quinta-feira, 1 de março de 2012

Um inverno - confissão


Depois dos chouriços feitos, de muito cansaço e das minhas mãos completamente estragadas, fomos para a aldeia onde a minha tia dava aulas que fica na Lomba e pertence ao concelho de Vinhais. 
Saí de uma aldeia para outra. Se uma era pequena, a outra pequena era. As pessoas eram simpáticas e receberam-me de braços abertos. Fui tratada como uma princesa e recebi muito mimo. No entanto, as minhas saudades persistiam. 
O meu calo de escrita doía-me. Penso que nunca na vida escrevi tanto como naqueles dias. As cartas que escrevia aos meus pais, irmãos, primos, tios e amigos não se contentavam com uma simples folha. De seis para cima era o habitual.
Dois dias depois de ali termos chegado, levantou-se a minha tia, como todas as manhãs, para ir dar aulas. Eu fiquei na cama pois ainda era cedo e não tinha, propriamente, muito que fazer para além de escrever cartas e poesia.
"Anda cá ver uma coisa!" "O que é?" Perguntei, curiosa. Quando cheguei à cozinha, estranhei a brancura, a claridade anormal. "Olha pela janela." "Que lindo! Quanta neve!" Abri a porta, em pijama e chinelos e fui para a rua. 
Reconheço que parecia uma tolinha. As crianças que se encaminhavam para a escola, olhavam para mim e riam-se, como que a dizer que a sobrinha da senhora professora não teria todos os parafusos bem aferidos.
 Ela caía do céu com uma constância maravilhosa, em grandes e macios farrapos. Foi a melhor e mais pura nevada da minha vida. Ainda hoje a saboreio. 
Depois de tomar um banho quente, vesti-me e tomei o pequeno almoço. Saí para a rua novamente, desta vez, convenientemente agasalhada e aproveitei a imensa beleza daquela paisagem.
Muitas histórias poderia contar sobre o meu primeiro inverno no regresso a Portugal. Talvez as vá contando ao sabor da vontade. Tudo depende do estado de espírito ou das saudades que, porventura, batam com mais força...
A vida da gente é uma incógnita, um caminho que se vai trilhando aos poucos e que vai entroncando com outros caminhos e outras vidas.
A minha vida tem as suas vicissitudes como todas as outras... momentos felizes e outros muito maus. Não tem sido isenta de lágrimas e sorrisos. Aprendi a viver com aquilo que o destino me proporciona e tento que ela corra o melhor possível pelos trilhos que calcorreio. 
Ensinou-me a olhar para o lado, onde vejo, sempre, alguém com mais problemas do que eu. 
Não tenho medo de ir à luta e nunca baixei os braços perante as adversidades.
Nesse primeiro inverno descobri que a minha redoma tinha um rombo e que por esse rombo, poderiam entrar coisas boas e coisas más, pessoas em quem podia confiar e que me limavam muitas arestas e outras que nem sequer se preocupavam que as arestas me rasgassem a carne.
Deixei uma situação de absoluto conforto afetivo para outra de "desenrasca-te sozinha".
Não me arrependo da opção que tomei e voltava a fazer exatamente o mesmo.
Continuo a gostar de ver nevar. Tranquiliza-me e alegra-me. Sei que posso partir uma perna ou um braço se, porventura cair, mas sei que, mesmo caindo, posso levantar-me a sorrir e atirar com uma pelotada de neve aos meus sobrinhos cujo riso preenche todos os meus vazios.
Nesse inverno descobri-me, tropecei em pedras sem fim. Ergui-me. Vivi...
Nevava com delicadeza de mãe a acalentar o filho quando a minha tia chegou para almoçar e o almoço não estava feito...
O inverno continua.


Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.com

Sem comentários:

Enviar um comentário