Sem tempo nem gosto para demorada e gorda prosa, o Abade de Baçal arrumou a questão em duas penadas:
«Bragança é a terra clássica dos folares, os quais, com as alheiras, também chamadas tabafeias, e as trutas dos seus rios, principalmente Baceiro e Tuela, constituem pitéu que não receia confrontos com os mundiais mais afamados.»
Descontando o fervor regionalista, sempre tão sadiamente acentuado na vasta obra do Padre Francisco Manuel Aves, assinale-se desde já que (…) se baseia numa realidade geográfica que vai muito para além das fronteiras de Bragança, correspondendo aos concelhos situados nas duas margens do Douro, que constituíam a antiga província de Trás-os-Montes e Alto Douro.
Por outro lado, e admitindo com gosto a bondade dos folares, das alheiras (ou tabafeias) e das trutas, a verdade é que a cozinha bragançana não se limita a estes petiscos, mas, mesmo que se limitasse, convenhamos que bem servida estava.
Aliás, o Abade de Baçal reconhece isto mesmo, ao escrever:
«A estes tradicionais acepipes junta ainda a cozinha bragançana o delicioso torradeiro (leitão assado), que para estar em condições deve regular por trinta dias de idade – leitão de mês e cabrito de três -, como reza a culinária local.»
O porco é rei na gastronomia transmontana
Com esta referência ao leitão fica mais completo o ramalhete, até porque leitão sugere porco, e o porco é inegavelmente o rei da gastronomia trasmontana.
Mais do que isso: os inúmeros monumentos em granito de culto totémico, esculturas zoomórficas vulgarmente conhecidas por «porcas» (recordam-se a Porca de Murça e a Porca da Vila, em Bragança, mas poderiam citar-se muitos mais exemplos), existentes em Trás-os-Montes, confirmam uma importância que perdura até hoje.
Segundo o Abade de Baçal,
«nada admira que um povo primitivo, residente na área trasmontana, prestasse culto ao porco, sem dúvida ainda hoje o animal mais prestadio da culinária trasmontana; a sua melhor caixa económica, que se alimenta com todos os rebotalhos, assimilando tudo e tudo restituindo centuplicado em presunto, toucinho, unto, manteiga, lombo, salpicões e tabafeias divinais».
Insistindo: «Que admira que este povo adorasse o porco, se ele é a base da sua alimentação; se este povo diz ainda hoje que, se Deus viesse do céu à terra, o melhor manjar a dar-Lhe seria lombo de porco; se este povo professa o rifão: das carnes o carneiro, das aves a perdiz e, sobretudo, a codorniz; mas se o porco voara, não havia carme que lhe chegara?!»
O Abade, já se vê, era dado à prática gastronómica, entendida sem falsos moralismos como prazer, mas também como parte de um património cultural que ele defendeu melhor do que ninguém.
Justifica-se, pois, que seja chamado a este terreiro, para o anúncio formal de uma fascinante viagem através de sabores que a cada passo reclamam do viajante uma paragem obrigatória e uma demora prolongada.
O pão, sopas e caldos!
Falou-se do porco, mas talvez esta prosa devesse ter começado pelo pão – o pão nosso de cada dia símbolo de uma alimentação tradicionalmente frugal e de uma luta pela sobrevivência travada em condições quase sempre adversas.
O pão remete-nos para as sopas (no plural, note-se), as migas e as açordas, seguindo uma terminologia que, embora quase generalizada, está longe de ser uniforme.
Reserva-se a palavra caldo para o que, noutras regiões do País, é designado por sopa, mas também aqui a regra admite exceções – embora apenas no aspeto vocabular, que não no da qualidade dos caldos, mesmo quando a respetiva receita apresenta variações por vezes de aldeia para aldeia.
E, a propósito, terão de ser aqui chamados à colação caldos como o de castanhas, hoje quase uma pérola arqueológica, o de cebola, ainda usado como pequeno-almoço em algumas regiões rurais, ou o de unto, tão fortemente regionalista.
E sopas como as de alface, as de alheiras ou as de bacalhau.
Mas deve acrescentar-se que, entre caldos e sopas, os legumes e as leguminosas desempenham papel preponderante numa cozinha que tem tanto de rústico como de saudável.
Dos peixes, o bacalhau à cabeça
Quanto a peixes, teremos de confessar que a variedade de espécies é pequena, embora compensada em muitos casos pela diversidade das receitas.
Mas não podia ser de outra maneira.
A geografia e as condições de vida determinam costumes e práticas culturais, e, neste caso, os hábitos alimentares foram condicionados por uma interioridade rigorosa, durante séculos favorecida pela inexistência de vias de comunicação que permitissem ultrapassar duas barreiras de respeito, ainda hoje ex-libris da região: a serra do Marão e o rio Douro.
E já que estamos com a mão nos peixes, diga-se que na lista dos que têm lugar assegurado, ou mesmo de relevo, na cozinha tradicional trasmontana o bacalhau vem à cabeça, e compreende-se bem porquê: por tradição, ele foi sempre o mais fiel amigo das gentes do interior.
Mas a lista não é longa: além do congro e da pescada, sobretudo no Natal, das sardinhas salgadas e do polvo, que, sendo gastrópode, é geralmente associado aos peixes, temos mais o quê?
Com alguma cerimónia pode falar-se da lampreia, hoje mais que bissexta nas mesas trasmontanas, e naturalmente da truta, rainha incontestada dos rios situados mais a norte dos distritos de Vila Real e Bragança.
Mas seria injustiça não fazer pelo menos uma alusão breve aos barbos e às bogas, que, nem por serem raros nas ementas dos restaurantes, têm um papel menos importante na gastronomia trasmontana e alto-duriense.
Fumeiro e enchidos
Nas referências que fez ao porco, o Abade de Baçal disse muito, mas sobre fumeiro ficou-se pelos enchidos mais nobres: os salpicões e as alheiras.
O contexto não o exigia, o que dispensava a elaboração de uma lista completa, na qual teriam de ser incluídos chouriços, chouriças, linguiças, bochas, morcelas, morcelas doces, morcelas de alho, palaios, butelos, bulhos, chabianos, azedos, farinhotas e vilões.
Uma fartura, como se vê.
Com a curiosidade de palaio, butelo e bulho serem a mesma coisa e de o vilão ser outro nome que se dava às alheiras em Mogadouro, como recorda Trindade Coelho:
«Em Bragança, capital do meu distrito, chamam tabafeias aos vilões; e noutras terras, aos vilões chamam-lhes alheiras, porque também levam um bocado de alho.»
Se mais não houvesse, o porco e seus derivados seriam suficientes para fazer toda uma cozinha «forte» como esta.
Anotando que os folares, as empadas e as bolas de carne muito devem também ao porco, acrescente-se a caça (sobretudo a perdiz, a lebre, o coelho e o javali), diga-se que a doçaria é um nunca-mais-acabar, e teremos um receituário capaz de nos abrir as portas do paraíso.
Fiquemos, entretanto, por aqui, antes que a prosa descambe em conversa de sobremesa, depois de refeição bem servida e bem regada.
E recorde-se mais uma vez o Abade de Baçal, que, a propósito de petiscos, escrevia numa carta para Abel Salazar, em 1934: «Primum vivere, deinde philosophare. Isto é, traduzido em vulgar: depois da comezaina, a Arte.»
Afonso Praça, in “Cozinha de Portugal – Trás-os-Montes” (texto editado) | Imagem retirada de um folheto promocional
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