quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

O Natal e o Mendigo das Ruas de São Paulo - Um Conto Feio e Patético

Por: Antônio Carlos Affonso dos Santos
(colaborador do "Memórias...e outras coisas..")
São Paulo - Brasil

Foto: Alexandre Severo/Editora Globo
Era véspera de Natal, de um ano qualquer. A noite já ia alta. Debaixo do viaduto trêmulo de concreto, metal e fuligem, um mocó (*) é refeito com o lixo do dia. Eu e o meu pensamento, vadios e libertos, invadimos o mocó daquele cidadão mendigo; ele, com sua habitual incredulidade solidária. 
Ali, gavetas sem fundo empilhadas e uma porta sem chave de um outrora guarda-roupa, fechavam imaginariamente a outra dimensão em que vivem os drogados e mendigos desta cidadesca megalópole. Ao lado do fogareiro, a álcool, uma caixa de papelão ocultava um edredom surrado e encardido, um descorado cobertor “corta-febre”, uma ou duas toalhas de rosto e uma troca de roupas (**). 
Numa caixa de madeira, resquícios de frutas, meio pacote de ração para cães, algumas batatas, uma cebola, uma cabeça de alho, seis pacotes de macarrão instantâneo e algumas latas tampadas; numa delas estava escrito: ”Açúcar”; em outra: “Arroz”, numa terceira: “Sal”! Em cima da caixa, um colchonete, que um dia teve estampas de flores vermelhas, agora amarronzadas. Num vão da coluna do viaduto, um rádio à pilha e um isqueiro, algumas velas, quase intactas, duas caixas de fósforo, além de um quadro com a Santa Luzia. 
A um canto, uma caixa de sapatos servia de depósito para quatro garrafas Pet de dois litros, cheias d´água. Ariel, o mendigo morador do mocó, originalmente registrado como João Batista de Deus, parece inseguro com minha presença. Ele não entendia o quê eu pretendia nessa visita. Na verdade eu quisera entender o porquê dele viver assim, qual o motivo que o levou a isso e, sobretudo, como ele consegue sobreviver, se alimentar e cuidar dos três cachorros vira-latas (***) que o acompanham, dentre eles o JOW, com essa grafia mesmo; onde a intenção era a de homenagear o multiartista Jô Soares, da TV. Nesse dia uma fina chuva caía sobre a terra de Piratininga. O barulho nas calhas do viaduto, que desaguavam logo além da entrada da casa improvisada, dava o tom do ambiente. Num fogareiro a álcool, Ariel fervia meio litro d água, para passar um café para nós; já que eu havia levado um saco com dez pãezinhos franceses, uma caixa de margarina, uma caixa de chocolates Suflair e um pacote de biscoitos de polvilho. O café, cujo pó – em pouca quantidade - estava acondicionado dentro de uma lata de leite Molico, dessas que tem tampa de plástico. Ele tomou duas colheradas, colocou-as no filtro de papel e a seguir, despejou a água fervente sobre o pó, o quê nos fez sentir um perfume maravilhoso. 
O café, recém- feito, foi servido em canecas esmaltadas. E ficou muito bom mesmo; até eu mesmo comi um dos pãezinhos que levara, com um pouco de margarina. Lembrei-me de que tinha em meu carro estacionado a certa distância, uma garrafa de vinho tinto, que havia trazido de Garibaldi, lá no Rio Grande do Sul. Achei que aquela era a hora; dei uma desculpa de que voltava logo e fui buscar o vinho! Ariel ficou feliz em ver a garrafa de vinho. Ele me disse que, no passado, bebia cachaça, mas que depois de uma crise hepática, houvera desmaiado e que os outros moradores de rua o haviam levado ao Hospital das Clínicas, onde foi atendido no Pronto Socorro e que depois ficou internado por quase um mês. No entanto disse que um pouco de vinho, cairia bem e não lhe faria mal! De repente, ocorreu-me: como iremos abrir a garrafa de vinho? Tão logo falei a esse respeito, Ariel me disse que sabia uma forma infalível de abrir qualquer garrafa com rolha: saiu da barraca, improvisada como casa, e voltou com um tijolo de barro queimado. A seguir, pegou no armário improvisado uma toalha pequena, dessas chamadas “de rosto”. Fez uma rodilha com a toalha e a colocou sobre o tijolo. Em seguida pediu que eu lhe passasse a garrafa; coisa que fiz automaticamente, sem entender. 
Ariel então pegou firmemente a garrafa pelo meio e aplicou vários golpes com o fundo da mesma sobre a rodilha.
-Pluuuuuuuufffffttttt!!!!!!!!!!!!!!; a rolha voou longe, caindo entre os cães famintos que lamberam a rolha, na vã esperança de que fosse algo comível. Ariel pegou duas canecas de alumínio e a colocou no chão coberto por uma toalha de mesa: ali estavam os pães, a margarina, o vinho e alguns chocolates.
Ariel rezou um Pai-Nosso; a seguir, abriu dois dos tabletes de chocolates que eu havia levado e os dividiu entre seus cães que, pelo abanar das caudas, pareceram felizes com o mimo.

-E a ceia foi servida, com a presença invisível do Deus Menino; naturalmente!

Glossário
. (*) mocó: esconderijo; tenda mal – feita, formada de restos de latas, tábuas, papelões, plásticos, panos e lonas.
. (**) troca de roupas: refere-se ao conjunto completo formado de peças do vestuário: calça, camisa, cueca, meias (peugas), botas e etc..
. (***) vira-latas: cão sem raça definida, ou com a mistura de várias delas. Denota algo sem nenhum valor! Pejorativamente também é usada para designar uma pessoa sem classe ou sem-vergonha.

Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. Nascido em julho de 1946, é natural da zona rural de Cravinhos-SP (Brasil). Nascido e criado numa fazenda de café; vive na cidade de São Paulo (Brasil), desde os 13. Formou-se em Física, trabalhou até recentemente no ramo de engenharia, especialista em equipamentos petroquímicos.  É escritor amador diletante, cronista, poeta, contista e pesquisador do dialeto “Caipirês”. Tem textos publicados em 9 livros, sendo 4 “solos” e cinco em antologias, junto com outros escritores amadores brasileiros. São seus livros: “Pequeno Dicionário de Caipirês (recém reciclado e aguardando interesse de editoras), o livro infantil “A Sementinha”, um livro de contos, poesias e crônicas “Fragmentos” e o romance infanto-juvenil “Y2K: samba lelê”. 

1 comentário:

  1. Ola Amigo António dos Santos!
    Gostei do seu conto de Natal e agradeço pelo seu email a respeito de outras obras suas.
    Contos de Natal trazem a magia de cada um dos seus criadores em memória das nossa sensações e atitudes Cristãs.
    Eu vivo em Natal (Cidade dos Reis Magos) que hoje completou 419 anos de vida e, infelizmente, já não é o que era, 40 anos atrás quando cá cheguei por mera coincidência, ou simples ironia do destino.
    Para a Noite de Consoada deste ano (Ceia da Familia Cristã) eu escolhi um pensamento de Jean-Paul Sartre: Familia é como varíola; a gente pega em criança e fica marcada para o resto da vida!
    BOM ANO NOVO PARA TODOS NÓS!

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