Entre os pecadilhos mais correntemente apontados às mulheres, contava-se a desobediência. Era um defeito particularmente grave, num meio rural que estava (e de certo modo ainda está) imerso numa cultura influenciada pelos ditames da doutrina católica. A desobediência feminina contrariava frontalmente ordens de Deus, escritas preto-no-branco em mais de uma página da Bíblia, como veremos mais abaixo. Há, na Bíblia, algumas mulheres que se tornaram exemplos da mulher desobediente — e que foram punidas por isso. É o caso da mulher de Lot, que desobedeceu à ordem divina que lhe proibia olhar para trás, quando, juntamente com a família, abandonava a pecadora cidade de Sodoma em chamas — e por isso foi transformada numa estátua de sal. Terrível punição. Se quisermos descer mais fundo no poço do tempo, encontramos outra desobediência fatal: a da própria Eva, a quem Deus proibira de comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal. Eva ignorou o interdito, e a sua desobediência causou à humanidade o supremo dano da expulsão do paraíso terreal — punição mais terrível ainda.
Uma tia da minha Mulher, a quem todos chamávamos carinhosamente tia Micas, já perto dos 90 anos, era um depósito de memórias de antigos autos populares, que na infância dela se representavam em algumas aldeias do Nordeste, versando temas bíblicos, uma espécie de 'pageants' à portuguesa.
A tia Micas — desculpem o pequeno exagero, que aqui deixo como homenagem à querida familiar e como penhor de gratidão pelo muito que me ensinou da sabedoria do povo —, nos seus tempos áureos, sabia de cor e salteado, e papagueava de cabo a rabo, o “Auto da criação do mundo”, auto esse que era uma espécie de versão do Génesis em redondilha maior, e que no seu tempo de criança se representava pela Páscoa, em Grijó, Macedo de Cavaleiros. Mas, nos anos terminais, só já retinha farrapos do auto. E não me parece simples coincidência que, entre esses farrapos escassos, se contassem estes quatro versos, em que Adão adverte Eva:
Uma tia da minha Mulher, a quem todos chamávamos carinhosamente tia Micas, já perto dos 90 anos, era um depósito de memórias de antigos autos populares, que na infância dela se representavam em algumas aldeias do Nordeste, versando temas bíblicos, uma espécie de 'pageants' à portuguesa.
A tia Micas — desculpem o pequeno exagero, que aqui deixo como homenagem à querida familiar e como penhor de gratidão pelo muito que me ensinou da sabedoria do povo —, nos seus tempos áureos, sabia de cor e salteado, e papagueava de cabo a rabo, o “Auto da criação do mundo”, auto esse que era uma espécie de versão do Génesis em redondilha maior, e que no seu tempo de criança se representava pela Páscoa, em Grijó, Macedo de Cavaleiros. Mas, nos anos terminais, só já retinha farrapos do auto. E não me parece simples coincidência que, entre esses farrapos escassos, se contassem estes quatro versos, em que Adão adverte Eva:
Olha bem para estas barbas
Que mas deu a Providência,
Para que à vista delas
Me guardes obediência.
Por que motivo estes versos não se lhe apagaram da memória quando quase tudo o resto se apagou? Seria porque encerravam um ‘Diktat’ divino, logo de aceitação obrigatória, que ela, Tia Micas, via desrespeitar a cada passo na sociedade permissiva que testemunhou nos seus últimos anos. Se, como se infere do auto, Deus colocou o ónus da obediência na mulher, o povo, não se atrevendo a contestar o que o Criador punha e dispunha, não podia deixar de aceitar que a mulher é que deve obediência ao homem e não o contrário. E como, de todas as feições do rosto humano, as únicas exclusivas do homem eram as barbas (geralmente, claro; conheço algumas excepções), estas passaram a servir de ‘aide-mémoire’ do dever de sujeição da mulher ao marido. Esta verdade em que a tia Micas acreditava sem reservas era sancionada pelos versículos do Génesis em que Deus, irado, recrimina Eva: «Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos hão-de nascer entre dores. Procurarás com paixão aquele a quem serás sujeita, o teu marido.» Sentença que São Paulo vai reforçando com enunciados como: «O homem não foi tirado da mulher, mas a mulher do homem; nem o homem foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem.» Ou então: «As mulheres sejam submissas aos seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é cabeça da mulher». Hoje haverá quem tenha a tentação de dar um nome à mentalidade que está por trás destes arrazoados: machismo. Mas as coisas têm de ser vistas à luz da sua época.
As barbas ganham assim um valor simbólico e sentia-se de alguma forma inferiorizado o homem que as não tivesse bem chibantes ou cuja barba tenha sido ‘semeada em dia de vento’, isto é, seja muito rala — e aí temos mais uma engenhosa metáfora a atestar a acentuada queda deste povo para a poesia.
(Continua.)
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