Por razões culturais, mais do que religiosas, dezembro continua a cheirar a afetos. Em tempos onde os valores se misturam, emergem radicalismos com os quais nunca pensaríamos voltar a ter de ser confrontados. A cada alvorada somos surpreendidos por mais uma novidade que vai desvirtuando o sistema de valores que alicerçam a dignidade do homem e interpela sobre este existir.
Neste momento, sobressalta-me a forma como os dados pessoais de cada indivíduo estão a ser monitorizados e a celeridade com que diversas plataformas da administração pública cruzam informação. A título de exemplo, e depois de outros, está o governo a testar uma aplicação direcionada para a administração escolar que também irá recolher dados do ministério da saúde, possibilitando aos serviços administrativos conhecer, entre outros dados, o tipo sanguíneo de um aluno. Esta visão da realidade que se vai construindo silenciosamente, afigura-se-me como atentatória das liberdades e garantias conquistadas nas últimas décadas. Não admira pois que se queira tapar o “sol com a peneira” quando se propala a proteção de dados, se pedem autorizações para as pequenas coisas e se escancaram as portas para o essencial da vida.
Este afã da devassa da vida de qualquer um, não é só bandeira das televisões, mas o próprio estado passa a intrometer-se nos pormenores do quotidiano, repercutindo-se na vida de cada um, e condicionando a dinâmica social, sendo que, quanto mais reduzida for a comunidade, mais impacto tem o factor condicionante.
Nesta era de cruzamento de dados, lembrou-se a governação de alterar o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social mediante o Decreto-lei n.º2/2018 de 9 de janeiro. Em termos gerais, altera as taxas contributivas dos trabalhadores independentes mas também procede a alterações no que respeita à acumulação da atividade independente com a atividade por conta de outrem. Em linguagem corrente, pretende-se que quem trabalha por conta de outros mas, em vez de ir para o sofá depois das horas dadas ao patrão, considera que faz sentido fazer algo de útil e, ao mesmo tempo, daí tirar algum rendimento, passe a pagar mais uma contribuição.
Tendo uma perspetiva nacional, pode ter-se uma leitura não coincidente com a que se faz quando a análise se foca numa dimensão regional. Sem grande margem de erro, na realidade transmontana, mais de noventa por cento dos contribuintes que se encontram nesta situação são-no porque, ou por herança ou por amor à terra, são proprietários de pequenas parcelas. Das mesmas podem retirar um rendimento que, na maior parte dos casos, nem dará para pagar os custos de produção. Mas, o certo é que se o rendimento mensal médio for igual ou superior a quatro vezes o valor do indexante dos apoios sociais, fica o trabalhador sujeito ao pagamento de contribuições.
Em termos concretos os efeitos já se fazem sentir: recebida a informação da segurança social em julho, já há quem no mês seguinte tenha ido alterar a sua situação nas finanças. Agora que a entrada em vigor do diploma se aproxima quer parecer-me que muitos mais irão fazer isso.
Se com esta prenda, é que o governo pretende dinamizar as terras do interior e combater o seu abandono, garantidamente errou a estratégia. Mais uma vez a discriminação positiva ou a atenção especial para com os territórios de baixa densidade não passam de figuras de retórica. Também não me parece que venha a ser criado um regime de exceção para quem trabalha a terra e ao mesmo tempo seja trabalhador dependente – não só não há dimensão, como quem nos representa não colocará esta questão na sua agenda.
Se as terras ficam a monte multam por não estarem cultivadas, se estão cultivadas pagam porque tiram proveitos. É caso para dizer: com prendas destas, o melhor é dedicarmo-nos à pesca.
Raúl Gomes
in:jornalnordeste.com
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quarta-feira, 26 de dezembro de 2018
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