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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 2 de janeiro de 2016

Mirandês, a outra língua portuguesa

Década e meia após conquistar o estatuto de língua, o mirandês enfrenta um novo obstáculo: a desertificação da região de Miranda do Douro.

Glória Vaqueiro vai na berma da estrada, a poucos metros da fronteira com Espanha e a outros tantos da aldeia de Constantim. Equilibrada em cima da burra, faz questão de explicar o porquê do meio de transporte – cada vez mais raro, mesmo em terras de Trás-os-Montes. “Não sei andar de bicicleta e nunca tirei a carta de carro. A burra dá-me jeito para ir aqui e além e é nova, só tem seis anos. É mansinha.”


A fala da transmontana é estranha: as palavras são portuguesas, mas o sotaque faz lembrar o castelhano. Mas também não é mirandês. “Só falo mirandês com quem também fala”, avisa. Glória, a dona da burra, tem 68 anos, vive com uma reforma de 400 euros e ainda se lembra do tempo em que “toda a gente” andava de burro ou a cavalo. Até o Dr. Barros, o médico de serviço na região, que morreu “há já muitos anos”, mas que palmilhava as aldeias de Miranda do Douro a cavalo para assistir os doentes em casa.


Agora toda a gente tem carro e os médicos, que escasseiam na região, não fazem serviços ao domicílio. O hospital mais próximo da aldeia de Constantim fica a mais de 15 quilómetros, em Miranda, e, se o caso inspirar cuidados de maior, só pode ser resolvido em Bragança, a quase 60 quilómetros de distância. “Mudou quase tudo, só não muda a política, que é sempre a mesma”, atira Glória, ainda do alto da burra. O que também não mudou é a língua mais usada pelos habitantes de Constantim e das outras aldeias de Miranda do Douro: o mirandês, a outra língua de Portugal, anterior à própria fundação do país e que, em 1999, ganhou o estatuto de língua minoritária.


O problema é que há cada vez menos gente em Trás-os-Montes para manter viva a tradição. Em Constantim, por exemplo, só resistem 80 habitantes (há duas décadas eram mais de 300). Na aldeia há uma única criança, com 12 anos, e o casal mais jovem anda na casa dos 40. Para os mais velhos – os que resistem –, o primeiro contacto com a língua portuguesa só se deu à chegada à escola, numa altura em que o mirandês era falado em todas as casas, mas apelidado de “fala caçurra” – a língua das gentes incultas. Glória ainda conseguiu fazer a terceira classe, mas praticamente não sabe ler. “Sei fazer o nome e orientar-me se precisar de andar de camioneta.”


A pouca escolaridade acabou por fazer com que nunca tenha esquecido a língua materna, o mirandês. “Só uso o português para falar com gente de fora ou quando tenho de ir à cidade”, explica.


Não há um cálculo rigoroso das pessoas que ainda falam a outra língua. Sabe-se, com certeza, que continua a ser usada em todas as aldeias do concelho de Miranda do Douro e ainda em três povoações vizinhas que pertencem ao concelho de Vimioso: Vilar Seco, Angueira e Caçarelhos. No total são 500 quilómetros quadrados de território, na fronteira com a província espanhola de Zamora, em que as palavras são ditas de uma outra forma.


Em 1900, o linguista José Leite de Vasconcelos estimava que existissem 15 mil falantes. Actualmente, o número não deverá ir além dos 7 mil. A diminuição de falantes foi uma constante ao longo de todo o século xx, sobretudo a partir da década de 60. Na altura, muitos chegaram a apostar que o mirandês se extinguiria de vez, muito provavelmente por volta de 1980. As profecias mostraram-se apressadas, apesar de tudo apontar para a sua extinção: em meados do século passado, com a construção das barragens do Douro, chegaram ao concelho de Miranda do Douro centenas de trabalhadores, todos falantes de português. Instalaram-se em praticamente todas as aldeias.


O mirandês deixou assim de ser a língua dominante. Nessa época, o ensino generalizou-se (nas escolas só era ensinado o português) e apareceu o fenómeno da televisão – também falada em português. Enquanto isso, muitos rapazes de Miranda eram incorporados no exército, por força da guerra colonial. E nas ex- -colónias, longe de Trás-os-Montes, foram obrigados a assimilar o português.


O mirandês foi caindo em desuso, até que conseguiu o estatuto de língua regional, em 1999, através da Lei 7/99. Portugal deixou assim de ser o único país monolingue da Europa. No mesmo ano foi aprovada a Convenção da Língua Mirandesa, criada para normalizar a escrita – uma espécie de acordo ortográfico do mirandês, que sentou à mesma mesa falantes, estudiosos e linguistas das universidades de Lisboa e de Coimbra. O princípio era simples: manter a diversidade na fala, mas criar unidade na escrita. É que o mirandês tem vários dialectos, que variam de aldeia para aldeia. E foi sempre uma língua oral, até 1884, quando José Leite de Vasconcelos publicou o poemário “Flores mirandesas” – a primeira obra escrita em mirandês. Aos poucos, a língua começou a ser escrita e actualmente existe mais de uma centena de obras publicadas – entre traduções e livros originais.


L PORSOR FALANTE Sozinho, o professor e vice-presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) já traduziu dezenas de obras. Por pura carolice. Amadeu Ferreira nasceu em Sendim, saiu de Trás-os-Montes para se fazer doutor em Direito e construiu uma carreira sólida em Lisboa. Nos corredores da CMVM ninguém adivinha que só aprendeu a falar português aos 18 anos: em casa e na vila de Sendim só se ouvia o mirandês. Hoje, aos 62 anos, o seu domínio da língua portuguesa é perfeito, mas o inconsciente teima em pregar partidas: Amadeu Ferreira confessa que sonha sempre em mirandês. Nas horas vagas, entre o trabalho na comissão e as aulas de Direito na Universidade Nova, o professor dedica-se às traduções. Já traduziu os “Quatro Evangelhos” (“Ls quatro eibangeilhos”, em mirandês), “Os Lusíadas”, a “Mensagem”, de Fernando Pessoa”, “O Principezinho” e alguns poetas clássicos, como Horácio. Mas o recordista de vendas é o livro “Asterix l gaulés” (“As Aventuras de Astérix”) – já se venderam quase 8 mil exemplares e num espaço de apenas três meses chegou à terceira edição.


Nos últimos anos têm sido publicadas uma média de seis obras por ano. “É um trabalho cultural de cidadania”, conta Amadeu Ferreira, alertando para a pouca atenção que os sucessivos governos e as instituições locais, em Trás-os-Montes, têm dado à língua de Miranda. “O mirandês aguentou mais de mil anos, tem-se feito muito trabalho, mas não podemos continuar a assumir as responsabilidades das entidades públicas”, critica. Depois de se ter dado o reconhecimento da língua, há quase 15 anos, houve conversas com ministros, promessas de todos os governos e da Câmara Municipal de Mirandela.


“Na prática, os apoios para que a língua continue viva têm sido poucos ou nenhuns”, denuncia o professor. “A necessidade de defender as línguas minoritárias é cada vez mais uma evidência, de maneira a preservar uma parte indispensável do património cultural da humanidade e da identidade do país”, sublinha, acrescentando que as línguas estão permanentemente em perigo. “Por serem humanas, morrem se não forem cuidadas”. Amadeu Ferreira propõe, por exemplo, que a autarquia de Miranda do Douro passe a escrever em mirandês e que sejam criados incentivos de emprego aos falantes. Mais urgente que tudo o resto, diz o vice-presidente da CMVM, é a criação de um instituto central do mirandês – uma espécie de Instituto Camões à escala da língua de Miranda. O próprio ensino, que existe mas não é obrigatório, precisaria de ser mais apoiado: “Por não ser obrigatório, pode acabar a qualquer momento, deixando de se fazer a transmissão da língua.” Ou seja, a lei proclamatória de 1999 não chega. É preciso agora “que o Estado concretize os compromissos que assumiu em lei, porque a democracia linguística é um elemento importante da democracia, que deve assentar no respeito pela diferença”, resume.


L MIRANDES NAS SCUOLAS O ensino do mirandês arrancou em 1985, na Escola Preparatória de Miranda do Douro, com turmas do quinto e do sexto ano. A partir de 1999, com a proclamação da língua, o ensino foi regulamentado e alargado a todas as escolas da cidade, mas só como disciplina opcional. “A regulamentação sofre de graves deficiências, o que tem levado a uma diminuição do número de horas lectivas, à ausência de manuais e à existência de poucos professores”, aponta Amadeu Ferreira. Foram apresentadas várias propostas ao Ministério da Educação no sentido de melhorar o ensino, mas nunca foram atendidas.


Desde que se tornou oficial, o ensino tem sido ministrado sobretudo por professores autóctones, com formação nas áreas das Línguas ou da História. Duarte Martins, natural da aldeia de Malhadas, no concelho de Miranda, é há oito anos um dos mestres do mirandês. Aprendeu a falar em casa, mas só muitos anos mais tarde aprenderia a escrever a língua – depois de passar por um curso de Verão na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD).


Para quem aprendeu a língua de ouvido, o trabalho dos últimos anos é notável. Basta entrar na aula de mirandês da turma de 15 alunos do 4.o B da Escola Básica de Miranda do Douro. Os miúdos têm só dez anos, já vão no quarto ano da disciplina e falam mirandês como gente crescida. A aula acontece do princípio ao fim em mirandês e ninguém falha uma resposta.


No ensino básico, e apesar de a disciplina ser opcional, a taxa de adesão é de quase 100%, mas vai diminuindo à medida que os alunos avançam no nível de ensino. “A taxa mais baixa regista-se no secundário, porque nessa fase os alunos já têm outras preocupações e menos tempo disponível”, justifica o professor. Mesmo assim, estima-se que nos últimos anos mais de 2 mil crianças tenham aprendido mirandês na escola. Só que ensinar sem mais nada não chega para manter a língua viva. Para começar, porque assim que os alunos chegam ao 12.o ano, são obrigados a sair de Miranda do Douro se quiserem prosseguir estudos. Ou, simplesmente, arranjar trabalho. “A problemática da preservação da língua está directamente ligada ao problema da fixação dos jovens. O nosso trabalho de transmissão da língua é feito, mas os falantes saem da região e na maioria dos casos nunca mais voltam, distanciando-se das suas raízes e, consequentemente, da sua cultura”, diz o professor.


L NUOBO PELIGRO Os indicadores socioeconómicos de Miranda do Douro mostram que o mirandês enfrenta agora uma nova ameaça. Real e difícil de contornar. Só entre 2001 e 2011, de acordo com os dados do censo, a população residente no concelho diminuiu 7,3%. Há dois anos havia apenas 7462 pessoas a viver na região, espalhadas por uma área total de cerca de 487 quilómetros quadrados. O número de falantes cai todos os anos – sempre que morre um velho perde-se um pedaço de cultura e os indicadores apontam para um aumento exponencial do envelhecimento populacional. Além disso, nos últimos dez anos, a taxa de desemprego subiu de 3,3% para 4,5% – o que tem levado muitos mirandeses a fugir para outras regiões do país e até para o estrangeiro.



Um dos exemplos do que a desertificação fez a Trás-os-Montes é a aldeia de Vilar Seco, no concelho de Vimioso, onde o mirandês ainda sobrevive. No único café da aldeia juntam-se todos os finais de tarde meia dúzia de velhos. Há 14 anos que não nasce uma única criança na terra. E há quase 30 que a aldeia – com pouco mais de 200 eleitores – é atravessada por uma linha de comboio abandonada. Nas paredes do café multiplicam-se cartazes escritos em mirandês. Um deles anuncia a próxima batida à raposa. Há uns anos, caçar uma podia render 3500 escudos. Hoje só sobram cinco caçadores e as peles de raposa pouco valem. “Há uns tempos apareceu aí um espanhol a comprar, pagava 10 euros por cada uma”, conta o presidente da junta, Armando Pinto, que vive em Vimioso, a quase 20 quilómetros de distância.


Outro dos cartazes expostos anuncia um torneio de sueca – os prémios variam entre um porco com 70 quilos, cordeiros, galos e chouriças. “Foi-se toda a gente embora, mas aqui há uns anos ainda havia trabalho”, garante o autarca. Nos arredores da aldeia existiam meia dúzia de grandes estábulos, que chegavam e sobravam para empregar a gente da terra, além de uma serralharia e uma carpintaria. Fechou tudo. “É irónico não termos gente, porque nunca existiram tantas estradas e tanta qualidade de vida na região como agora”, desabafa o presidente da junta.


ANQUANTO LHA LHENGUA FUR CANTADA A fuga da população tem sido a maior dor de cabeça de Paulo Meirinhos, membro do grupo de música tradicional Galandum Galundaina, que nos últimos anos se tem dedicado a dar aulas de Música às crianças de Miranda do Douro e a formar novos grupos de cantares, de danças e de tocadores da região. “Conseguimos formar os grupos, porque há interesse por parte dos mais jovens, mas a dificuldade é mantê-los. Acabam todos por se ir embora daqui e temos de começar tudo de novo”, lamenta. A língua mirandesa é uma espécie de chapéu que abriga toda uma cultura específica de Miranda e que se reveste das mais variadas formas – do teatro aos contos, das lendas aos saberes e fazeres. Passando pela música. Os Galandum Galundaina – que já gravaram três discos, um DVD e correm meio mundo a cantar em mirandês – fazem parte de uma nova geração de músicos que têm preservado a língua em forma de cantar.


São três irmãos – Paulo, Alexandre e Manuel Meirinhos – e ainda Paulo Preto. Todos estudaram Música fora da região, mas escolheram regressar às origens. Constroem instrumentos, compõem, recolhem sons tradicionais e dão-lhes uma nova roupagem. Mais moderna. “O que temos ensinado aos mais novos é que, se quisermos preservar a cultura, não podemos parar no tempo. É preciso pegar naquilo que é tradicional e trazê-lo para os novos tempos”, defende Paulo Meirinhos.


O avô dos três irmãos era carpinteiro e tocava num dos muitos grupos de pauliteiros que existiam na região – hoje sobram apenas 40 ou 50. Como herança, deixou aos netos os bombos e as caixas que tocava. E ainda o gosto pela música tradicional. “Que é muito importante na transmissão da língua”, defende Paulo Meirinhos. “Nos nossos concertos há muita gente que não fala mirandês, mas que canta em mirandês”, garante.


Unir a modernidade e a tradição tem sido também a tarefa, nas últimas duas décadas, de Mário Correia – o responsável pelo Centro de Música Tradicional Sons da Terra em Sendim. O edifício, inaugurado recentemente, era a residência de um padre, mas foi reconvertido em espaço cultural com a ajuda de financiamentos comunitários.


Nas prateleiras há centenas de CD e DVD etiquetados e meticulosamente organizados: são o resultado de dez anos de recolha no terreno de cantares e dizeres tradicionais, interpretados pela gente das aldeias de Miranda. Carolice de Mário Correia, que nem sequer é de Trás-os-Montes: os pais eram minhotos, nasceu e cresceu no Porto e formou-se em Economia. Passou pela gestão de grandes empresas, pela Inspecção-Geral de Finanças e pela Inspecção Tributária. Até que um dia decidiu fazer as malas e rumar a Miranda com uma ideia na cabeça: gravar os sons dos gaiteiros tradicionais, que na altura em 1994, estavam praticamente em extinção. O economista foi ficando, estabeleceu-se na vila de Sendim, criou uma editora – a Sons da Terra – e já lançou mais de uma centena de discos. Pelo meio inventou o Festival Intercéltico de Sendim, que está nas rotas internacionais dos festivais de músicas do mundo e que este ano vai para a 14.a edição.


O centro abriga ainda uma biblioteca, que tem servido de apoio a investigadores e estudantes da língua mirandesa – que chegam do mundo inteiro. Já passaram por Sendim estudiosos japoneses, polacos, espanhóis, húngaros, alemães, brasileiros ou austríacos. A maioria da clientela que vai chegando – cerca de 70% dos utilizadores da biblioteca – é estrangeira. E as raras vezes que aparece um português as diferenças são notórias: “Os investigadores portugueses vêm a contar os tostões e praticamente sem material de suporte”, conta Mário Correia.


Outra das jóias do centro é um espólio de mais de 50 mil fotografias antigas que permitiram fixar no tempo rostos de antigos gaiteiros, cantores e pauliteiros. Todos falantes de mirandês. “O monumento mais vivo são as pessoas”, diz Mário Correia. Mas as pessoas são a matéria que mais vai faltando em Miranda do Douro.


in:ionline.pt – por Rosa Ramos

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