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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

AS ALHEIRAS

 Embora fora de época e com licença dos gurus da especialidade, meto hoje foice em seara alheia, para me aventurar a dizer que uma das mais acertadas estratégias do marketing moderno é a criação de denominações de origem. Passa-se dessa forma um certificado de autenticidade a produtos típicos de uma dada região — e um dos valores mais apreciados por esta sociedade do come-em-pé é, talvez paradoxalmente, talvez não, a autenticidade.
 As denominações de origem começam, pois, a proliferar e oxalá aquelas regiões que obtêm o seu reconhecimento possam resistir a tentações de adulteração, de contrafacção e de lucro fácil e fraudulento, por forma a não as desacreditar. Vinhais, por exemplo, não sei se já obteve denominação de origem para os seus estupendos salpicões e linguiças. De Mirandela sei que já viu as suas alheiras reconhecidas dessa forma.
 Assim se consagra uma longa tradição de chamamento: alheiras de Mirandela. Nas ‘charcuteries’ finas de Lisboa, como nos hipermercados e nas mercearias de bairro, alheiras há só umas, as de Mirandela e mais nenhumas. Apenas uma vez me lembro de ter visto, há mais de trinta anos, numa mercearia da Rua da Sofia, em Coimbra, alheiras anunciadas como sendo de Macedo de Cavaleiros. E não imaginam como o meu ego macedense inchou nesse momento glorioso!
 Esta denominação das alheiras não sei a que se deve. A um qualquer acaso histórico, porventura comezinho e insignificativo, ou então ao rasgo de um qualquer fabricante pioneiro, que resolveu introduzir as suas alheiras nos circuitos comerciais. Digo isto porque as alheiras de Mirandela, sendo sem dúvida boas — as que o são —, não são melhores do que as que se confeccionam em Bragança, Macedo ou qualquer outro lugar do Nordeste. Sant’Anna Dionísio refere-se algures, muito apreciativamente, à «formidanda travessa das alheiras» — e não estava a falar das de Mirandela, concretamente. Eu compro em Macedo alheiras que não ficam nada a dever às de Mirandela. Às vezes as minhas cunhadas Carma e Conceição oferecem-me meia dúzia delas feitas à boa maneira artesanal, segundo segredos antigos que infelizmente se hão-de perder com esta geração que é a última que ainda faz fumeiro. E — descontando o que vai nisso de sentimental — nunca comi alheiras que chegassem aos calcanhares das que fazia a minha Mãe.
 Mas pronto, a cidade do Tua ganhou essa corrida, e ainda bem. Creio que estamos todos de parabéns por isso. Possa Bragança, possa Macedo, possa Moncorvo e possam todas as terras onde há coisas típicas e boas, provadas pelos séculos, conseguir para elas o mesmo estatuto. Será sem dúvida um factor de riqueza.
 Havia qualquer coisa de festivo no dia de fazer as alheiras. A minha Mãe — o general — e seus ajudantes de campo (em que eu me incluía gostosamente) talhavam fatias estreitas dos grandes pães de trigo de Castelãos para dentro dos alguidares de zinco, enquanto as carnes (sobretudo de porco, mas também um troçozito de vitela, acaso peru ou gorda galinha poedeira e se houvesse uma perdizita ou duas — meu Pai era bom caçador — tanto melhor...) coziam ao lume em potes de ferro — e rescendiam. Alguém, entretanto, tratava das tripas, que se haviam comprado às ‘bicas’ na loja do senhor Zèzico. Depois, o trigo era amolecido com a água da cozedura, as carnes misturadas. E passava-se ao enchimento, com pequenos funis de lata, justamente chamados enchedeiras. Alheiras medianas, nem muito grandes nem muito pequenas; mas, nalgum naco de tripa sobrante, minha Mãe nunca se esquecia de encher um ‘reizinho’ para nós, as crianças. Postas nas varas, sobre a lareira, as alheiras eram um lindo e apetitoso sobrecéu. No dia imediato já havia quem as quisesse provar, embora uns diazinhos de estágio nas varas do fumeiro lhes apurassem o gosto.
  Uma alheira bem temperada é de facto uma festa para o paladar. Mas com a sua guarnição natural: a batata cozida e os grelos. Porque aqui há dias, num programa infantil da RTP-2, uma locutora procurava motivar as crianças a comer alheiras de Mirandela — com um ovo estrelado e batatas fritas! Credo! É o come-em-pé a adulterar a gastronomia tradicional. Num programa infantil, que devia ser pedagógico, a senhora cometeu um duplo desacato: atropelou as normas da dietética e insultou as alheiras.

Repórter do Marão, 26 de Novembro de 1996

A. M. Pires Cabral

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