terça-feira, 19 de novembro de 2019

O ABADE DE BAÇAL

Retrato do Abade, da primeira década deste século
(com cerca de 40 anos)
Francisco Manuel Alves, nasceu no Bairro Novo de Baçal, na rua do «Paceo ou Pacio», conforme ele diz, às 7 da manhã de 9 de Abril de 1865. Seus pais, Francisco Barnabé e Francisca Esteves, eram lavradores abastados – cerca de 15 hectares de hortas, lameiros e terras e pecuária correspondente permitiam desafogo suficiente a todo o agregado, bem visível na estrutura e dimensão da Casa, mais tarde reforçada pelo Abade (ver Adérito Branco, O Abade de Baçal – Vida e obra, p. 22).
Teve cinco irmãos, ele o primogénito, e só lhe sobreviveu a irmã Luzia, tendo os restantes falecido com menos de 25 anos. Da sua juventude pouco nos disse e pouco se sabe. A educação rural ministrada, idêntica à dos filhos dos camponeses similares da época em aldeia de gente pacata e simples, moldou-lhe o carácter e os valores: sempre os princípios e comportamentos da ruralidade trasmontana o impregnarão por inteiro.
Provavelmente os trabalhos cíclicos da agricultura com que lhe ocupavam o tempo, ou a teimosia em não aparecer escola das primeiras letras próxima do lar levaram a que só iniciasse os estudos aos 10 anos de idade. E, talvez, o longo caminho que tinha de percorrer diariamente para se deslocar às escolas que frequentou (num total de 3 808 km, segundo a sua contabilidade em Quilómetros que tenho andado), primeiro em Rabal – dos dez aos doze anos – e, depois, em Sacoias – dos doze aos quinze – ou a dificuldade em aclimatar-se a novas normatividades no comportamento e no intelecto possam explicar a repetição de um ano de escolaridade. Por outro lado, é daqui que lhe terá ficado o gosto pelo pedestrianismo (segundo os seus próprios cálculos andou, até perto da morte, 161 055 km) e pelos horizontes largos...
Já com quinze anos muda a residência escolar para Bragança onde ingressa no Liceu e nos Preparatórios e, cerca de dois anos depois, passa para o Seminário de S. José onde terminará o Curso Teológico em Junho de 1889, já com 24 anos.
Das poucas informações conhecidas sobre a sua vida académica presume-se que não terá sido um aluno dócil, com certeza até algo irreverente e aventureiro, assim como sonhador... Desta época ficou-lhe para o mundo a alcunha de Robespierre, ou Robs na abreviação, sistematicamente utilizada ao longo de quase toda a sua vida para assinar artigos na imprensa e correspondência mais íntima. Se Robs era a abreviatura assumida, algo elitista na historicidade, os bacelenses alcunhavam-no de Grande – aliás, em resposta à alcunha proferida sibilinamente terá respondido: «Sou Grande; cabe cá tudo!».
Aquela alcunha ter-lhe-á sido atribuída, e logo assumida, pelo temperamento revolucionário ou contundente, mais ou menos romântico, ao gosto da época, pela displicência na obediência à regra seminarista muitas vezes demonstrada em comportamentos menos urbanos e, também, em críticas e desencontros a alguma hierarquia docente. Este espírito informal, aberto e franco, mas crítico, nunca o abandonará, as mais das vezes comedido, mas, por algumas vezes em missivas menos expostas, felinamente desbragado em resposta a insinuações ou críticas injustas. Aliás, ele próprio o confessa, aos 66 anos de idade, em carta dirigida a José Montanha (In Hirondino da Paixão Fernandes, 1973, p. 31-2): «Coitados! Nem sabem do que eu sou capaz e de quanto sou mau, com os maus, mas sempre disposto a esquecer tudo quando vejo sinceridade. Fica sabendo, meu José, que nos Exercícios pedi perdão ao Mota e tencionava fazer o mesmo ao abade, chegando mesmo a falar-lhe, mas, como aquilo era um fervet opus continuo, não acabei de lhe dizer tudo, o que farei logo que possa. Sou assim, se quiserem entrar na boa cordialidade, tudo está esquecido, senão não». Era um trasmontano justo e recto, honrado – como se dizia –, que não se desviava minimamente dos obstáculos que lhe semeavam.
Desta época de estudante lhe terá ficado também o gosto pela amizade franca, mais ou menos singular, cultivada em correspondência e tertúlias amenas e periódicas ao sabor do «pingato» regional – «No fim de contas, o pingato é sempre a melhor coisa que Deus deixou no mundo para dissipação das borracheiras que os das ideologias andam a engendrar constantemente metendo a humanidade em morticínios e canseiras que não valem um copinho da mais reles zurrapa, apesar de se não cansarem de dizer que essas ideologias fazem a felicidade da humanidade» (ibidem, p. 38) –, apesar de só o ter começado a beber aos 28 anos de idade. Até lá, como ele diz, só moderadamente bebia aguardente e vinho fino.
Estando em Bragança toda a década de oitenta não terá deixado de participar e acompanhar os colegas e amigos nas tertúlias e comemorações académicas da altura, já que a tradição escolar impunha alguns rituais à urbe, mais tarde apelidada de Coimbra em miniatura. Os dois chumbos que granjeou, um dos quais a História, dever-se-á à irreverência juvenil a alguma docência soberana e conservadora avessa a espíritos abertos e interrogativos.
Gostava de poesia. Escreveu muito verso enquanto estudante, geralmente a realçar os defeitos ou comportamentos dos padres-professores, e que ia fazendo circular pela classe. Já padre em exercício, a partir de 1890, ainda copiava para os seus cadernos poemas de Camões e de contemporâneos românticos, mas também de Bocage. Só se conhece dele um soneto de Mairos, datado de 90, em que as confusões e incertezas deste mundo são atribuídas aos teólogos, médicos e letrados (ver Boletim do Museu do Abade de Baçal, 1, 1998, p. 4).
Em 1896 o Abade é colocado na sua aldeia natal; regressa, pois, a Casa.
Havia já algum tempo que ele tentava – o que era a prática corrente da época – através de párocos amigos com alguma influência, conseguir nomeação para paróquia próxima de Bragança – ainda surgiu a hipótese de ser colocado em Fresulfe – quando, em 94 ou inícios de 95, fica vaga a paróquia de Baçal. Pensamos que com a ajuda política de Abílio Beça, dirigente regenerador, e a aquiescência de Alves Mariz, ele consegue essa provisão. A partir desta data, com a morte do pai, vai passar a gerir a empresa doméstica, na companhia da mãe e irmã, e com óptimos resultados: a paciência franciscana e a sabedoria camponesa permitem-lhe, através de compras e trocas, reunir mais de 150 parcelas alheias para constituir a cortinha anexa à casa (cerca de 12 hectares segundo as suas medições). Ao longo da vida adquirirá muitas outras propriedades por compra ou como pagamento de empréstimos monetários.
O seu envolvimento na política de então é esporádica, e poderá ser motivada pela sua nomeação para Baçal. Em 23/8/1906, O Nordeste, jornal progressista dirigido pelo seu futuro grande amigo Raul Teixeira, em artigo titulado «Fóssil reverendo» diz-nos que «um sacerdote deslavado – podem tomar o termo nos dois sentidos: próprio e figurado – evidenciou, no passado domingo, junto à mesa eleitoral da assembleia de Santa Maria, uma habilidade e aptidão (...) O reverendo soba de Baçal (...)» (e aqui temos de agradecer as sempre amáveis informações de Hirondino da Paixão Fernandes – ver, mais adiante, a sua recolha dos Ecos da imprensa, ano de 1906). E recordamos ter lido, também em O Nordeste de Novembro de 1908, artigo idêntico contra o Abade em que se falava em manipulação de votos. Desta eleição será o Abade eleito vereador para a Câmara Municipal, na companhia de Abílio Beça, onde se manterá até à República. Talvez esta sua intervenção pontual na política local possa explicar a sua não nomeação para director do Museu Regional criado em 1915, como no-lo deixa entender o Legionário Trasmontano de 11/11/1915: «Constando que para conservador do Museu Regional de Bragança era preterido o conhecido arqueólogo Abade de Baçal pelo Sr. Álvaro Carneiro (...) Bem sabemos que não é muito do agrado de alguns vermelhos e de certos verdes que o Sr. Abade de Baçal seja nomeado Conservador Regional (...)» (Idem, ano de 1915). Lembramos que, nesta data, já o Abade tinha publicado três volumes das Memórias... e dezenas de artigos na imprensa. E depois deste caso o Abade quedará sempre acima das intrigas políticas locais e a sua figura deixará de ser conotada com qualquer facção política, afirmando-se, local e nacionalmente, através do conteúdo da sua obra.
E é a nível nacional que surgem as primeiras consagrações – logo em 16 é eleito sócio da Academia das Ciências e só a partir de 17 é que surgem as primeiras homenagens locais. É, pois, já com mais de 50 anos que é homenageado localmente pela sociedade civil e eclesiásticos amigos e será somente aos 70 anos que, se calhar com alguma inevitabilidade, a diocese o eleva à dignidade de Abade devido aos seus «profundos estudos históricos e proficientes investigações arqueológicas», título há muito ofertado já pela sociedade civil.
A grande «canonização laica» do Abade, como ele lhe irá chamar no tomo X, foi a da sua jubilação, em 9 de Abril de 35. É um acontecimento nacional em que as mais altas figuras da cultura nacional o vêm homenagear, as universidades se fazem representar, os dirigentes políticos distritais e centrais não deixam de discursar, a par da presença de amigos, familiares e povo anónimo. É nesta altura que o nomeiam patrono do Museu e o seu busto é descerrado no jardim António José de Almeida; em suma, é a partir desta data que a sua imagem de homem-bom, notável estudioso e escritor que deu visibilidade e entendimento à história distrital se consagra definitivamente, se agiganta e se institucionaliza, onde todos os trasmontanos se revêem no temperamento, nos comportamentos, no saber, no modo de vida. É o pai da nação trasmontana que nasce.
É claro que esta homenagem é a apoteose de um processo afirmativo que começa com a publicação sistemática de textos na imprensa e dos volumes das Memórias... que periodicamente saem do prelo, os quais, já em meados da década de dez, o escol científico do país respeita e cita. Os maiores promotores e divulgadores do Abade e da sua obra foram os mecenas, sobretudo Raul Teixeira e José Montanha. Foi esta amizade-total, esta entrega, este empenho aturado no homem e na obra que o levou à consagração. Foram eles que geriram financeiramente a publicação das Memórias... (sobretudo a partir do 3° volume), o auxiliaram diariamente na gestão e afirmação do Museu e da sua imagem pública.
É à sombra de Baçal que o Abade se afirma perante o país. É pois, a Baçal, que os peregrinos da cultura se deslocam sistematicamente à procura de informações fidedignas, da sageza dos pareceres, de leituras ou pelo simples prazer da cavaqueira diáfana. Dessas visitas amigas tomava ele nota na parede da varanda romana, onde desenhava epigraficamente os nomes e as datas.
Quase todos os grandes passaram por lá: de Leite de Vasconcelos a Teixeira Lopes, de Abel Salazar a Paulo Quintela, Jorge Dias, Egas Moniz, Joaquim de Carvalho e tantos outros, dos quais grande parte deixou referências de admiração e apreço pela dimensão do homem e da obra. Mas, sobretudo, pelo homem: pela horaciana ruralidade, na feliz designação de Telmo Verdelho e pelo franciscanismo dos ditos e dos comportamentos, no dizer do seu discípulo Belarmino Afonso (ver os textos destes autores nas Actas do Colóquio do Abade de Baçal, 1999). A única excepção que conhecemos a este coro unânime e universal é a de Miguel Torga (ver Ernesto Rodrigues, A estilística das Memórias..., idem, 129-133).
É em Mairos, onde esteve entre 1890 e 1896, que nasce o sacerdote e se manifesta o investigador. De facto, é aqui que ele se inicia como articulista – publicando, pelo menos, dois pequenos textos (ver, adiante, a bibliografia activa elaborada por Hirondino da Paixão Fernandes) – e se manifesta para os estudos históricos motivado pelas obras que encontrou na biblioteca de Chaves – ele refere-se explicitamente a Argote em vários textos e no manuscrito.
Cliché de A. Soucasaux, de Barcelos,
retratando Raul Teixeira, Abade e José Montanha, na
década de trinta
Algumas das obras mais importantes que tenho lido (Arquivo do Museu do Abade de Baçal) – onde se deslocava periodicamente para se abastecer de livros. É óbvio que o despertar para os estudos históricos, passando pelo sempre referido encantamento estimulante proporcionado pelas lendas e histórias que a Tia Luzia Alves lhe contava ao serão (Memórias..., X, 544), foi proporcionado pelo Seminário e pelas leituras paralelas que ia fazendo. O Seminário foi reorganizado com o novo bispo, Alves Mariz, a partir de 1886, sendo reformulados currículos e programas (Mons. José de Castro, Bragança e Miranda, IV, p. 91-97) e a pastoral deste bispo, no domínio da ciência histórica, vai proporcionar uma imensa recolha de materiais e chamar a este campo múltiplas vocações de todo o bispado (lembremo-nos dos seus amigos Abade Tavares, Monsenhor José de Castro, P.e Firmino Martins, entre outros).
Por outro lado, convém ter presente que os românticos tinham deslocado a atenção cognitiva para o povo, com aproximações de natureza estética e histórica, investigando usos, costumes e tradições e, já depois dos meados do século, esta aproximação é enquadrada disciplinarmente e rapidamente ganha suporte erudito, e depois de 1875, dos trabalhos de Adolfo Coelho e Teófilo Braga, a cultura popular ganha estatuto de objecto científico. É neste contexto que se inicia o estudo do território, das gentes, do seu carácter – da cultura popular em resumo –, no sentido de regenerar a nação de um século de desistência nacional a que o Ultimatum dá alguma visibilidade e consciência. É essa espécie de traumatismo nacional que remete para a urgência desse estudo, para uma espécie de reformulação ou reestruturação dos alicerces sociais, do conhecimento do território, dos recursos, da história. E é assim que a ruralidade se estrutura como a essência verdadeira da nação mesmo em termos morais, e o local, o regional, ganha legitimidade e estatuto próprio e o método etnográfico se afirma como adequado ao estudo dessa realidade (ver o artigo de Augusto Santos Silva, in Recuperar o espanto: o olhar da antropologia – coord. de Vitor O. Jorge e Raul Iturra –, p. 117-141).
A nível das leituras paralelas cabe recordar rapidamente que é na segunda metade do século XIX e, fundamentalmente, no quartel finissecular que se vai estruturar a primeira etnografia portuguesa dentro de um clima moral e social específico, pelas mãos de Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos, Teófilo Braga, Consiglieri Pedroso, assim como Martins Sarmento, Alberto Sampaio, Carolina Michäelis, Rocha Peixoto, Ricardo Severo e tantos outros, estruturando-se o saber em revistas, em sociedades, em museus, em exposições, e tendo por base uma rede organizada de personalidades, instituições e saberes.
A este nível podemos acrescentar, a título meramente informativo, que a actuação do Abade na prospecção histórica – cuja concepção é de natureza herculaneana mas convergindo já as várias vertentes da história com a linguística, a etnografia, a arqueologia, o folclore, etc. – é coincidente, nos seus aspectos organizacionais, com a de Leite Vasconcelos: a par dos trabalhos de campo periódicos organizam uma malha de informadores locais que os abastecem de factos e notícias que eles seleccionam e utilizam. No caso do Abade, a investigação histórica baseia-se na transcrição dos documentos originais, nas «excursões archeologicas» assinaladas nos Couseiros –cadernos não paginados onde assentava «cousas» ou, então, como aparece em vários, «notas a esmo» – e na imensidão da correspondência recebida dos informadores distritais, muita dela originalmente organizada por volumes das Memórias – e aqui conviria investigar os milhares de missivas recebidas pelo Abade e averiguar da forma de tratamento e utilização da informação veiculada.
Organizado como era, dá-nos conta no manuscrito Algumas das obras mais importantes que tenho lido (Arquivo do Museu Abade de Baçal), a par da inúmera teologia, cronistas e clássicos do reino, dicionários e revistas (Revista de Guimarães, O Panorama, O Instituto, O Arqueólogo Português, O Ocidente, O Arquivo Pitoresco, e onde, em algumas delas, salienta os seus principais colaboradores), das obras então publicadas e já consultadas por ele – em selecção rápida de autores coevos ou próximos assinalamos, entre outros, Adolfo Coelho, Pinheiro Chagas, Martins Sarmento, José Leite de Vasconcelos, Luciano Cordeiro, José de Arriaga, Mendes dos Remédios, Camilo, Emílio Hubner, Oliveira Martins, Luz Soriano, Alexandre Herculano, Rebelo da Silva, Gama Barros, Guerra Junqueiro, Rocha Peixoto, Sousa Viterbo, Raczinski, Teófilo Braga, Joaquim de Vasconcelos, Raúl Brandão, Martins Capela. A par desta listagem informa-nos, em muitos casos, de quem lhe proporcionou a obra – fundamentalmente colegas seus – ou o local onde a leu - geralmente a Biblioteca de Chaves, a do Seminário de S. José de Bragança ou a Biblioteca Municipal do Porto.
Quase podemos afirmar que é com estes suportes disciplinares afins – relembrando a convergência do saber histórico, arqueológico e etnográfico, na época confundindo-se muitas vezes científica e metodologicamente – que ele vai construir a sua imensa obra.
Outra fonte preciosa nunca utilizada no estudo da obra do Abade são os Couseiros, relativos, alguns em exclusividade, às suas excursões arqueológicas, reais cadernos de campo onde o lápis infelizmente se adianta à caneta (e hoje imensas páginas ilegíveis...), onde descrevia tudo o que detinha valor histórico das localidades visitadas, assim como o nome de informadores (por exemplo, o Couseiro n.o 3), «pessoas a quem ficava a dever favores ou atenções», formas utilizadas na deslocação e respectivas despesas e perda de receitas, assim como anotações adidas posteriormente e com pouco a ver com a temática histórica.
Geralmente refere, quando acompanhado, o nome do companheiro – na 5ª e 6ª excursão foi o P.e José Miguel Machado a assessorá-lo – e, muitas vezes, até refere a merenda: na 6ª excursão, à Puebla de Sanábria, a 4 de Julho de 1909 – «donde voltei na mesma semana» –, foi munido de um leitão assado e um frango; noutros casos era um folar, uma empada de sardinhas... Mas nem todos eles são dedicados exclusivamente às excursões, havendo, pelo menos, um temático – o XIII, que trata unicamente do cancioneiro bragançano.
Assim, a título de exemplo, temos no Couseiro n.° 3, em excursão arqueológica decorrida entre 27 e 31 de Janeiro de 1908 a Macedo de Cavaleiros, Chacim, Malta, Castelões, Vilar do Monte, Pinhovelo e Travanca, os seguintes gastos:

«Fui lá duas vezes – de comboios idas e vindas, cada 580 2:320
De hospedarias 1:600
Transporte das lápides para Macedo 1:500
Transporte d’uma lápide para Lisboa 600
Embalagem da mesma de madeira e pregos e paga ao homem que fez esse serviço 600
Compra de uma das lápides 1:500
Compra de uma moedas [sic] e outras antigualhas 1:500
9:620
Duas missas que perdi de dizer por essa causa 600
Também deixei de assistir a um enterro na freguesia 1:500
11:720»
Pouco adiante, no mesmo Couseiro, e alargando o âmbito específico do caderno, informa-nos que «em 16 de Abril de 1908 fui ao Porto aonde me demorei 15 dias a consultar na Biblioteca Municipal livros raros que não era capaz de apanhar cá por cima.

Gastei
Dois pares de botas 4:500
Comboio – ida e vinda 6:040
No hotel a 1000 rs. por dia 13:180
Uma fita metrica 1300
Uma thesoura curva 600
Uma jaqueta 7:000
13 lenços pequenos 1:200
1 escova 140
Livros que lá comprei 10:300
Gratificação ao Sacristão da egreja das Taipas onde celebrei missa 500
Cynematographo 600
4 lenços a 1:400 (para minha mae e irmã) 5:600
50:960
Transporte 50:960
Um bonet para o Mael António 450
Guarda sol 900
Oculos pretos e caixa 850
Comes durante a viagem e em Bragança 1:250
Custo de uma mala de couro 4:000
Uma saca de chita 300
Album para retratos 4:500
Gorgetas, cafés, gazosas 1:000
Machina photographica e aprestes 20:000
84:210
Um copo para beber agua, de borracha 340
84:550»

Ficamos a par, assim, entre outras coisas, dos contactos do Abade com as tecnologias de ponta da época: cinematógrafo e máquina fotográfica. Aliás, alguns destes objectos agora adquiridos já ele, no início do Couseiro, os manifestava como a adquirir para as suas lides excursionistas.
Estas excursões arqueológicas, decorridas ao longo de toda a vida do Abade, demoravam geralmente 3, 4 dias, raramente oito, pois implicava incomodar congénere para o substituir nas suas obrigações paroquiais. Da consulta dos 15 Couseiros verificamos que as excursões decorreram da forma que segue:

1907 2
1908 3
1909 3
1910 2
1916 1
1918 1
1920 1
1924 1
1926 1
1927 4
1929 3
1930 1
1931 5
1932 10
1933 8
1934 8
1935 4
1936 6
1937 4
1938 1
1939 3
1942 1
1942 1
1943 2
1944 2
1945 1
1946 1

Num total de oitenta excursões, algumas das quais a Lisboa e Porto, é em 1932 o maior número de saídas. Por outro lado, nem sempre às excursões corresponde descrição pormenorizada da mesma ou procede ao levantamento de informações, já que muitas delas são efectuadas a pedido de individualidades distritais para se pronunciar sobre algum facto ou espólio patrimonial, e as conferências que proferiu no Porto e em Chaves também entram nesta contabilidade. Por exemplo, de 18 a 20 de Maio de 1936 serviu de cicerone a alunos do Liceu, na companhia de Pires Quintela, em viagem de estudo por todo o distrito e concluirá que «algo aproveitei para os meus estudos sem gastar nada, cousa que nunca me sucedera» (Couseiro n.° XIII). Todavia, já na excursão n.° 43 referira que, «em 1 de Outubro de 1935, parto para Vinhais, Landedo, Alto da Serra da Coroa, termo de Montouto, onde fui despedir-me das excursões arqueológicas». Não adivinhava ele que estava a pouco mais de meio...
A quase totalidade dos textos e esquissos produzidos – reproduzindo brasões, insculturas rupestres ou texto epigráfico – estão cortados, indicativo de terem sido utilizados para publicação. O Couseiro n.° 4, datado de 1918, abre com um texto não cortado – portanto, provavelmente não utilizado – e que reproduzimos para ilustração metodológica:

«Ponte Velha no Sabor perto de Bragança conhecida por Ponte das Carvas.
Tem tres olhaes – arcos em ogiva de lanceta. – No olhal do meio ainda se veem os agulheiros de um e outro lado, nos das extremidades não se veem devido a reboco da argamassa que tem levado e a reconstrução posterior.
A reconstrução é evidente no olhal do nascente a jusante pois o cortamar é aguçado em angulo, neste só resta dele pouco mais de um metro á superficie da terra e sobre essa parte construiram uma sapata, resalto que consolida o pano da ponte.
É evidente aí a reconstrucção e por isso desapareceram os agulheiros.
Esta sapata ou resalto construida sobre a parte do cortamar arruinado sae do pano da ponte cousa de um metro.
Parece que da primitiva ponte só ficou o olhal do meio sendo reconstruidos os das extremidades; no entanto os arcos são em ogiva.
O piso, ou tabuleiro em cima é plano horizontal e não levantado em angulo como n’outras pontes, verbi gratia, Castro de Avelãs, etc.
O aspecto da ponte é de formidável solidez, ancas fortes e robustas, agora muito mais augmentada pela hera que a reveste quasi toda a ponte em vistosos festões e grinaldas de verdura sobre a corrente concorrendo tudo para dar ao local, já de si ameno e pitoresco, tom encantador, realçado pelos gorgeios de mil avezinhas que cantam amores em todas as tonalidades num perpassar incessante de azazitas por entre o ramalhar do arvoredo, á tépida luz deste sol de maio que esbate no quadro as cambiantes seduções das meias tintas impressionantes, arrebatadoras de magia e encanto.
Os materiaes da ponte são os da localidade, pedras mais ou menos schistosas ligadas por argamassa. Nem sequer uma pedra de granito, tudo alvanaria».

Retrato do Abade de Baçal a tinta-da-China
sobre papel, da autoria de
Domingos Vinhas, datado de 1928
Toda a gente sabe que a obra de fôlego em que se empenhou durante toda a sua vida foram as Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, em onze volumes, iniciando a impressão do primeiro volume em 1909 e terminando a do último já em 1949, depois de ter falecido. É nestes volumes que está compulsada a história do distrito em todas as suas vertentes, apesar de nos ser apresentada de uma forma muitas vezes desordenada em grande parte dos volumes. Podemos dizer, em termos abreviados, que nos primeiros oito volumes desta obra está retratada a história institucional do distrito – política e sociedade, economia, genealogia e religião – e onde a informação temática está mais disciplinada, e nos três restantes se dedica de preferência à arqueologia, à arte e à etnologia da nossa zona, e onde os assuntos estão mais desorganizados, muitas vezes em complemento de assuntos já anteriormente tratados. Talvez isso tenha a ver com a forma como ele ia organizando os volumes: muitas vezes tinha na tipografia a serem compostos dois e mesmo três volumes ao mesmo tempo e conforme ia redigindo novos textos ia-os encaixando nos volumes em impressão mais adequados no momento. Até porque ele na década de vinte fala nas Memórias...como uma obra a levar a cabo com nove ou dez volumes e na década de quarenta fala já em doze. Daí, também, talvez, o enorme espólio manuscrito que deixou há 55 anos (que só agora está a ser catalogado) e a necessidade de verificar-se todo ele.
É verdade que o Abade conseguiu servir a religião e a ciência. Mas também é verdade que estas duas características dominantes da sua actividade mutuamente se influenciaram e se conciliaram. Basta ver a dimensão humanista globalizante que lhe conferiu o exercício do método científico permitindo-lhe uma visão da religiosidade muito pouco ortodoxa. É evidente que a metodologia da história erudita que ele praticava e que baseava no documento toda a possibilidade de verdade – e menos na sua relação com todo o contexto da sociedade e no manuseamento intelectual operado por ele próprio enquanto historiador – permitiam esta bidimensionalidade na sua labuta diária. Mas também é verdade que a heurística metodológica que aplicava se revelou em inúmeros momentos, conduzindo-o à humilde lucidez do entendimento da relatividade dos princípios, dos conceitos, das práticas sociais. Isto está bem evidente no «Preâmbulo» do quinto tomo (p. XI) das Memórias...: «Cristo pregava contra as sinecuras proventosas dos alapardados à sombra da Lei; revolucionava o povo; pregava um socialismo, chamemos-lhe assim, o socialismo que surge em todas as nacionalidades quando corrompidas pelas prepotências dos grandes açambarcadores (...), pregava uma melhor compreensão dos deveres sociais e humanitários; pregava contra o alto sacerdócio que engendrara uns cânones, uma teologia, dita Cabala, a seu modo, para melhor governar-se e estes, principalmente, (...) é que o mataram. Pois se voltasse de novo ao mundo e azorragasse uns tantos mandões fariseus que lhe mercadejam e deturpam a doutrina, inapelavelmente seria mandado fuzilar pela segunda vez».
Mas também se pode ver noutros textos: por exemplo, em «O Padre?!... Eis o inimigo. Razões históricas do ódio votado a esta classe».
Esta espécie de descrença na condição e no caminhar do humano também se revelou na política. Já dissemos que o Abade interveio pontualmente na política como regenerador e depois, também na área conservadora, na década de vinte, aqui já menos empenhadamente e sob pressão de Raul Teixeira.
Sabemos que na década de quarenta, em entrevista, afirmou que nascera regenerador e morreria regenerador. Mas, no fundo, o Abade já acreditava pouco na política e, se calhar, não muito mais na civilização...
A década de trinta parece ser de profunda crise de descrença para o Abade, altura em que ele tem correspondência reveladora do seu estado de alma para Abel Salazar, por exemplo, bem retratado no projecto que iniciou sobre «a Questão Social – Ideologias, verdadeira e única solução» e que nunca chegou a ultimar mas de que há referências vagas na sua correspondência.
Referencia-nos as desigualdades e injustiças sociais, culturais e económicas da nossa sociedade de então e propõe-nos, como sua alternativa, um modelo estruturalmente utópico – o regresso à natureza-mãe, ao primitivismo troglodita, nas suas palavras. Elaborado em época de crise social acentuada (política e económica), todavia, o Abade de Baçal não patrocina o modelo escatológico ou quiliasta tradicional – cuja concretização se efectuará num futuro mítico – mais ligado à religiosidade cristã (desde o Apocalipse de S. João), mas, antes, propõe um topos característico das utopias nostálgicas de cariz acentuadamente romântico.
É no sentido de fazer parar todo o processo civilizacional oriundo do desenvolvimento mal orientado da industrialização e da ciência oitocentista que o Abade espera que seja esse próprio desenvolvimento técnico-científico desencadeado e ligado à arte bélica a pôr fim a esta civilização calamitosa, propondo, desta forma, um retorno a um estado mítico original puro, isento de desigualdades sociais e onde reinaria a liberdade e a concórdia entre os homens. Outras utopias mais ou menos similares, nascidas depois da industrialização e despertando sentimentos nostálgicos, podiam ser invocadas, nomeadamente, por mais próximas – décadas de trinta-quarenta –, as de Aldous Huxley e Hermann Hesse.

Vejamos um manuscrito inédito até há pouco (por nós publicado no Boletim do Museu Abade de Baçal, números 0 e 1), datado de 1936, altura em que muito se questionou sobre as temáticas da religião e do poder, muitas vezes em correspondência com Abel Salazar, que nesta data tinha sido expulso da Universidade do Porto e a quem o Abade manifestou solidariedade e compreensão, e altura, também, em que num texto filosófico de Abel Salazar, a ser publicado numa revista, uma longa citação de cerca de duas páginas do preâmbulo do volume dos Judeus foi totalmente cortada pela Censura:

«Deixemo-nos de lerias e de ilusões; neste mundo só há uma lei, um principio absoluto, basico, fundamental: comer e ser comido, tudo o mais gira em volta dele.
Daqui veem as mirabolancias, os jogos malabares com que os espertalhões embasbacam os pequenos [?] afim de os comer com o minimo de esforço possivel.
Daqui vem a ideia de meu e teu; a ideia de pátria, grandeza, nobreza de pátria, dar o sangue pela pátria, influxo civilizador da pátria e mil outras mentiras por este teor, que criam esses viveiros de espertalhões devoristas chamados: militarismo, escola de imoralidade, do assassinato legalizado; magistratura, autêntica buceta de Pandura; burocracia, política, politicos, organização administrativa, financeira, etc., interminavel alcateia de aventureiros e vampiros sugadores; magisterio afim de habilitar os supraditos a comer e saber comer; clericalismo que adapta dogma e culto às conveniencias dos mesmos para devorarem os outros sem escrupulos nem recalcitramento.
(...) A que vem, pois, pregar caridade, abnegação, amor do proximo, justiça, sentimentos humanitarios, apezar de eu achar admiraveis todas estas conceções e de muito os ter pregado e praticado com especial satisfação, se a lei do comer e ser comido e conseguintemente o mal, é inexoravel, fatal, dominante em toda a natureza viva desde os ínfimos seres da escala zoologica até aos superiores, onde dizem estar o homem, sem excluir os vegetais?!
A que veem os planos mirificos das novas organizações sociais – teocracias, aristocracias, democracias, republica, socialismo, comunismo, sovietismo, etc., se a politica lei hade cumprir-se e comer é a arte suprema, a arte das artes – ars artium regimen barrigarum!».

Como se sabe foi ainda nos finais do século XIX, em 1897, que se fundou o Museu Municipal de Bragança da iniciativa de Albino Pereira Lopo. A adesão a esta ideia, originalmente exposta em 1896, foi unânime em todos os sectores da sociedade bragançana e também o Abade de Baçal vai colaborar com a iniciativa através da oferta sobretudo de numismas para, já no século seguinte, a alargar a materiais arqueológicos e etnológicos. Contudo, não era uma colaboração exclusiva, porque, sensivelmente da mesma altura, data o início da sua aproximação a Leite de Vasconcelos e, para o futuro Museu Nacional de Arqueologia, seguirão inúmeras peças de arqueologia e etnologia ora ofertadas pelo Abade ora adquiridas por seu intermédio.
Todavia, com o passar dos anos evidencia-se a estagnação do Museu Municipal. É com a criação do Museu Regional, em 13 de Novembro de 1915, que se vislumbra a possibilidade de uma nova dinâmica museológica – até porque o decreto estipulava a integração do Museu Municipal no novo – que se gorará à nascença, pois nem o acervo do Museu Municipal integrará as colecções do antigo Paço Episcopal nem uma nova dinâmica se instalará. É que a nomeação de Álvaro Carneiro para o cargo de director – algo politizada – foi apoiada por Lopes Cardoso – então deputado e futuro ministro – e José de Figueiredo – director do Museu Nacional de Arte Antiga –, e não foi bem aceite por vários bragançanos – nomeadamente por Raul Teixeira, na altura juiz, e já amigo do Abade de Baçal – que na imprensa regional manifestaram os seus pontos de vista e sustentavam o Abade como o candidato adequado para o cargo.
Caricatura do Abade de Baçal a tinta-da-China
sobre papel, de Francisco Valença, de 1935,
e publicada na imprensa
O estatuto social e cultural que o Abade tinha já conseguido nesta altura e os apoios públicos então manifestados terão levado Júlio Dantas a trocar alguma correspondência com ele no sentido de lhe entregar a direcção do então criado Arquivo Distrital e Biblioteca Pública de Bragança, também sediado no edifício do ex-Paço Episcopal. Depois da troca de várias missivas de negociação o Abade acaba por não aceitar o cargo pois não prescindia de remuneração para o seu desempenho – ou, não remunerado, deslocar-se-ia apenas dois ou três dias por semana ao Arquivo, o que Júlio Dantas não aceitava.
Álvaro Carneiro manter-se-á na direcção do Museu até à sua morte, em 1925. Neste período apenas foi incorporado – se atendermos aos poucos documentos existentes –, «em 23 de Maio de 1919, um frontal, pintura em coiro do século XVI, que se encontrava na sacristia da Igreja de Santa Clara, ao abandono», segundo ele mesmo diz no final do Livro de Registo (Arquivo do Museu Abade de Baçal).
O Abade foi nomeado director do Museu em 11 de Fevereiro de 1925 e tomou posse cerca de um mês depois. De imediato, com o apoio dos amigos Raul Teixeira e José Montanha, tratou de criar o Grupo dos Amigos dos Monumentos e Obras de Arte de Bragança – que também há-de funcionar, ainda que informalmente, com a denominação de Grupo dos Amigos do Museu – que terá um papel fundamental a desempenhar na preservação e conservação do património bragançano e na organização do Museu, que, até este momento, só o era de nome.
A concepção do Abade acerca do papel a desempenhar pelos museus está bem patente logo no 2° volume das Memórias (p. 381): «Entre os estabelecimentos de educação em Bragança avulta o Museu Municipal. É incontestavel que as collecções reunidas nas casas d’esta ordem representam somma enorme de conhecimentos accumulados e são factor importante na educação de um povo perante o qual fazem passar as civilisações extinctas, a vida intima de seus antepassados, mostrando-lhe como os processos e utensilios rudimentares se foram lentamente aperfeiçoando, e fazendo-lhe vêr como no campo da industria, da arte, o mais simples progresso, a mais vulgar perfeição, representa o anhelo do genio, do talento, da audacia, para um bem estar, uma commodidade superior».
A faceta educativa aparece dominante num contexto de explicação evolucionista das civilizações já desaparecidas, remetendo para a arqueologia um papel dominante nessa seriação, interpretação e busca das origens das civilizações, pois o artefacto «fala por si»: «Quantos problemas historicos e geographicos ficariam eternamente irresoluveis sem o auxilio d’essas collecções e da sciencia archeologica da qual são objecto de estudo?! Quantos textos antigos seriam incomprehensiveis sem o seu auxilio?! A archeologia é valioso auxiliar de todas as sciencias, e não ha ramo algum do saber humano que possa prescindir d’ella, para se habilitar a conhecer e a explicar os seus inicios primordiaes. Não ha sciencia alguma que não tenha a sua historia; onde esta não alcança, lá está a archeologia a substituil-a vantajosamente! Na historia encontram os sociologos a mais segura base para a remodelação das instituições, desideratum constante dos povos, pois a archeologia abre a esses complicados problemas mais largos horisontes» (II, p. 381-2).
Para o Abade o Museu deveria ter um cariz essencialmente representativo da região que lhe dá vida, revelando alguma oposição à concepção original da sua criação por parte de José de Figueiredo, vendo este mais o Museu Regional como modelo, em escala reduzida, dos museus nacionais – basta lembrar que os objectos que ele seleccionou são objectos de arte erudita, e não de características populares. Ainda em 1945 o Abade há-de frisar: «O Museu deve ter uma expressão regional. Podia alargar-se. Encher as suas salas com pinturas, esculturas, seria fácil. Preferi sempre que êle se confinasse à função regionalista que o guia desde a fundação» (in Jornal de Notícias, 24-V-1945). A esta concepção de museu regional ligava o Abade o papel a desempenhar pela arqueologia no desentranhar das origens dos antepassados. Para ele, a menina dos seus olhos, era a secção arqueológica; na secção etnográfica englobava ele o restante: pintura, escultura, gravura, tecelagem, bordados, mobiliário, cerâmica, serralharia, pratas, etc.
O papel decisivo do Grupo manter-se-á até finais da década de trinta, estando a sua acção sempre ligada a todas as acções importantes de aquisições ou dádivas de espécies ao Museu. E de tal maneira é verdade que as cotas mensais dos associados e as verbas mecenáticas que conseguia eram, na fase inicial, o orçamento principal para as despesas do Museu – tirando obviamente as despesas de pessoal –, onde eram inscritas, duplicando-se, muitas vezes, a própria gestão administrativa. Era vulgar, nesta fase inicial da direcção do Abade, fazerem-se pagamentos por letras, facto em que o papel de José Montanha, como agente do Banco de Portugal, ganha relevo.
Sem o Grupo o Abade pouco teria podido fazer – até pelo próprio temperamento que tinha. Assim, os longos ofícios de pedidos em espécies ou de dinheiro eram, quase sempre, feitos por Raul Teixeira, ainda que assinados pelo Abade (ver Arquivo Administrativo do Museu Abade de Baçal), e muitas vezes as concepções artísticas aí reveladas não são propriamente coincidentes com as do subscritor. Portanto, quando nos referimos ao papel do Abade, estamos, implicitamente, a referirmo-nos a Raul Teixeira e José Montanha.

A estratégia de actuação deste grupo privilegia as seguintes áreas de actuação:
Envolvência da comunidade, ainda que segundo uma actuação e concepção algo elitista
Restauro do acervo já existente
Remodelação do espaço museológico
Aquisição de novas espécies

Almoço na cortinha, nos inícios da década
de trinta, com amigos de Bragança e Henrique
Tavares, Eng. Gomes da Silva e
arquitecto Baltasar de Castro
Relativamente ao primeiro ponto podemos apontar a criação do Grupo dos Amigos dos Monumentos e Obras de Arte de Bragança que englobava várias centenas de personalidades variadas trasmontanas, de residentes e não residentes, com cotas mensais fixadas no momento da adesão e muitas vezes com entregas pontuais para fins casuísticos justificados. Obviamente que esta associação merece um estudo detalhado ainda por fazer.
O Grupo dos Amigos actuou reiteradamente em duas direcções específicas: por um lado, angariando dádivas pecuniárias junto dos associados, amigos e conhecidos e junto das instituições, sobretudo câmaras municipais do distrito e Junta Geral do Distrito, praticamente exigindo subsídios anuais (era normal pedirem 2000$00 de subsídio anual à Junta Geral, por exemplo); por outro lado, pressionando instituições e particulares para a cedência de espécies para o Museu, ou negociando essa cedência, através de troca (por exemplo, para a troca dos tapetes de arraiolos e do tapete persa foram adquiridos outros novos para a permuta; outro exemplo: para a troca, em 1929, da virgem gótica quatrocentista pertencente à igreja de S. Vicente deram 400$00 à Confraria para ajuda da aquisição de uma Nossa Senhora de Fátima). Também se verifica, por vezes, que as petições institucionais eram muitas vezes realizadas em alternância: umas vezes era o Grupo dos Amigos a solicitar e no ano seguinte era o próprio museu. Confundiam-se, assim, a direcção das duas instituições.
A própria escrita financeira do Grupo dos Amigos estava integrada na do museu. Uma factura ou um recibo tanto podiam ser assinados pelo Abade, como por Raul Teixeira ou José Montanha. Aliás, a maior parte dos documentos são meros pedaços de papel não timbrado.
Uma outra estratégia de actuação, muito eficaz para manter a homogeneidade, a envolvência, o carisma e a dinâmica do grupo, era a realização de palestras ou outras actividades específicas reservadas aos associados – o que por vezes dava aso a mal-entendidos na elite dos não associados. Por outro lado, também se utilizava, e com muita eficácia, a monitorização de visitas ao novo espólio entretanto adquirido, o que contribuía para reforçar os laços de identificação dos associados para com o museu e o seu acervo. Assim, nesta fase, pode dizer-se que o Museu se foi construindo sob o olhar e o controlo de todos os interessados e a sua evolução podia ser minuciosamente descrita por todos.
No plano da conservação podemos dizer que a partir de 27 as peças consideradas mais significativas, a pouco e pouco, iam sendo restauradas. As intervenções meramente pontuais e de menor exigência técnica eram efectuadas em Bragança em casas creditadas: estamos a pensar, por exemplo, na Marcenaria Carvalho. Todavia, a maior parte dos restauros eram feitos no Porto, em casas da especialidade do acervo em questão: ourivesarias, fábricas de têxteis e de mobiliário, etc.
O Abade com Salvador Teixeira,
junto ao castelo de Penas Roias (Mogadouro),
no dia 1 de Agosto de 1939
A remodelação do espaço museológico foi a batalha constante da direcção do Abade. A partir do momento da expropriação do Paço Episcopal vários organismos públicos aqui se sediaram: o Museu Regional, a Guarda Nacional Republicana, a Conservatória do Registo Civil, a filial da Caixa Geral de Depósitos e outras. A maior parte delas tiveram estadas de poucos anos: a Conservatória e a filial da CGD saíram em Março de 1933, libertando cinco salas no rés-do-chão, e a GNR só saiu já na direcção de Raul Teixeira, em Dezembro de 1935, depois de muitas cartas e pressões utilizadas. Em 1932, em ofício dirigido a Gomes da Silva, director geral dos Monumentos e Edifícios Nacionais, a 18 de Março, mais um dos inúmeros pedidos de transferência do quartel da Guarda Republicana, que ocupava a parte nascente dos baixos do Museu, já com ameaças de demissão por parte do Abade: «(...) Ora tal permanência está causando consideráveis prejuízos no importante e rico recheio que o Museu encerra, bem como nos livros que compoem a Biblioteca Erudita e documentos do Arquivo Distrital, por causa do fumo que invade, por completo, as quatorze salas que o compoem! Sucede, com frequencia, haver necessidade de serem abertas todas as janelas para os snrs visitantes poderem atravessar as salas! Não posso, pois assistir a tão triste espetaculo e serei forçado a pedir a exoneração do meu cargo, manifestando assim a minha solidariedade com os snrs directores da Biblioteca e Arquivo e dando incondicional apoio ao protesto levantado por todos os brigantinos que estão dando ao Museu o seu melhor esforço».
Temos documentos de obras no edifício, de menor monta, logo a partir de 1926, prolongando-se por 1927, e de 1928 a 1935 são quase permanentes, no sentido de reparar e embelezar alguns dos espaços e prepará-los para a exposição permanente. As de maior monta foram dirigidas pelos Monumentos e Edifícios Nacionais, e terão sido as de 1930 e as de, praticamente ininterruptas, 1933, 1934 e 1935, terminando estas no dia da homenagem nacional ao Abade em 9 de Abril, altura em que foram apresentadas ao público quatro novas salas de exposição: Sala Abel Salazar, Sala Eng. Henrique Gomes da Silva, Sala Henrique Tavares e Sala Dr. José de Figueiredo.
Anos antes já tinha sido aberta ao público a sala de Miranda e também já existiam salas específicas derivadas do recheio original do Paço, de arqueologia e, depois da aquisição da colecção Cagigal, de faiança nacional, a chamada sala dos Pratos.
O acervo museológico que o Abade herdou, em termos de organização e exposição, estava longe de poder ser considerado aceitável. Em 1926, em carta de Raul Teixeira para o Abade (publicada por Hirondino Fernandes), diz aquele «Que ele, João, filho adoptivo e muito ilustre e estimado de Bragança, continue a colocar sob a sua proteção o nosso Museu, para ver se em breve o podemos deixar de o considerar como aquilo que hoje ainda é: um conjunto de salas de arrumação de objectos em ruina».
As espécies que iam sendo doadas foram publicadas no vol. X (p. 7-13) das Memórias..., e englobavam sobretudo elementos da etnologia local (medidas aferidas de madeira e metal, talas, têxteis em seda da região), materiais arqueológicos (machados, fíbulas, lápides, miliários), muita numismática, arte sacra, livros e documentos. Muito deste espólio foi reunido em regime de depósito.
O Abade com Teixeira Lopes e amigos
O espólio começou a ser adquirido por compra logo a partir de Outubro de 1926 e é quase tão diversificado e numeroso como o anterior, à excepção, provavelmente, do material arqueológico. As pinturas de Henrique Tavares são um caso à parte: geralmente os produtos eram adquiridos pelo Museu – tintas, telas ou madeira e molduras – e, de vez em quando, ofertavam-lhe uma prenda (por exemplo, em 30.9.1927 foi-lhe oferecida uma prenda no valor de 1000$00 para compensar a doação de 3 quadros – O Miguelzinho, O Calça Cagada e o Cu Torto). Assinalamos a aquisição do tríptico da igreja da Vila (pensamos que é, obviamente, o Martírio de Santo Inácio) adquirido ao P.e Cruz por 200$00 em 1929, um escano por 800$00, uma fíbula em ouro pelo preço de 400$00.
O acervo museológico que se ia conseguindo reunir ia sendo disposto em salas depois de pequenas obras de preparação e a partir de 1928 começam a surgir despesas com vitrines, julgamos que para ourivesaria, revelando já motivações especificamente museológicas englobando várias variáveis.
Quando se dispunha de novos espaços ou de novos objectos considerados de excepção, por vezes efectuavam-se obras de maior intervenção. Estamos a pensar, por exemplo, que a vinda do tecto de S. Bento obrigou a intervir-se no próprio tecto para se adaptar à sala destinada e motivou a abertura de novos vãos. Por outro lado, também se efectuaram obras, fechando ou abrindo novos vãos, no sentido de melhor definir ou redefinir o próprio percurso museológico.
Em 30.1.1933 (Arquivo Administrativo do Museu Abade de Baçal) dizia o Abade à Direcção Geral de Estatística que «Os objectos expostos, são: mobiliario, pintura em tela e madeira, pratas, tapeçarias, cobeceiras de sepulturas, machados de pedra, paramentos, artigos de industria regional, indomentaria regional, ferragens, artigos de latão, estanho, etc.».
A partir de inícios de 1933 vai iniciar-se uma campanha de angariação de fundos e obras de arte em larga escala, preparando já, pensamos nós, a aposentação do Abade e a projectada abertura de quatro novas salas de exposição.
Assim, vão mandar-se ofícios em larga escala, geralmente burilados por Raul Teixeira, para instituições locais e nacionais no sentido de reunir espólio de natureza artística. «O “Museu Regional de Bragança”, pode dizer-se que ainda na sua fase nascente, com escasso subsidio orçamental, vem solicitar de V. Exª se digne determinar que no orçamento, em elaboração, para o proximo ano economico 1933-1934, seja aumentada a dotação que lhe foi atribuida no ano economico decorrente. É que, Ex.mo Senhor, tomando o Museu, ainda no decurso do corrente mês, posse de cinco salas do edificio onde está instalado, pela saida delas da Conservatoria do Registo Civil e da Filial da Caixa geral de Depositos (...). Chega o momento, com a ocupação de taes salas, de o Museu instalar em vitrines, que necessita de adquirir, a sua importantissima colecção de numismática... » (carta para o Subsecretário de Estado das Finanças, de 16.3.1933, escrita por Raul Teixeira e assinada pelo Abade).
Nesta fase, 1933-35, o coronel Salvador Nunes Teixeira, Governador Civil na época, vai ter um papel importante a desempenhar na obtenção de muitas obras de arte e dos forais manuelinos pertencentes às câmaras de todo o distrito.
Por cada oferta seguia o ofício de agradecimento...
Os pedidos multiplicam-se: à Junta Geral do Distrito (25.5.1934): «As circunstancias obrigam, a bem do progresso artistico e cultural do nosso Distrito, a que as galerias de pintura contemporanea do Museu vão aumentando com a encomenda e aquisição de novos quadros em que se fixem os mais interessantes motivos da nossa etnografia e os mais pitorescos aspectos da nossa paisagem. (...)
Tenho a certeza de que Vossas Excelencias, amigos do progresso desta cidade, que é a capital do Distrito, contribuirão para o desenvolvimento do Museu Regional, onde presentemente se estão realisando obras de grande reparação de algumas salas (...)».
A Júlio Ramos (10.12.1934) por quadro seu: «O interesse devotado que ponho no enriquecimento do Museu que dirijo; o criterio, que norteia a minha acção, de que a Arte, tendo uma função social a desempenhar, deve ser, nas suas diversas manifestações, não apenas apanagio dos poderosos e dos que vivem nos grandes centros, mas fonte de educação, escola inspiradora de sentimentos que façam brotar na alma rude dos humildes e incultos a flor balsamica e consoladora da Belesa, levam-me a, confiadamente, dirigir-me a V. Exª pedindo-lhe se digne enriquecer o Museu Regional de Bragança com um quadro da auctoria de V. Exª.».
A José de Brito (14.12.1934), a Adalberto Sampaio (a 17), ao Director do Secretariado da Propaganda Nacional (a 20) pede pintura para «(...) uma sala de pintura portuguesa contemporanea exclusivamente destinada a quadros fixando assuntos e tipos regionais. (...) A este recanto do nordeste de Portugal não tem chegado o amparo do Estado, e pouco se tem feito sentir a proteção dos particulares. Por isso bem reduzido é o numero de obras de Arte que se encontram nas salas que constituem a galeria, em formação, de pintura portuguesa contemporanea, do Museu de Bragança... sala que eu bem desejaria solenemente se inaugurasse no dia 9 de Abril proximo, data em que abandono as funções que no Museu exerço por nela atingir o limite de idade».
Ao Conselho Nacional de Turismo (27.12.1934) que, em 1937, vai financiar as aguarelas dos pelourinhos de Alberto de Sousa. Em 1934 e 1935 é de referir a entrada da importante doação de Abel Salazar, constituída por óleos e gravuras fundamentalmente.
Em Junho de 35, agora já como director honorário, o Abade vai continuar a pedir obras de arte, nomeadamente a Manuel Teixeira Gomes, antigo Presidente da República, e ao Ministro das Finanças.
Aguarela sobre papel de Alberto de Sousa
retratando o Abade de Baçal, datada de 1937
Vai ser durante esta década de governo do Abade que o Museu vai mudar de fisionomia: as colecções alargam-se sobretudo nos domínios da arte, arqueologia e etnografia sempre sob os auspícios protectores de Raul Teixeira e José Montanha – nada era decidido sem a sua consulta ou de suas iniciativas – e do papel fundamental desempenhado pelo Grupo dos Amigos dos Monumentos e Obras de Arte de Bragança. Este período de real formação do Museu vai prolongar-se, também, durante toda a direcção de Raul Teixeira (1935-45), «a alma artística do museu», como lhe chamaram o Abade e outros. Contudo, a sua dominante de museu local da região vai-se diluindo para cristalizar na de museu local feito à imagem e semelhança dos museus nacionais da época. Esta vertente era já a defendida inicialmente por José de Figueiredo e será seguida à letra, posteriormente, por Raul Teixeira.

João Manuel Neto Jacob
(Director do Museu do Abade de Baçal)
Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança

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