“Pois que tenho sido eu, senão almocreve? Levo e trago – não os botos de azeite ou as canastras de sardinha, por montes e vales, à chuva e à neve e à torreira do sol, mas a veniaga cultural de franças e araganças.
Paulo Quintela, [in Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia, de Cristóvão de Aguiar]
Aos almocreves temos de estar gratos porque ao longo dos séculos trouxeram até às gentes transmontanas fechadas para lá do Marão, produtos não existentes naquelas paragens e redondezas, e em troca recebiam os excedentes de outros que sem o seu concurso não gerariam valor na paupérrima economia local.
O ilustre sábio de Bragança ao comparar-se aos almocreves homenageia-os, levando em linha de conta o seu desempenho no intenso trânsito de comércio provindo da estrada da Galiza ou do rio Douro. O Mestre pelo lado da mãe descendia de um almocreve.
As recovas de almocreves contribuíram para a criação de localidades, mas o seu feito maior terá sido saberem tirar vantagens no sistema de trocas de produtos tradicionais da nossa economia de base agrícola e de géneros inexistentes no interior, como dá conta o germanista Bragançano ao mencionar o azeite e a sardinha.
O azeite chegava a Bragança em botos (odres), rendendo ao tesouro camarário apreciáveis receitas dado ter procura a fim de ser utilizado na preparação de comeres durante todo o ano. As actas da Vereação e respectivas pautas e taxas são esclarecedoras acerca dos preços praticados e taxas aplicadas.
Assim: nos anos de 1853, 1854 e 1855, cada almude de azeite sofreu a taxa 100 réis, em 1863, o preço médio do almude de azeite no Mercado foi de 3.600 réis e o quartilho 110 réis, em 1873, o quartilho vendeu-se a 90 réis, tendo o preço subido em flecha no ano de 1880, 260 réis cada litro. No ano de 1889, o preço por litro foi de 179 réis, em 1894, custava 219 réis, em 1899, vendeu-se a 224 réis, em 1906, vendeu-se a 240 réis, em 1910, a 280 réis, no ano de 1911, subiu o custo para 300 réis, e em 1912, o litro de azeite ficou-se nos 252 réis.
No ano de 1915, o litro custava 26 centavos, em 1920, o litro vendeu-se a 1$00, no ano de 1924, atingiu o preço de 6$00, em 1928 vendeu-se a 8$00, em 1930, cada litro custou 6$00.
Em 1931, a taxa sobre cada litro de azeite foi de $05, a pauta de impostos Municipais indirectos relativa ao ano de 1940, fixa-a em $10, em 1953 continua a ser de $10 a aplicar sobre a quantia de 14.671$50, receita total desse ano do comércio de azeite.
A razão da dependência dos bragançanos em relação ao fornecimento de azeite reside no facto de a cultura da oliveira ter chegado tarde a Trás-os-Montes, ainda mais tarde ao concelho de Bragança.
Terão sido os fenícios e os gregos os responsáveis pela introdução da cultura da oliveira na Península Ibérica, De Candolle em Origin of cultivated plants, considera a Síria e Irão como zona de origem da oliveira. É durante a dominação romana que a oliveira se estende e progride na Península. No século I a.C., a Bética era um imenso olival. No século I, o poeta Marcial, diz nos seus versos que Córdova é a região da oliveira, depois da Bética. Nos seus tratados De re rústica e De arboribus, o celebrado Columela emite copiosas referências sobre a oliveira, talvez porque o seu pai possuía olivais na Bética, ainda porque o gaditano nunca se afastou deles, mesmo enquanto esteve em Roma. Os seus conceitos acerca da agricultura ainda hoje são estudados e em certos rincões executados.
Apiano menciona os olivais do Sistema Central por cima do rio Tejo, Avieno na Ora Marítima apoda o rio Ebro como “oleum flumen”. O grego Estrabão em Geografia da Península Ibérica faz menção ao bom azeite da Hispânia, os visigodos e posteriormente os muçulmanos continuaram a acarinhar o cultivo de olivais.
O historiador Alberto Sampaio, afirma que já em 747 a oliveira surgia na toponímia galega – Villa Olivatello majore at alio Oliveto Ripa Sile, enquanto a sul do rio Minho aparece oliuaria, euluaria em 1066, terra da freguesia de Oliveira do Douro (Gaia). Em Portugal existem 89 topónimos derivados da oliveira, o mais a norte é a localidade de Oliveira no concelho de Monção.
Sem embargo de tão evidentes provas do conhecimento desta árvore em terras nortenhas, outra evidência é certa: a progressão do seu cultivo foi muito lenta a partir de Coimbra. O mapa da produção e consumo do azeite nos séculos XII e XIII assim o demonstra, a produção estancava em Coimbra, o consumo chegava a Castelo Bom e Aguiar.
Na alta Idade-Média, nos territórios do norte e mais setentrionais do País não se cultivava a oliveira e por isso mesmo o consumo de azeite era nulo, segundo a opinião de Alberto Sampaio, confirmada por Gama Barros ao dizer que nos séculos XIX e XV, a produção de azeite se concentrava em Coimbra e Évora, ainda em Santarém e Lisboa, esta última cidade grande centro distribuidor.
No referente a ensinamentos acerca do cultivo da oliveira e obter bom azeite a leitura dos clássicos desfaz dúvidas sobre quanto lhe somos devedores na matéria, e quão grande é o proveito conseguido através da leitura das obras deles. Infelizmente até ditos especialistas na matéria os ignoram.
Nascido em Éreso, na ilha de Lesbos, no ano de 372/71, Teofrasto considerado o Mestre dos mestres da botânica antiga legou-nos numerosas considerações sobre a oliveira e o seu cultivo, desde o estrume que deve ser empregue, até à “enérgica poda”, passando pela escolha do lugar apropriado para ser plantada, a sua floração, tratamento e longevidade. O mestre botânico deixou discípulos, caso de Dioscórides.
O eclético Dioscórides, contemporâneo de Plínio o Velho, tece considerações acerca da qualidade do azeite, dizendo que o melhor para a saúde é o “triturado antes de a azeitona amadurecer”, o não picante, também enumera as suas virtudes no tratamento da dor de cabeça, lepra, sarna, limpeza da caspa, enquanto unguento no tratamento de cortes, esfoladuras, chagas e cicatrizes, ainda na preparação de perfumes e acrescenta: “ Tal como a uva, a azeitona pode ser aproveitada quer para comer tal qual, quer para dela se extrair o azeite de que o homem se serve exterior e interiormente; de facto, o azeite é-nos
indispensável no banho e no ginásio.”
Paládio Emiliano comunga das opiniões de Columela no elogio à oliveira, e das de Marco Terêncio Varrão no Rerum Rusticarum.
De todos os autores da Antiguidade, é Catão aquele que nos parâmetros da economia rural dedicou mais estudo à fabricação de azeite, leiam-se as obras: De re rústica, e De re agrícola para o percebermos.
Porcio Catão escreveu sobre a construção dos lagares, como devem ser plantadas as oliveiras, das coisas precisas para a colheita da azeitona, comprimento das estacas de oliveira, formação do viveiro, da multiplicação da árvore, maneira de fazer azeite verde, precauções a tomar quando se enche uma bilha de azeite e, até a forma como deve ser vendida a azeitona ainda na árvore. Os ensinamentos de Catão foram seguidos durante séculos (ainda há quem os siga), tendo sido copiados, ensinados e discutidos em numerosos tratados de agricultura escritos em latim, catalão, castelhano, francês e italiano.
A oliveira árvore sagrada e mágica para as religiões oriundas do Próximo Oriente, símbolo da abundância, da sabedoria, da paz (ai do ateniense que arrancasse uma oliveira do Areópago), protectora das ciências e das artes, referida numerosas vezes na Bíblia e no Corão, dela se extrai o denominado ouro líquido, venerado e qualificado produto em grande número de receitas capazes de curarem os males do corpo e da alma. A oliveira consagrada à deusa Minerva, por sentença de Pallas foi preferida a todas as restantes árvores. Santo Agostinho autor da Cidade de Deus compara-a à Igreja, e a Igreja à Virgem Maria, por isso no domingo de Ramos são benzidos os ramos de oliveira numa significação de paz entre Deus e o Mundo, após o dilúvio universal.
Em Elogio da Província, Azinhal Abelho escreveu: ”O tio Manuel João, que é mestre da faina, fornece o azeite em fio, que é ouro puro a escorrer em lâmina”.
As unções com azeite tinham na Idade-Média o mais alto significado sacramental, independentemente do valor curativo e terapêutico. Além das fórmulas herdadas da farmacopeia antiga, na época medieval acrescentaram-se outras assentes no azeite capaz de favorecer a fertilidade das mulheres, curar as queimaduras e expulsar as pedras da vesícula e muitas outras contidas no tratado Tacuinum Sanitatais.
A nível alimentar as azeitonas e o azeite emprestam aprazimento às nossas vidas ao entrarem na elaboração de pratos de todos os géneros e matizes. O azeite nos tempos actuais tem alta posição na cozinha e na pastelaria, para dar uma ideia desse domínio trago à colação o livro Cocina Internacional com Aceite de Oliva, de Esperanza Luca de Tena, nele estão recenseadas 1068 receitas com... azeite. As azeitonas verdes e pretas intervêm em grande número de aperitivos, entradas, guarnições, pizzas, saladas, tapas, e
salientam-se na cozinha: pato e pombo com azeitonas, estufados e recheios.
O concelho de Bragança produz azeite de óptima qualidade. As azeitonas curtidas e sem caroço passam à condição de iguaria a sós, ou bem acolitadas, conhecidas por alcaparras assim ao modo de veniaga culinária cultural a corroborar Hipócrates, pois o médico afirmava ser a comida «res non naturalis».
O homem colhe a azeitona, natural, transforma-a em cultura quando a prepara, assim Paulo Quintela concebeu a sua veniaga cultural, trazendo de franças e araganças até nós autores de primeira grandeza e exemplarmente os traduziu para todos podermos conhecê-los e deles colhermos proveito. As conterrâneas cozinheiras dos botos retiravam o azeite e parcimoniosamente o utilizavam na confecção de deliciosas pitanças tão apreciadas pelo nosso famoso conterrâneo.
Armando Fernandes
Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da CMB
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