sexta-feira, 16 de junho de 2023

“ Ei, RAPAJINHO... , Ou o meu casamento”! - Capítulo II

Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

... continuação

Quando todos estavam entusiasmados  com a festa e com a música que saía dos altifalantes da aparelhagem do Grilo da Cardanha,  ancorados nas faias, aproveitei uma música romântica e convidei-a para dançar, o que ela aceitou com agrado.  Ainda não tínhamos sentido o calor das mãos, eis que chega o Pai, todo indignado , de dedo em riste: “ Ó rapajinho! Tira, tira lá a mãojinha, qu´inda ónte à noute beio do Lixeu” – disse em voz alterada, para júbilo dos presentes. Como ambos fomos criados e educados por entre os rochedos graníticos transmontanos, onde o mocho , do cimo das fragas  desafia o mundo de olhos fechados e perscruta os seus mais profundos desígnios, ficámos os dois humilhados e muito revoltados. Ela foi chorosa directamente para casa e eu fui acalmar  a revolta para um canto escuro. O mundo para mim tinha-se fechado e aparecia-me mais pequeno do que o representado na esfera armilar. Só a partir daí, começámos a sentir uma certa inquietação perante o outro. A partir dessa altura, a sua imagem, serena e luminosa, como um pirilampo nas noites quentes de Verão, começou a povoar os meus sonhos. Nunca esqueci – e esquecerei – o seu rosto angelical e os seus olhos , cheios de solidão, cuja cor era indefinida: ia da cor do mel à cor cinza do feno seco, pronto a gadanhar.
        Um dia, disse o Senhor Ramalho aos meus Pais: 
        - Oube lá, ó Xaquim! Parexe-me qu´o teu rapaje  anda arrastar a aja à minha Xulieta! Xá bos abijo: Num é flor  pra ele tcheirar.
        - Ó... - disse a minha Mãe que era mais desinibida do que o meu Pai.- Deixa lá isso. Inda são garotos! Sabem lá eles...
        - Pois, stá bem, mas axim  c´máxim, é xó pra no s´ imbixionar.
        - C´mo quera. O casamento e a mortalha no Céu se talha - desarmou-o a minhaMãe, cuja inteligência não me canso de admirar e de respeitar.
      Resumindo: passados três anos, concluí o curso de Electromecânicos e fui para Bragança, tirar o SPI – Secção Preparatória aos Institutos – durante dois anos. Por coincidência, se é que as há, fui morar para o Bairro da Estação, perto da Escola Industrial e do vizinho da Bairro da Mãe D´Água!  Quando acabei a Secção, Julieta acabou o sétimo ano do Liceu.  ( Mal nos víamos e falar...nunca! Ou andava acompanhada de colegas ou pela mulher do polícia.( Mas escrevíamos umas tontices um ao outro em segredo!).
       Fomos ambos para o Porto: eu, fazer o exame ao Instituto Industrial e ela para a Faculdade de Farmácia. Comeu eu chumbei no referido exame, arranjei emprego numa loja de ferragens  na Rua do Almada, em Santo Ildefonso,  e à noite  tirei o curso de Desenhador de Máquinas. Em menos de dois anos, comecei a trabalhar na Fundição de Massarelos como Desenhador Técnico.  Nessa altura eu vivia na Rua do Campo Alegre e ela vivia numa espécie de pensão Universitária – não chegando a ser propriamente uma República, na Rua do Breiner. Começámos a namorar- “ oficialmente”  no segundo ano e, durante esse tempo o namoro e, principalmente o amor de um para o outro, tornou-se sólido como o quartzo do granito transmontano que é, no Planeta, onde é mais rijo e mesmo assim se transforma em saibro, pela meteorização do feldspato. Escondemos,  estoicamente,  a nossa paixão durante todas as férias! Ah...! Que felicidade quando ela me aceitou o pedido de namoro, dizendo que já ansiava por isso há bastante tempo!. Era a vida a superar o sonho.
      Cinco anos mais tarde quando, finalmente,  a filha lhes disse  com muito receio que pretendíamos casar – e  isto só depois do curso acabado e, segundo me contou a Julieta, o Senhor Ramalho ia tendo um ataque cardíaco.  Ficou até apoplético . “ O quê?!! Tu num me digas uma couja dexas! Num conxegues arranxar milhor do qu´áquel taininhas?! .  Andemos-te a criar com tanto mimo prá gora casares co aquele frosquinhas, quinté parece um inxalmo?!! “.  O Senhor Ramalho era daqueles matarroanos de  que nem Deus e nem o Diabo o faziam mudar de ideias. Era bruto e espinhoso como os abrolhos. Apesar de tudo, Julieta manteve-se de tal modo  firme e resoluta na decisão – o amor verdadeiro tudo vence - ,  que o Pai, embora constrangido e desiludido, não teve outra opção se não aceitar. Quem sai aos seus não degenera.  Nunca vi uns Pais tão orgulhosos da (na) sua filha!! Era mais teimosa do que uma varejeira no Verão e ainda bem para mim.
       Uns meses antes do casório, chamou-me à adega e, com um copo de tinto cada um, confesso que  já nessa altura gostava mais de aguardente, disse – me em tom solene e ameaçador : “ X´um dia xouber que dás maus tratos à minha Xulietajinha, dou-te dois bofardos quité bais cagar de leque e mixar d´ingoreta.  ( Esta é só para a Mónica Moreira relembrar a expressão com que repreendia os filhos). Inda tãe outra coixa! Num quero cá raparigos iantes do cajamento. Xe m´aparxer prenha, indes todos com dono, oubistes bem? Amando-te de prejente pró diabo. ( Aquilo eram só basófias).
       Nos dois primeiros anos, fui um sapo vivo que o meu sogro teve que engolir,  mas lá me digeriu, com a ajuda e firmeza da minha mulher, honra lhe seja feita. ( Quando a Julieta  ainda hoje recorda este episódio e conta isso, no seu humor próprio, que ela também é fresca em questões humorísticas – honra aos transmontanos no duro e cruel humor - ,  até ficamos com dores de barriga de tanto nos rirmos!).  Só de imaginar o Senhor Ramalho, a “ dixer” mal da vida e de mim,  já valeu a pena o ter casado com a Julieta. (Ela que me perdoe a sinceridade e a redutabilidade).
       Casámos na  nossa querida e amada aldeia – Larinho – no mês de Agosto, no dia da Festa de Santa Luzia ( um casamento pomposo e festivo) - para mostrar que quem pode  é quem manda. Depois de calar as bocas e suspeitas de qualquer  eventual esgar de mal-dizer, com os lençóis manchados de sangue, estendidos no varal da roupa da varanda, a vida do Senhor Ramalho continuou numa felicidade incontestável. Tinha todo o orgulho na sua “ Xulietajinha “ que um Pai pode ter na sua filha. Graças à nossa integridade moral, ambos pusemos a salvo a honra  dos nossos honrados Pais.

continua...

Fontes de Carvalho

Lê AQUI o Capítulo I

Fontes de Carvalho
, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanato nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.


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