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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite, Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues, João Cameira e Rui Rendeiro Sousa.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Será que «falamos mal», tudo se reduz à «pronúncia», ou temos mesmo uma «língua distinta»?


 (Advertência: Este texto acabou por sair um “cibinho” longo. Após ponderar, decidi não o reduzir, supondo que quem tiver efectivo interesse em conhecer a «nossa língua» e a «nossa génese», o lerá até ao final. Não se arrependerá, tenho a certeza) 

Venho trazendo, por aqui, um pedaço do tanto que somos, nos distingue e nos deveria deixar extremamente orgulhosos, a que vou ouvindo designar, entre outras expressões, como «o falar dos nossos avós». Assim a jeito de uma «coisa» que está esquecida, ficou lá para trás, ao género de «era dos nossos avós, já não é nosso». Guardo, com extremo carinho, algumas coisas que da minha avó eram, bem como o faço em relação àquelas que o eram da minha mãe. Todavia, a maior herança que ambas me deixaram, vou-a partilhando por aqui. Uma herança na qual, entre muitas outras particularidades, «anteontem» era “trás d’onte”, «hoje» era “hoije” e «depois de amanhã» era “passado manhã”. Assim como no «Mirandés», “trasdonte, hoije i passado manhana”... 

Cresci nesta dicotomia entre o «falar bem Português» e o «falar mal Português». Quando estava na “bila”, por norma, «falava bem Português», a isso era obrigado. Porém, quando concretizava o meu fascínio pela aldeia, indo para casa da avó ou dos tios, durante as férias ou ao fim-de-semana, subitamente passava a «falar mal Português», metamorfoseando, até, a pronúncia e, coisas que proibidas me estavam, a utilizar, recorrentemente, calão, ou «asneiradas por dá cá aquela palha». E, em «três tempos», «por tudo e por nada», já estava a soltar um “carbalho ma racontracosa”… De regresso à “bila”, rapidamente voltava à normalidade, caso contrário já sabia que arriscaria a que «me chegassem a roupa ao pêlo»…

“Bila” essa na qual, lá por casa, ainda era vulgar haver a criação e a matança do “pórcu’e”. Alguns estranharão, e até poderão contestar, a forma como «porco» está escrita, com acentuação no [o], com a inserção de um [u], ou a colocação de um [e] no final. Advirto que a forma como a palavra está grafada nada tem de «científico», resumindo-se a um transcrição de genuína pronúncia, não apenas aquela à qual me habituei, mas também à que, com variações locais ou regionais, venho registando e estudando ao longo dos últimos 38 anos. «Cada maluco com a sua panca»...

E, pelos vistos, para lá do dito “pórcu’e”, também há o “óbu’e”, semeia-se o “renóbu’e” e, quando alguém falece, se vai «rezar a coroa»... “ó mórtu’e”. Em simultâneo, não me diziam que era um «estudioso», mas sim um “studiósu’e”, o que não era nada de “bregunhósu’e” e me deixava “urgulhósu’e”. Era o “caminhu’e” que tinha de fazer para um novo “tempu’e”. Assim cresci, com uma pronúncia e umas particularidades fonéticas, lexicais e gramaticais, que se distinguiam, claramente, do que via escrito nos livros ou aprendia, na disciplina de Português, na escola. 

Ja o contei por aqui, tudo mudou há 38 anos, quando trouxe dois colegas de académicos mundos lisboetas, a visitar as «terras de trás-do-sol-posto», como lhes chamavam. Surpreendido tendo ficado quando me questionaram acerca do idioma que se falava, particularmente nas aldeias de Macedo de Cavaleiros que visitámos. Percebi que éramos possuidores de algo estranho e, simultaneamente, distinto. À custa dessa visita e das observações que me fizeram, estão, hoje, a aturar-me aqueles que paciência têm para ler estas partilhas. 

Entretanto, por motivos que aqui não interessa dissecar, e não vejam aqui qualquer presunção, tive de dominar o Castelhano, melhorar o Francês e aprender o Italiano. Posteriormente, também tive de o fazer com o Catalão. E, para conseguir decifrar documentos anteriores ao século XIII, lá tive de aprender Latim. Como quem aprende cinco, aprende seis ou sete, lancei-me ao Galego, nas suas duas versões, o Galego-Português e o Galego-Castelhano. Um dia, acasos de destinos linguísticos, passei a lidar com o meu saudoso amigo Amadeu Ferreira, que me contagiou para aprender o «Mirandés». E assim foi… Depois, coincidências do «queimar de pestanas», fui parar a uma tese oriunda da «Universidá d'Uviéu», designação que estranha considerei para a «Universidade de Oviedo». E questionei-me: «Em que raio de idioma está escrito isto?». Descobri, aí, o «Asturianu» e, posteriormente, a «Academia de la Llingua Asturiana». Tal como, nova coincidência, fui parar ao «Aragonés» e à sua «Academia Aragonesa de la Lengua». Estas considerações surgem, apenas e tão só, para justificar algumas das «novidades» que por aqui vou e irei trazendo. Sempre considerando que há variações regionais, nomeadamente entre o «Falar da Terra Fria» e o «Falar da Terra Quente», ou distinções vincadas, à medida que avançamos, de Nascente para Poente. 

Regressemos, então, ao “pórcu’e”. O qual, em «Mirandés», até é «cochino», mas ao qual ouvi, fonologicamente, designar como “cutchinu’e”. «Mirandés» esse que, com maiores ou menores afinidades, era o que se falava no meu concelho, há cerca de 140 anos, assim no-lo legou o insuspeito Leite de Vasconcellos, que por terras Macedenses e Mirandesas andou, espicaçado pelo seu amigo Trindade Coelho, que lhe dizia que, por aqui, se falava de uma «forma estranha». Todavia, já anteriormente um grande estudioso do século XVII, de visita à região, deixava escrito que éramos «bárbaros», referindo-se aos nossos antepassados desta forma: «falam mal se os compararmos com a linguagem de hoje». Acrescentava que, para lá de usarem palavras antigas, pronunciavam-nas de forma particular: «com grande pressa fazendo somente acentos agudos e prolongados na primeira e última sílabas da dicção». Sublinhando, acentos agudos e prolongados nas primeira e última sílabas… Tal como em “pórcu’e”… 

Afirmava, ainda, que esta era a região de Portugal onde pior se tratava a língua, acrescentando que «falam o nosso idioma com grande corrupção»! Um século volvido, um outro grande estudioso escrevia que os modos de falar pela região nordestina eram «muito bárbaros, e que quase que se não podem chamar português». Ao longo de todo o século XVIII, as nossas particularidades linguísticas foram consideradas, por vários autores, aí incluídos alguns das elites da própria região, como indicadores claros do atraso e da incultura. Seria preciso esperar pelo já mencionado Leite de Vasconcellos para perceber que, afinal, aqui não se falava com corrupção o Português, idioma do ramo do Galego-Português. Aqui falava-se um idioma do ramo do Ásturo-Leonês, ao qual por mais vincado estar por Terras de Miranda, designou como Mirandês.

Por isso temos o “óbu’e”, “uobo” em «Mirandés», o “nóbu’e” e o “mórtu’e”, respectivamente “nuobo” e “muorto” no mesmo «Mirandés». Por isso nos dizia o estudioso de há 400 anos que aqui acentuávamos as palavras nas primeira e última sílabas! O «ovo», o «novo» e o «morto» que, no ainda mais ancestral «Asturianu», se escrevem «güevu», «nuevu» e «muertu»! E, já agora, o «porco» é «gochu», em «Asturianu», a nossa língua-prima. Palavras estas que, escritas e pronunciadas com [u], derivam de étimos latinos, também escritos com [u]… ovo > ovus; novo > novus; morto > mortŭu; porco > porcus… Ah! Assim como, e para os que já se esqueceram, escrevi “caminhu’e” e “tempu’e”… Que provêm, respectivamente, do Latim «camminus» e «tempus». Sempre o [u] a justificar a pronúncia… Palavras que, em «Asturianu», se escrevem «caminu» e «tiempu». “Rais’parta”!

Por isso, numa «guerra» que já por aqui trouxe, o «chouriço de ossos» é butelo e não «botelo»… A finalizar, e deixarei a paragoge do [e] para outras núpcias, uma breve nota ao sufixo nominal [-oso], utilizado nas palavras que deixei anteriormente “studiósu’e”, “bregunhósu’e” e “urgulhósu’e”. Sufixo esse que, em Português, se pronuncia [-ôso]. Todavia, o mesmo deriva do sufixo latino [-osus], daí o [-ósu]… E adivinhem lá, como se escrevem em «Asturianu»? Pois é… «estudiosu», «vergüenzosu» e «arguyosu»! Ah, pois é! 

Convém não esquecer que fomos «colonizados» por Ásturo-Leoneses, que os Romanos, aqui chegados, nos integraram, como Ástures que éramos, no «Conventus Asturicensis», cuja sede até foi a da nossa Diocese até aos inícios do século XII, acrescendo que, até bem tarde, as instituições que por aqui maior influência exerceram, foram mosteiros Leoneses, um deles que até mandou no «primo» Mosteiro de Castro de Avelãs, o grande centro espiritual medieval da região, fundado à luz e sob os mesmos preceitos desse par de mosteiros Leoneses… Mas, sobre estes temas históricos, pode ser que, num qualquer futuro, também traga aqui qualquer “cousa”. Como me pediu um grande Senhor: «Antes que bata a bota e leve o conhecimento consigo para a cova, deixe-o, por favor, cá ficar». É isso que vou tentando fazer, esperando que a dita cova ainda tarde muitos anos… 

“C’mu quera”, consiga influenciar alguns a terem orgulho no tanto que temos e somos. “Pur’i”… Ou como gostaria que nas minhas terras sucedesse algo semelhante à Catalunha, onde, em simultâneo, os seus naturais falam uma língua occitano-românica, o Catalão, e uma ibero-românica, o Castelhano… Aqui, embora sejam ambas ibero-românicas, uma é do ramo do Galego-Português, a outra, do ramo do Ásturo-Leonês. Tenho um especial apreço por ambas. Esperando que a «norma-padrão», o Português, não mate, de vez, o belíssimo idioma que, por aqui, o antecedeu.

Rui Rendeiro Sousa

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