Por: António Orlando dos Santos
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Na minha meninice, como eu era o mais novo dos rapazes, sempre senti que era um sortudo, pois o zelo que o meu pai colocava na disciplina que ele impunha aos meus irmãos mais velhos era algo que quase me passava ao lado.
Não porque eu fosse considerado intocável, outro sim porque eu sendo mais pacífico e menos rebelde passava quase despercebido na atividade infratora em que os meus irmãos estavam constantemente envolvidos.
Ora acontecia que um dos pressupostos em que o meu pai era inflexível prendia-se com o horário das refeições. Estava determinado que quando o meu pai chegasse deveríamos estar já todos sentados à mesa. Acontecia frequentemente, particularmente no Verão haver falta de presença sem justificação aceitável. Aí havia um ambiente tenso até que depois de haver notado que algum de nós estava ausente e ele aceitasse a justificação ninguém falava esperando ação corretiva ou um como que respirar fundo que era sinal de ele concordar mesmo que só tacitamente.
Eu como mais pequeno não entendia aquele semblante severo do meu pai que estava nos antípodas do ar sereno de minha mãe, cujo rosto e atitude eram sempre de uma doçura permanente. Mas a vida era assim e havia que ter paciência.
Ora como a idade era diversa com uma diferença média de três anos a conflitualidade era mais ocasionada pelo não cumprimento das normas tácitas que o meu pai achava imprescindíveis ao bom funcionamento do agregado familiar do que quezília entre os irmãos. Havia ali um choque de gerações indesmentível que a minha mãe pacientemente lograva apaziguar. O meu pai sendo um homem bom era ao mesmo tempo severo para com os filhos, numa atitude que era contrária a que os meus irmãos de carácter díspar como eram fossem submissos e abdicassem da sua maneira própria e mais liberal que forçosamente a escola e a sociedade lhes havia transmitido.
Eu fui passando despercebido nas horas em que o carácter das duas gerações colidiam pois eu verdadeiramente pertencia já a uma terceira geração que foi capaz de entender as duas que me precederam.
Mas neste relato falta mencionar o lado humorístico que quase sempre estava presente já que todos eram jovens e estes pequenos atritos nunca foram suficientemente grandes para interferir com a atitude jovial da família ou com os bons sentimentos do meu pai que era de facto um homem bom. Apenas ele estava convencido que a sua atitude severa seria a mais capaz de conter a atitude irreverente e menos sensata que a juventude dos meus irmãos evidentemente comportava.
Poderá não ter sido essa a principal razão para que o meu irmão mais velho se fizesse adepto fervoroso do Sporting quando tudo levaria a pensar que o seria do Benfica já que ele, o meu pai, o era mesmo que não manifestamente. A verdade é que nunca o meu pai interferiu no que se tornou um paradoxo que nos levou a todos nós para os lagartos, ficando ele de lampião sem ter a quem alumiar.
E a metáfora continua com duas cenas caricatas que vos contarei de seguida e que se tornaram marcos no imaginário da "famelga" pelo desfecho inusitado que tiveram.
Um domingo de manhã vindo o meu pai da horta dos Vales, viu o meu irmão Luís em frente da garagem dos Bicheiros junto de um grupo de rapazes que esperavam pela "Carreira" que os levasse a Parada onde iam jogar futebol. Não se manifestou, mas chegado a casa chamou o meu irmão Rui e ordenou-lhe que fosse chamar o irmão pois ele o proibia de se ausentar sob pena de "Ensaio de mestre com o cinto da Legião". O Rui meteu pés ao caminho e avisou o irmão. O outro riu-se e disse-lhe que por nada deste mundo perderia tal Match, onde iria jogar a médio centro que era o lugar onde mais apreciava jogar. O Rui insistiu e o Luís diz-lhe: - Ora anda tu também que estamos com falta de um extremo e jogas tu. Sopesou os prós e contras e lá foram os dois para Parada e o tio Luís Bombadas ficou à espera até que concluiu que as suas ordens tinham sido desrespeitadas.
À noite quando as vedetas entraram em casa parecia o Dia do Juízo. A minha mãe incapaz de conter a fúria do meu pai, foi chamar a minha madrinha velha que solícita veio correr e serenou as hostes dizendo após haver transposto a soleira da porta da rua. -Ó compadre pare lá com isso que os rapazes já são grandes e os filhos do seu compadre Adriano Manco jogam ambos no Desportivo e não é por aí que vem o mal ao mundo. O meu pai olhou para ela e quando os seus olhares se encontraram o dela era tão seguro na reprovação que ele fez aquele som de libertar o ar da caixa torácica que fazia à mesa quando decidia não levar avante mais reprimendas. Passados uns tempos o meu irmão Rui estava no Pontão a jogar o berlinde quando ele passou para jantar. Disse-lhe: - Vamos para casa que é hora de jantar. O meu irmão entretido como estava foi ficando até acabar a jogatina.
Ora o meu pai depois de se lavar como sempre fazia antes de comer, sentou-se à mesa e não viu o meu irmão. Levantou-se e sem se pronunciar desceu as escadas e foi até ao Pontão onde o meu irmão agachado a jogar o berlinde absorto como estava não se apercebeu da sua chegada. O meu pai chegou-se a ele e deu-lhe uma palmada nas costas que soou a oco pois bateu nas paredes da caixa-de-ar. Saltou e dando conta do caso correu para casa e num ápice sentou-se à mesa.
A minha mãe de braços cruzados esperou pela chegada do meu pai para por água na fervura. Nada disse o meu pai, apenas o olhou com olhar duro e talvez em respeito à minha mãe deixou o caso em banho-maria.
Acabado o jantar foi embora e nada disse.
A minha mãe admirada com o desfecho logo que o meu pai fechou a porta perguntou ao meu irmão: -Que raio se te meteu na cabeça para ficares no berlinde depois de ele te chamar? Resposta clara: - Não sei, sei apenas que quando lancei o berlinde e ele entrou no buraco, senti um cartucho que me rebentou nas costas. Dali em diante quando o aviso soava era sempre com esta fórmula: -Vê lá se queres que te rebente o cartucho.
Bragança 16/12/2018
A. O. dos Santos
(Bombadas)
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segunda-feira, 17 de dezembro de 2018
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