Escrevo estas linhas no dia primeiro de Janeiro de 2010, regressado (e um tanto enjoado, convenhamos, e também arrependido) de uma orgia de filhós, rabanadas, arroz-doce, aletria, leite-creme, bombons e outras doçuras da quadra, que são um quebra-cabeças para qualquer cinto e para qualquer balança. Come-se muito, no Natal. Não só em nossas próprias casas, como nessas ceias que se tornaram moda nos últimos anos, de funcionários daqui, empregados dali, professores dacolá, amigalhaços de longa data, etc. e tal. Não há corporação que não organize a sua ceia de Natal. No restaurante em que participei numa delas, estavam a decorrer simultaneamente cinco ou seis outras ceias de Natal. Em tempos que são de crise, o Natal vai-se tornando assim num São Miguel dos restaurantes e casas de pasto, como já o era dos comerciantes.
Depois é que são elas. Aqui d’el-rei que engordei dois quilos, aqui d’el-rei que as calças não me servem (ou as saias, no caso — porventura mais dramático — das senhoras). E fazem-se então juras e promessas de desfazer, ao longo do ano, os malefícios dos excessos do Natal, esmoendo os quilos a mais a poder de dietas e chá verde — só para, chegado outro Natal, voltar tudo à estaca zero. A isto se podia chamar metaforicamente a cobra que morde a própria cauda.
Bom, mas não é destas fraquezas humanas que eu quero falar hoje. Em todo o caso, falarei de comida.
Uma travessa bem apresentada, se possível alegrada com as cores vivas dos legumes, redobra o prazer da mesa. Pelo contrário, um troço de carne partido às três pancadas, longe de apetecer, aborrece. O nosso povo sabe disso muito bem, e por isso inventou um anexim que diz: ‘Os olhos também comem’.
Quando era muito pequeno e ouvia dizer isto, levava o caso à letra e ficava-me a cismar como diabo é que seria possível meter por exemplo uma garfada de couve-troncha pelos olhos adentro. E os olhos teriam dentes? Com o passar dos tempos e o advento gradual da capacidade de tresler — isto é, de distinguir o sentido real do sentido figurado —, pude enfim compreender aquela coisa de os olhos comerem. E nada me pareceu então mais acertado, a mim, que sempre fui um esquisito no que toca ao aspecto das comidas.
De facto, os olhos também comem, e por isso conheço muito boa gente que, incapaz de abstrair do aspecto pouco sugestivo de certos pratos — um arroz de lampreia ou uma chanfana, por exemplo — não os comem e não sabem por isso o que perdem.
Ultimamente, deu em aparecer em todos os restaurantes uma sobremesa chamada baba de camelo. Reflectindo sobre este estupor deste nome — o padrinho deve estar a estas horas a prestar contas do desconchavo a Belzebu — acabei por decidir que a gente come não só com os olhos, como come também com os ouvidos. Pela parte que me toca, nego-me em absoluto a comer baba de camelo. Dizer este nome é representarem-se-me muito vividamente na ideia as escorrências bucais de um camelo acabado de chegar de uma travessia do Deserto do Saará. Possivelmente perco muito com esta repulsa, mas é superior às minhas forças.
Podia até citar contra mim o grande Shakespeare: What’s in a name? that which we call a rose / By any other name would smell as sweet. Vem esta pérola no Romeu e Julieta. Traduzindo livremente, para quem não meta dente no inglês: “Que importa o nome? Aquilo que chamamos rosa cheiraria bem à mesma com outro nome qualquer.”
E é capaz de ser verdade. Mas nem doutrinado por Shakespeare, um dos santos do meu altar, sou capaz de comer baba de camelo. Recuso-me em absoluto. E gosto até de brincar nos restaurantes — quando a maré vai de brincar — perguntando ao empregado, na hora de pedir a sobremesa:
Depois é que são elas. Aqui d’el-rei que engordei dois quilos, aqui d’el-rei que as calças não me servem (ou as saias, no caso — porventura mais dramático — das senhoras). E fazem-se então juras e promessas de desfazer, ao longo do ano, os malefícios dos excessos do Natal, esmoendo os quilos a mais a poder de dietas e chá verde — só para, chegado outro Natal, voltar tudo à estaca zero. A isto se podia chamar metaforicamente a cobra que morde a própria cauda.
Bom, mas não é destas fraquezas humanas que eu quero falar hoje. Em todo o caso, falarei de comida.
Uma travessa bem apresentada, se possível alegrada com as cores vivas dos legumes, redobra o prazer da mesa. Pelo contrário, um troço de carne partido às três pancadas, longe de apetecer, aborrece. O nosso povo sabe disso muito bem, e por isso inventou um anexim que diz: ‘Os olhos também comem’.
Quando era muito pequeno e ouvia dizer isto, levava o caso à letra e ficava-me a cismar como diabo é que seria possível meter por exemplo uma garfada de couve-troncha pelos olhos adentro. E os olhos teriam dentes? Com o passar dos tempos e o advento gradual da capacidade de tresler — isto é, de distinguir o sentido real do sentido figurado —, pude enfim compreender aquela coisa de os olhos comerem. E nada me pareceu então mais acertado, a mim, que sempre fui um esquisito no que toca ao aspecto das comidas.
De facto, os olhos também comem, e por isso conheço muito boa gente que, incapaz de abstrair do aspecto pouco sugestivo de certos pratos — um arroz de lampreia ou uma chanfana, por exemplo — não os comem e não sabem por isso o que perdem.
Ultimamente, deu em aparecer em todos os restaurantes uma sobremesa chamada baba de camelo. Reflectindo sobre este estupor deste nome — o padrinho deve estar a estas horas a prestar contas do desconchavo a Belzebu — acabei por decidir que a gente come não só com os olhos, como come também com os ouvidos. Pela parte que me toca, nego-me em absoluto a comer baba de camelo. Dizer este nome é representarem-se-me muito vividamente na ideia as escorrências bucais de um camelo acabado de chegar de uma travessia do Deserto do Saará. Possivelmente perco muito com esta repulsa, mas é superior às minhas forças.
Podia até citar contra mim o grande Shakespeare: What’s in a name? that which we call a rose / By any other name would smell as sweet. Vem esta pérola no Romeu e Julieta. Traduzindo livremente, para quem não meta dente no inglês: “Que importa o nome? Aquilo que chamamos rosa cheiraria bem à mesma com outro nome qualquer.”
E é capaz de ser verdade. Mas nem doutrinado por Shakespeare, um dos santos do meu altar, sou capaz de comer baba de camelo. Recuso-me em absoluto. E gosto até de brincar nos restaurantes — quando a maré vai de brincar — perguntando ao empregado, na hora de pedir a sobremesa:
– Tem baba de camelo?
– Temos, sim.
– E ranho de hipopótamo?
Alguns afinam.
(Repórter do Marão, 1 de Janeiro de 2010)
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