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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Para Um Bem Maior

Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas..."

“Bastião” estava desesperado.
A vida não lhe corria nada bem e o pouco que ganhara, de “carrejão” durante vindima, fora-se em cartas e copos na taberna do Barnabé. Não queria “ouvir” a Maria a “chagar-lhe” a paciência por causa do dinheiro uma vez mais.
Olhou para as calças remendadas e puídas, que terminavam quatro dedos acima dos socos de madeira. Precisava de comprar umas calças, ou muito em breve ficaria com as ceroulas à mostra.
Já há muito que congeminava um plano, para dar a volta à sua situação financeira, mas não se atrevia a executá-lo: a capela do São Salvador, no alto da pequena colina sobranceira à aldeia, tinha sempre uma boa maquia na caixa de esmolas. Ainda por cima, com a festa do Santo na próxima semana. Já se viam muitos crentes a levar as velas e as moeditas que podiam dispensar, para pedir uma bênção, ou ajudar os pobres… quem mais pobre do que ele? Ficavam os cobres melhor para si, do que com o “papa-hóstias” do padre Figueira, que só sabia beber tinto e “larpar” os salpicões a que deitasse a mão.
De resto, quem é que alguma vez tinha recebido algum tostão dos que lá se punham para os pobres? Ele é que não! Pelo menos até hoje… Sorriu de si para si enquanto deitava nova olhada pela rua de terra batida que atravessava a aldeia, onde não se via vivalma.
Era noite e as nuvens de trovoada acumulavam-se sobre o vale desde o fim da tarde, o ribombar distante anunciava a possibilidade de uma forte chuvada para breve e todos na povoação se recolheram cedo para a ceia e para dormir, que amanhã seria um novo dia de duro trabalho.
Disfarçadamente, caminhou pela rua escura, sem acender candeia ou luminária, não fosse verem-no por lá. Fracos fios de luz escoavam-se pelas generosas frestas das portas das casas e aqui ou ali, ouviam-se as vozes dos adultos que se não haviam ainda deitado.
Passou em frente à pequena igreja e benzeu-se rapidamente, feliz por perceber que, nem o “Manel maluquinho”, que andava sempre pela praça, estava à vista naquele dia. Não apareceria de repente com a sua voz distorcida e gutural a pedir “Tostãozinho, pelas almas!”
Apressou o passo e lançou-se no caminho processional que subia ao santuário, oculto pela sombra das árvores, esperando não sujar os socos nalgum “presente” deixado por cavalo ou vaca.
Chegado ao alto do monte, a visão era ainda mais impressionante: os céus refulgiam com o luar que brilhava em volta das nuvens negras que pairavam sobre o vale. A espaços, vibravam clarões, brevemente respondidos por um retumbar longínquo.
A pequena capela estava obviamente fechada e Bastião abanou a porta com força, fazendo-a estremecer, mas não ceder. Resmungou baixinho… não tinha pensado bem naquilo, devia ter trazido um ferro…
Deu a volta ao edifício, espreitando pelos buracos de introdução das esmolas; a luz bruxuleante das velas, no interior, prometia-lhe um pouco de luz sem levantar suspeitas… pelo menos assim que entrasse. Tornou à entrada e avaliou a enorme fechadura de ferro, comida pelos anos…
Ergueu o pé e desfechou uma “patada” bem no meio da porta, sendo recompensado com a sua abertura de par em par, sem mais resistência. Felicíssimo saltou para o interior e fechou-se rapidamente.
O exíguo espaço que pouco mais daria do que para umas dez pessoas em pé, estava iluminado por uns quantos cotos de velas, ardendo nos suportes dedicados às promessas. A luz tremia ainda, perturbada pelo rompante da invasão, dando ao local um aspeto ainda mais fantasmagórico.
Na parede fundeira, uma espécie de altar e a cruz com O Crucificado em agonia, que era usada com muita devoção nas procissões, ocupavam quase todo o espaço. Dos lados, prateleiras com imagens de santos de vários tamanhos, velavam. Entre elas, uma imagem de São Pedro, olhava-o acusadoramente, empunhando a chave com uma mão e apontando o céu com a outra.
Ajoelhou-se frente ao altar e pediu perdão por aquilo que estava prestes a fazer:
"Senhor Jesus perdoe-me pelos meus pecados e pelos maus tratos que dou à minha mulher, que é uma santa… às vezes… outras vezes, torna-se o diabo em forma de gente e eu tenha de lhe “arriar” para a “pôr nos eixos”. Prometo que não volto a beber… tanto e que só vou jogar… uma vez por semana… ou duas."
 Usou os seus melhores argumentos, para justificar que o facto de se ir apoderar das esmolas, mais não era do que encaminhá-las para quem realmente precisa e para um bem maior, que não o engrandecimento da já enorme “pança” do padre Figueira, "Que o Senhor Jesus bem sabia como ele era." 
Assim que achou suficiente, agradeceu diversas vezes, benzeu-se e beijou os pés da sacra imagem, após o dedicou a atenção ao aloquete da caixa das esmolas. As letras ingenuamente escritas "Esmola para as Almas", tremeluziam como que recordando o sacrilégio que ia cometer. 
Estacou com um ruído que lhe pareceu ouvir… gotas de chuva começavam a cantar no telhado. Recomeçou a avaliação e tentou abrir o fecho com a faca cheia de bocas, sem sucesso.
Agarrou nas imagens dos santos e pousou-as cuidadosamente no chão, em seguida, apoderou-se da prateleira onde elas estavam e bateu com ela sobre o aloquete. À segunda pancada partiu-se a tábua, mas o fecho também cedeu e uma torrente de moedas negras, algumas muito maltratadas, choveu aos pés do salteador. Rapidamente iniciou a recolha para o saco de lona que trouxera. Eram basicamente moedas de dez e vinte reis, mas demorou-se uns segundos a mirar uma ou outra de cinquenta reis e os olhos brilharam, quando achou dois tostões, duas de cem reis e mais três meias patacas, de cento e sessenta reis cada.
Encolheu-se. Pareceu-lhe ouvir alguém lá fora e ficou em silêncio. Uma moeda retardatária tilintou em cima das outras. Empunhou a faca e espreitou para a escuridão no exterior… a chuva caía copiosa, o vento soprava e relâmpagos longínquos rasgavam o céu. Não era possível ver a mais de três ou quatro metros de distância. Regressou e apressou-se a recolher o saque.
Deitou um último olhar aos santos; São Pedro continuava a olhá-lo acusadoramente, ameaçando-o com a justiça divina. Voltou a imagem para a parede e pôs o saco às costas. Benzeu-se para o enorme crucifixo. Uma forte rabanada de vento escancarou as portas e todas as velas se apagaram. O rosto de Cristo parecia refulgir com a luz dos relâmpagos.
"Perdão, meu Deus", gemeu estarrecido, antes de sair para a intempérie.
Mal deu dez passos, quando deparou com uma aparição, coberta da cabeça aos pés, que lhe barrava o caminho e estendia as mãos.
Soltou um grito estrangulado e caiu para trás, petrificado, tilintando centenas de moedas pelo chão empedrado. O seu rosto numa máscara de terror, focou o céu iluminado pela trovoada, enquanto a assombração se debruçava sobre ele. Com os olhos esbugalhados, inspirou atabalhoadamente três vezes e depois, parou para sempre…
A sinistra e andrajosa aparição, coberta com uma grosseira lona, inclinou-se para o corpo sem vida e exclamou:
"Tostãozinho pelas Almas"

 Conto agraciado com o primeiro prémio no "Passatempo Mini conto Fantástico FNAC"


Manuel Amaro Mendonça nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016), "Daqueles Além Marão" (Abril 2017) e "Entre o Preto e o Branco" (2020), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Foi reconhecido em quatro concursos de escrita e os seus textos já foram selecionados para duas dezenas de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e sairão em breve. Siga as últimas novidades AQUI.

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