Vista sobre o Rio de Onor |
Este fenómeno, que perdurou ao longo de muitos anos, ainda hoje faz parte do imaginário construído sobre o passado por essas pessoas que viveram a raia, constituindo-se eventualmente numa das maiores bandeiras da sua identidade, sendo totalmente transversal naquilo que podemos designar como hierarquia das aldeias raianas.
No dizer de Eduardo Araújo, “as histórias dos grupos de dez, quinze e vinte pessoas, carregados com fardos de 20 kg de café, a andarem 20/30 km por noite, pelo meio do mato, à chuva e à neve, até uma qualquer povoação espanhola, são algo bem mais do que abundantes: são um dos traços mais importantes da forma, segundo a qual estas pessoas se reveem hoje”.
Tal como referimos, contrabandeava-se um pouco de tudo, à mercê da procura que aparecia e da oferta que era possível proporcionar, pelo que os produtos objeto de contrabando mudavam frequentemente. Apenas um permaneceu ao longo das décadas de contrabando: o café. Proveniente das ex-colónias portuguesas, era considerado pelos espanhóis como muito melhor do que o deles, para além de o conseguirem a um preço bastante inferior ao praticado em relação ao café espanhol.
A forma de contrabandear variava de uma aldeia raiana para outra, longe de ser uniforme, totalmente
adaptada às características orográficas existentes e também à capacidade de compra das respetivas populações.
Nas aldeias de Guadramil e Petisqueira praticava-se, essencialmente, o denominado contrabando “à jeira”, ou seja, levavam as cargas a um sítio previamente determinado e, no regresso, o dono da mercadoria contrabandeada pagava-lhes o acordado, que designavam como jeira.
Em Rio de Onor, pela sua situação particular e única no Concelho de Bragança, o contrabando praticava-se a dois níveis:
• os residentes, sempre que podiam, compravam alguma mercadoria aos comerciantes locais e vendiam-na em Espanha, mais cara, somando assim algum pecúlio aos seus magros rendimentos;
• muitos lameiros situados num ou noutro lado da raia pertenciam a portugueses e espanhóis, permitindo, com alguma facilidade, o contrabando de gado bovino e ovino, sem que os guardas-fiscais portugueses e os carabineiros espanhóis pudessem intervir, embora desconfiassem que tal ocorria.
No Portelo e em Montesinho, para além do aludido contrabando à jeira, praticava-se igualmente um contrabando em escala acrescida, de proporções assinaláveis, levado a cabo por pessoas abastadas e, sobretudo, ligadas a redes que trabalhavam do lado de lá da fronteira, já com algum profissionalismo. É evidente que por detrás deste contrabando em larga escala estavam, obviamente, médios e grandes comerciantes da Cidade de Bragança, únicos capazes de comprar as respetivas mercadorias sem levantar suspeitas às autoridades.
O contrabando era uma atividade que envolvia perigo. As pessoas que o praticavam podiam ficar sem as mercadorias e a consequente perda dos poucos recursos que nelas tinham investido, podendo ainda ficar presas por tempo indeterminado e até mesmo correr perigo de vida.
Foi desta prática de contrabandear produtos para o outro lado da fronteira – e que se prolongou até 1992 (Acordo de Schengen) – que se originaram profundas relações de amizade, de cumplicidade e de conhecimento entre pessoas dos dois lados da fronteira, numa rede aparentemente invisível, mas geradora de profundas e duradouras relações sociais transfronteiriças.
Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa
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