Número total de visualizações do Blogue

Pesquisar neste blogue

Aderir a este Blogue

Sobre o Blogue

SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 10 de março de 2023

VIAGENS — 9 - Era o vinho, meu Deus, era o vinho

 Em terra de bons vinhos, pouco encorpados mas abertinhos, não é de estranhar que o gostoso líquido tenha uma legião de seguidores da doutrina do “vinho bebas”. 
Isto do “vinho bebas” há-de dizer alguma coisa ao Leitor. Mas se por acaso não diz, digo eu. 
Há um velho e provado prolóquio que diz “Por cima de melão, de vinho um tostão”. Ora, gerou-se alguma balbúrdia na interpretação do dito e têm mesmo sido aventadas alternativas à sua formulação. Há uma opinião que insiste que, em vez de “de vinho um tostão”, devia dizer-se “vinho de tostão”. E justifica: em tempos passados, o tostão seria uma quantia considerável, pelo que dizer “vinho de tostão” equivalia a dizer vinho caro, logo bom. Há uma segunda opinião que propõe a alteração do provérbio, agora por acréscimo. Segundo essa opinião, o provérbio devia ser assim: “Por cima de melão, de vinho um tostão, sendo a dez réis o litro”. Onde a coisa já vai! 
Eu penso que não se devem corrigir os provérbios, porque a forma com que chegam até nós é já o produto de uma longa maturação que ganhou jus a ser tomada por definitiva. Irritou-me particularmente um senhor que, nas redes sociais, que são o fórum onde se debatem assuntos momentosos como este de que falamos, se dedicou afanosamente a corrigir provérbios. Um exemplo, entre muitos: debruçando-se sobre o adágio “Quem não tem cão caça com gato”, chegou esse senhor à conclusão de que a forma correcta do adágio é “Quem não tem cão caça como o gato”, isto é, sozinho, como faz o gato, diz ele. Ainda se o gato fosse o único caçador solitário... Mas não é. Meu caro senhor, salvo alguns casos bem conhecidos, como os leões, os mabecos e os lobos, a maioria dos bichos caçadores são solitários. O provérbio “Quem não tem cão caça com gato” o que pretende é ensinar que, se não temos acesso ao bom, devemos conformar-nos com o menos bom — e por isso está muito bem assim o provérbio. Deixe-o em paz. 
Mas voltemos ao vinho e aos rifões em torno do vinho, esse do melão ou estoutro das pêras, que é assim: “Por cima de pêras, vinho bebas, mas não tanto que andem as pêras de canto em canto”. Este provérbio acende em mim imagens dantescas, com os pedaços de pêra ainda mal digeridos a serem baldeados dentro do estômago como uma nau em mar de tormenta. Também aqui o povo se revelou capaz de transcender o literal com uma imagem plena de sugestões.
Ouvi contar mais que uma vez a meu Pai uma história que ele dizia ser verdadeira e que depois eu próprio contei numa crónica de jornal de província, nestes exactos termos:  
Havia um sujeito que tinha tanto amor e devoção pelo vinho que não se limitava aos conhecidos anexins ‘por cima de melão, de vinho um tostão’ e ‘por cima de pêras, vinho bebas’. Não, senhor: era vinho por cima de melão, vinho por cima de pêras e de maçãs, de pão e de queijo, de carne e de peixe, de doce e de salgado. Por cima fosse do que fosse — ‘vinho bebas’, dizia (e praticava) o bom beberrão. Com uma única e enternecedora excepção. Sabem qual? As uvas. Porque não era ‘por cima de uvas, vinho bebas’ que dizia. Em vez disso, dizia esta coisa ao mesmo tempo enternecedora e subtil: ‘Não há nada que fique tão bem como o filho nos braços da mãe.’ E por cima de uvas — que eram a mãe —, bebia vinho — que era o filho. E a isso chamava ‘o filho nos braços da mãe’. 
Este homem era um poeta e se calhar não sabia.
O vinho, que tanta paixão acende, tinha de ter garantido um lugar nas contas contadas a Nordeste. Certamente com a intenção pedagógica de verberar um vício particularmente penoso de ver, que é um ébrio embriagado. E também uma ébria, para que não se pense que a embriaguez é um exclusivo do homem. “Há mais borrachas do que odres” é um rifão que compara o número de beberrões do sexo feminino — borrachas — com os do sexo masculino — odres —, com surpreendente vantagem para as mulheres. De resto, a conta que escolhi para ilustrar a dipsomania tem por personagem principal uma borrachona. Fui colhê-la num interessante livro com o título de “A minha gata cinzenta”, da autoria de Maria Virgínia do Nascimento.
Um homem estava casado com uma mulher muito borracha e por mais desfeitas que ele lhe fizesse não tinha emenda a excomungada. À noite em vez de fazer a ceia, enfiava-se na adega e as mais das vezes já não conseguia sair de lá pelo pé dela, que era o pobre quem a tinha de a arrastar para a cama. Mas uma vez ele perdeu a cabeça e ia dando cabo dela, porque a arrastou para debaixo da pipa e lhe enfiou o funil na boca com a torneira enfiada nele, e deixou correr até lhe atestar bem atestado o bandulho. Depois, agarrou nela como num saco e atirou-a para um canto, a pensar que tinha acabado de vez com ela. Quando ela, numa fala entaramelada lhe pediu: «Ó homem da minha vidal Torna-me a enfunilarl» 
 Sobre esta conta só me ocorre uma exclamação: caramba!

(Continua)

A. M. Pires Cabral

Sem comentários:

Enviar um comentário