Por: Ernesto Rodrigues
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
A descentralização «nunca estará acabada», afirmou o então primeiro-ministro em 30 de Setembro de 2023, no Seixal, na abertura do XXVI Congresso da Associação Nacional de Municípios Portugueses. António Costa nunca falou de regionalização, como pretendem os autarcas – e, em especial, os de uma região, Trás-os-Montes e Alto Douro, que constitui um sétimo do poder camarário no Continente.
Há uma «identidade do lugar» que a História e a Geografia definem como fronteiras, marcando «a noção de território e da diferença», segundo José Mattoso. Marão, Alvão, Cabreira e Gerês separam do Minho; o rio Douro, das Beiras. No curso internacional deste e da serra de Montesinho à do Larouco (com o Gerês, as de maior altitude no Continente, após a serra da Estrela) correm as comunidades de Castela e Leão e da Galiza.
Em tempo de D. Manuel, Trás-os-Montes é uma das seis comarcas do reino, percebida, pois, como sui generis, até hoje. A violência dos elementos – terra dura (salvo nas veigas: Chaves e trechos da Terra Quente nordestina), clima contrastante –, é «pacificada pelo trabalho imperceptível e incansável do tempo», de que resulta o «carácter intocado, “natural”, da paisagem». Em síntese de Mattoso: «Trás-os-Montes é, pois, simultaneamente, a terra da natureza intacta, das grandes violências, da energia acumulada e do “tempo longo”.» (p. 7)
As dificuldades, que outras províncias ibéricas do século V também conheceram – o bispo Idácio de Chaves conta na sua Crónica, finda em 469, como a razia das invasões bárbaras, com os Vândalos dominando a Galiza, foi acompanhada de pestes e fome, dos humanos fazendo antropófagos –, criaram formas de resistência e solidariedade, além de variedades de uso comunitário agora extintas: o boi e forno do povo, coutos e vezeira (guarda do gado por todos). A riqueza aurífera dos séculos I e II foi desaparecendo, e só a exploração do volfrâmio reanimou com a Segunda Guerra Mundial; outros minérios valem menos do que os cereais, o vinho, o azeite, a amêndoa, a castanha, os enchidos, as águas minerais, insuficientes para atrair ou reter populações, como não retiveram as indústrias da seda e linho, em Setecentos, nem as termas hispano-romanas e oitocentistas, e as muitas barragens do Douro (que sacrificaram povoações, além dos trabalhadores: ver as condições de vida destes, nos anos 50, em Telmo Ferraz, O Lodo e as Estrelas, 1960). A oliveira das baixas de Mirandela, a par de Freixo de Espada à Cinta (também com pão e vinho), é já memorada na Geografia d’Entre Douro e Minho e Trallosmontes (c. 1549), do Doutor João de Barros.
Entendemos melhor a região de Trallosmontes à luz das três condições na definição de cultura, segundo T. S. Eliot (Notas para a Definição de Cultura, Rio de Janeiro, 1965: 16): uma «estrutura orgânica» assente em classes sociais e transmissão hereditária; a especificidade geográfica, ou «regionalismo», desembocando em «culturais locais»; a religião, com seus cultos e devoções. «O principal canal de transmissão de cultura» (p. 43) é a família, conceito que salta facilmente as paredes de um lar para formas colectivas. Assim se explicam estudos continuados sobre o romanceiro; sobre a oratura em prosa; o teatro popular; sem esquecer o disperso cancioneiro de redondilha maior, a pedir balanço, confrontadas as quinhentas densas páginas do Cancioneiro Popular Transmontano e Alto-Duriense (1966), de Guilherme Felgueiras.
Sirva-nos o índice geral deste para entendermos, numa Europa que se pretende de regiões, esta pequena parcela. O quotidiano é de relação: com a múltipla natureza, os mundos animal e vegetal, entre galanteios e requebros, arrufos, chacota, «penas de amor», relação que fundamos em três núcleos essenciais: vida social e moral, incluindo-se, aqui, os costumes; vida material; linguagem.
Na vida social e moral, convergem bodas, baptizados, ritos fúnebres, demandas, entre outros eventos; com datas fixas, há cerimónias religiosas, festas, Entrudo, e houve o Galo do professor; constantes, não raro conjugando-se, são, por exemplo, a má-língua e o serão. Este associa transmissão em família e região. Estamos no seio da cultura intersocial.
Esta acrescenta uma componente instrumental, um saber-fazer, na passagem à vida material: além da cultura da terra e suas técnicas, além de ofícios ou indústrias caseiras, somem-se adornos e trajes, alimentação, iluminação, etc. De tudo isto dá conta, miudamente, a leva de etnólogos, sociólogos e historiadores (também das mentalidades, da cultura, da comida). O estado de conservação seduz, para lá de paredes que ecoam “Entre quem é!”. Não menos actua a literatura, alargando o leque das potencialidades. Estas residem na linguagem, parcial repositório do que acabei de enumerar.
O que, no tocante às línguas – entidade donde manam linguagens (lá iremos) –, tem a região de diversidade, tem de unidade em matéria de religião. Responde ao voto final de Eliot, pois, «sem uma fé comum, todos os esforços para unir mais as nações, em cultura, não poderão produzir mais do que uma ilusão de unidade» (p. 82). Esta visão medieval vazou-se em catolicismo apostólico romano, jamais imune ao paganismo de rituais festejados pelos mais crentes, a par de crendices e bruxedos, de medicina popular combatida pela Igreja e Universidade desde o século XIII, de pactos com o Diabo e tentações da carne que arrepiam serafins. Veja-se como o cónego Ochoa, que dá título (2007) a A. M. Pires Cabral, desonra a filha do feitor Querubim, Gervásia. Aproveito a personagem Herculano para dizer como se reforça a palavra da rua, a atmosfera de merenda à lareira, e, por breves histórias interpoladas, se oferece um quadro aldeão disputado entre igreja e taberna. Citei quatro lugares de eleição, em que a igreja não tem primazia.
É extraordinário, entretanto, ver reunidas família, região e religião em dois núcleos: nos santuários, ermidas e ex-votos que pontuam a geografia; e na figura do padre-escritor, quase sempre obscuros abades vivendo do seu passal ou da côngrua.
Santuários, ermidas e nichos devotos vêm do tempo de Panóias romanizada, coetâneos de pontes e vias romanas – reformadas em finais de Setecentos, com o provimento de fontes e novas estradas reais –, antes de chegarem os caminhos de Santiago, com que a região se transladava em romarias, feiras francas (de um ou dois dias por mês, quando não de três, na dos Santos, em Torre de Dona Chama; eram, sobretudo, de gado), e se ligava à Europa. O comboio, hesitante, veio e foi-se entre 1906 e 1992. Modernas vias, por ar e terra, não fixam gente. Entretanto, outros cultos primitivos sobrevêm, documentados nos berrões/berroas, associados ao pelourinho. Seria preciso estudar castros, antas, dólmenes, etc., face ao êxito das antigas festas do solstício de Inverno, agora recuperadas – na antropologia, na geografia, na engenharia e arquitectura, no cinema, no documentário, na ficção, nas artes plásticas, na caricatura, na fotografia. Padres houve que foram além de curas de almas e melhor organizam um imaginário, em que o santo-e-senha é Francisco Manuel Alves: se os 11 volumes (desde 2002, com um décimo segundo de índices) das Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança (1909-1947) realçam, no título, Arqueologia e História, não esquecem Bibliografia, Toponímia e demais domínios da investigação local, incluindo um par em que a região a todas sobreleva – na Língua e suas falas, e na Literatura Oral e Tradicional.
Onde buscar, entretanto, o peso ou o sentido de região à luz do estrato cultural que é a literatura, cujo universo referencial fugidiamente descrevi? Na linguagem. Terra de duas línguas oficiais, português e mirandês, tem registados, quando não pronunciados, os falares barrosão, sendinês, guadramilês e rionorês, ou riodonorense. Quer-se mais diversidade linguística?
Ora, é face à regra e sua reversão, à pronúncia oblíqua e seu registo, ao novidoso vocábulo, servindo um olhar de alturas e abismos a verter, que esteticamente se perfila e transmite um conjunto particular de imagens em que nos solidarizamos, seja neste chão ou nas comunidades deslocadas. O nosso mundo é «em qualquer Brasil», disse Torga, em conferência de 1948 sobre “Teixeira de Pascoaes”: «Nascemos aqui, mas nascemos desterrados, reais ou potenciais, e sempre com parte do sangue no exílio. Todos temos um irmão, um filho, um primo ou a família inteira em qualquer Brasil.» Nessa conferência, “Trás-os-Montes no Brasil”, lida no Centro Transmontano de São Paulo e no do Rio, em 14 e 16-VIII-1954 – onde surge o célebre «O universal é o local sem paredes» –, é um paradoxo notável afirmar que a «realidade sem muros», que eu traduzo em região da cultura (e, nela, de uma literatura peculiar), realidade paralela a «qualquer Brasil», era a região com mais muros e muretes: Trás-os-Montes...
História, Geografia e uma singular Cultura sobreviva (nos idiomas e suas variações, numa antropologia de quotidiano resistente e solidário) trazem identidade a um território que se prova voltado para o mundo e, desde logo, para Espanha. A emigração dos anos 60 foi uma tábua de salvação; mas 50 anos de democracia são mais do que 48 de Estado Novo e as estatísticas mostram que, entre 1960 e 2021, os 34 concelhos de Trás-os-Montes e Alto Douro (na desejada regionalização, falaremos em 40) passaram de 692 029 habitantes para 384 410, seja, de 7, 82% para 3, 74% do todo nacional. Nas eleições legislativas de 1976, Bragança elegeu cinco deputados; agora, elege três; Vila Real veio de sete para cinco. Seja, perderam-se quatro deputados, e as respectivas distritais não parecem preocupadas.
Deixando de lado a ladainha dos serviços públicos extintos ou subtraídos; considerada, histórica e culturalmente, a singularidade de uma região objectivamente abandonada pelos sucessivos poderes e suas promessas ocas, é sensato concluir que as médias cidades da região provaram já uma invejável capacidade de governo, desde o ensino superior à segurança e qualidade de vida sustentável, em que Bragança é modelar, em termos europeus.
Dói, todavia, que os responsáveis adiem o cumprimento da Constituição, e que a Assembleia da República, de posse de um documento fundamental do IPPS-ICTE (2019) sobre a organização do Estado e as competências dos municípios, não leia sabiamente os resultados: «A maioria dos autarcas quer a regionalização e órgãos diretamente eleitos nas regiões e áreas metropolitanas, mas não nas CIM». Percentagens: criar regiões no curto prazo defendem 77 por cento dos municípios; regiões administrativas com órgãos próprios eleitos directamente: 84 por cento. «A regionalização é uma ambição transpartidária», com 100 por cento de votos da CDU, 85 por cento do PS, 67 por cento do PSD e CDS. À pergunta se as regiões devem ser criadas no curto prazo, o litoral diz que sim (75 por cento) e o interior sobe aos 80 por cento. Perante este quadro, não se avança porquê?
Li o programa eleitoral do PS para 2022-2026, entretanto vencido em recentes eleições. Na 3.ª parte, “Desafio estratégico: desigualdades”, o capítulo V, “Coesão territorial”, promete: «Tornar o território mais coeso, mais inclusivo e mais competitivo; Corrigir as assimetrias territoriais; Atrair investimento para o interior; Diversificar e qualificar o tecido produtivo; […]; Promover a fixação de pessoas nos territórios do interior; Afirmar os territórios fronteiriços; Assegurar serviços de proximidade.» Reconhecido um «estatuto especial», garante «infraestruturas rodoviárias de proximidade, nomeadamente no âmbito do PRR», e promove «a mobilidade transfronteiriça» com «serviços de transporte a pedido», sem jamais falar da indispensável ferrovia. Não se vê como coadunar isto com a seguinte entrada: «Implementar com Espanha a Estratégia Comum de Desenvolvimento Transfronteiriço, no âmbito do próximo Quadro Financeiro Plurianual, reposicionando o interior de Portugal como espaço de uma nova centralidade ibérica.» Face às perdas em 50 anos de democracia, como reposicionar o Interior Norte enquanto centralidade ibérica sem a experiência da regionalização, que maiorias tão claras defendem? Porquê tresler a Constituição e travestir a regionalização em descentralização sem fim à vista?
Há uma «identidade do lugar» que a História e a Geografia definem como fronteiras, marcando «a noção de território e da diferença», segundo José Mattoso. Marão, Alvão, Cabreira e Gerês separam do Minho; o rio Douro, das Beiras. No curso internacional deste e da serra de Montesinho à do Larouco (com o Gerês, as de maior altitude no Continente, após a serra da Estrela) correm as comunidades de Castela e Leão e da Galiza.
Em tempo de D. Manuel, Trás-os-Montes é uma das seis comarcas do reino, percebida, pois, como sui generis, até hoje. A violência dos elementos – terra dura (salvo nas veigas: Chaves e trechos da Terra Quente nordestina), clima contrastante –, é «pacificada pelo trabalho imperceptível e incansável do tempo», de que resulta o «carácter intocado, “natural”, da paisagem». Em síntese de Mattoso: «Trás-os-Montes é, pois, simultaneamente, a terra da natureza intacta, das grandes violências, da energia acumulada e do “tempo longo”.» (p. 7)
As dificuldades, que outras províncias ibéricas do século V também conheceram – o bispo Idácio de Chaves conta na sua Crónica, finda em 469, como a razia das invasões bárbaras, com os Vândalos dominando a Galiza, foi acompanhada de pestes e fome, dos humanos fazendo antropófagos –, criaram formas de resistência e solidariedade, além de variedades de uso comunitário agora extintas: o boi e forno do povo, coutos e vezeira (guarda do gado por todos). A riqueza aurífera dos séculos I e II foi desaparecendo, e só a exploração do volfrâmio reanimou com a Segunda Guerra Mundial; outros minérios valem menos do que os cereais, o vinho, o azeite, a amêndoa, a castanha, os enchidos, as águas minerais, insuficientes para atrair ou reter populações, como não retiveram as indústrias da seda e linho, em Setecentos, nem as termas hispano-romanas e oitocentistas, e as muitas barragens do Douro (que sacrificaram povoações, além dos trabalhadores: ver as condições de vida destes, nos anos 50, em Telmo Ferraz, O Lodo e as Estrelas, 1960). A oliveira das baixas de Mirandela, a par de Freixo de Espada à Cinta (também com pão e vinho), é já memorada na Geografia d’Entre Douro e Minho e Trallosmontes (c. 1549), do Doutor João de Barros.
Entendemos melhor a região de Trallosmontes à luz das três condições na definição de cultura, segundo T. S. Eliot (Notas para a Definição de Cultura, Rio de Janeiro, 1965: 16): uma «estrutura orgânica» assente em classes sociais e transmissão hereditária; a especificidade geográfica, ou «regionalismo», desembocando em «culturais locais»; a religião, com seus cultos e devoções. «O principal canal de transmissão de cultura» (p. 43) é a família, conceito que salta facilmente as paredes de um lar para formas colectivas. Assim se explicam estudos continuados sobre o romanceiro; sobre a oratura em prosa; o teatro popular; sem esquecer o disperso cancioneiro de redondilha maior, a pedir balanço, confrontadas as quinhentas densas páginas do Cancioneiro Popular Transmontano e Alto-Duriense (1966), de Guilherme Felgueiras.
Sirva-nos o índice geral deste para entendermos, numa Europa que se pretende de regiões, esta pequena parcela. O quotidiano é de relação: com a múltipla natureza, os mundos animal e vegetal, entre galanteios e requebros, arrufos, chacota, «penas de amor», relação que fundamos em três núcleos essenciais: vida social e moral, incluindo-se, aqui, os costumes; vida material; linguagem.
Na vida social e moral, convergem bodas, baptizados, ritos fúnebres, demandas, entre outros eventos; com datas fixas, há cerimónias religiosas, festas, Entrudo, e houve o Galo do professor; constantes, não raro conjugando-se, são, por exemplo, a má-língua e o serão. Este associa transmissão em família e região. Estamos no seio da cultura intersocial.
Esta acrescenta uma componente instrumental, um saber-fazer, na passagem à vida material: além da cultura da terra e suas técnicas, além de ofícios ou indústrias caseiras, somem-se adornos e trajes, alimentação, iluminação, etc. De tudo isto dá conta, miudamente, a leva de etnólogos, sociólogos e historiadores (também das mentalidades, da cultura, da comida). O estado de conservação seduz, para lá de paredes que ecoam “Entre quem é!”. Não menos actua a literatura, alargando o leque das potencialidades. Estas residem na linguagem, parcial repositório do que acabei de enumerar.
O que, no tocante às línguas – entidade donde manam linguagens (lá iremos) –, tem a região de diversidade, tem de unidade em matéria de religião. Responde ao voto final de Eliot, pois, «sem uma fé comum, todos os esforços para unir mais as nações, em cultura, não poderão produzir mais do que uma ilusão de unidade» (p. 82). Esta visão medieval vazou-se em catolicismo apostólico romano, jamais imune ao paganismo de rituais festejados pelos mais crentes, a par de crendices e bruxedos, de medicina popular combatida pela Igreja e Universidade desde o século XIII, de pactos com o Diabo e tentações da carne que arrepiam serafins. Veja-se como o cónego Ochoa, que dá título (2007) a A. M. Pires Cabral, desonra a filha do feitor Querubim, Gervásia. Aproveito a personagem Herculano para dizer como se reforça a palavra da rua, a atmosfera de merenda à lareira, e, por breves histórias interpoladas, se oferece um quadro aldeão disputado entre igreja e taberna. Citei quatro lugares de eleição, em que a igreja não tem primazia.
É extraordinário, entretanto, ver reunidas família, região e religião em dois núcleos: nos santuários, ermidas e ex-votos que pontuam a geografia; e na figura do padre-escritor, quase sempre obscuros abades vivendo do seu passal ou da côngrua.
Santuários, ermidas e nichos devotos vêm do tempo de Panóias romanizada, coetâneos de pontes e vias romanas – reformadas em finais de Setecentos, com o provimento de fontes e novas estradas reais –, antes de chegarem os caminhos de Santiago, com que a região se transladava em romarias, feiras francas (de um ou dois dias por mês, quando não de três, na dos Santos, em Torre de Dona Chama; eram, sobretudo, de gado), e se ligava à Europa. O comboio, hesitante, veio e foi-se entre 1906 e 1992. Modernas vias, por ar e terra, não fixam gente. Entretanto, outros cultos primitivos sobrevêm, documentados nos berrões/berroas, associados ao pelourinho. Seria preciso estudar castros, antas, dólmenes, etc., face ao êxito das antigas festas do solstício de Inverno, agora recuperadas – na antropologia, na geografia, na engenharia e arquitectura, no cinema, no documentário, na ficção, nas artes plásticas, na caricatura, na fotografia. Padres houve que foram além de curas de almas e melhor organizam um imaginário, em que o santo-e-senha é Francisco Manuel Alves: se os 11 volumes (desde 2002, com um décimo segundo de índices) das Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança (1909-1947) realçam, no título, Arqueologia e História, não esquecem Bibliografia, Toponímia e demais domínios da investigação local, incluindo um par em que a região a todas sobreleva – na Língua e suas falas, e na Literatura Oral e Tradicional.
Onde buscar, entretanto, o peso ou o sentido de região à luz do estrato cultural que é a literatura, cujo universo referencial fugidiamente descrevi? Na linguagem. Terra de duas línguas oficiais, português e mirandês, tem registados, quando não pronunciados, os falares barrosão, sendinês, guadramilês e rionorês, ou riodonorense. Quer-se mais diversidade linguística?
Ora, é face à regra e sua reversão, à pronúncia oblíqua e seu registo, ao novidoso vocábulo, servindo um olhar de alturas e abismos a verter, que esteticamente se perfila e transmite um conjunto particular de imagens em que nos solidarizamos, seja neste chão ou nas comunidades deslocadas. O nosso mundo é «em qualquer Brasil», disse Torga, em conferência de 1948 sobre “Teixeira de Pascoaes”: «Nascemos aqui, mas nascemos desterrados, reais ou potenciais, e sempre com parte do sangue no exílio. Todos temos um irmão, um filho, um primo ou a família inteira em qualquer Brasil.» Nessa conferência, “Trás-os-Montes no Brasil”, lida no Centro Transmontano de São Paulo e no do Rio, em 14 e 16-VIII-1954 – onde surge o célebre «O universal é o local sem paredes» –, é um paradoxo notável afirmar que a «realidade sem muros», que eu traduzo em região da cultura (e, nela, de uma literatura peculiar), realidade paralela a «qualquer Brasil», era a região com mais muros e muretes: Trás-os-Montes...
História, Geografia e uma singular Cultura sobreviva (nos idiomas e suas variações, numa antropologia de quotidiano resistente e solidário) trazem identidade a um território que se prova voltado para o mundo e, desde logo, para Espanha. A emigração dos anos 60 foi uma tábua de salvação; mas 50 anos de democracia são mais do que 48 de Estado Novo e as estatísticas mostram que, entre 1960 e 2021, os 34 concelhos de Trás-os-Montes e Alto Douro (na desejada regionalização, falaremos em 40) passaram de 692 029 habitantes para 384 410, seja, de 7, 82% para 3, 74% do todo nacional. Nas eleições legislativas de 1976, Bragança elegeu cinco deputados; agora, elege três; Vila Real veio de sete para cinco. Seja, perderam-se quatro deputados, e as respectivas distritais não parecem preocupadas.
Deixando de lado a ladainha dos serviços públicos extintos ou subtraídos; considerada, histórica e culturalmente, a singularidade de uma região objectivamente abandonada pelos sucessivos poderes e suas promessas ocas, é sensato concluir que as médias cidades da região provaram já uma invejável capacidade de governo, desde o ensino superior à segurança e qualidade de vida sustentável, em que Bragança é modelar, em termos europeus.
Dói, todavia, que os responsáveis adiem o cumprimento da Constituição, e que a Assembleia da República, de posse de um documento fundamental do IPPS-ICTE (2019) sobre a organização do Estado e as competências dos municípios, não leia sabiamente os resultados: «A maioria dos autarcas quer a regionalização e órgãos diretamente eleitos nas regiões e áreas metropolitanas, mas não nas CIM». Percentagens: criar regiões no curto prazo defendem 77 por cento dos municípios; regiões administrativas com órgãos próprios eleitos directamente: 84 por cento. «A regionalização é uma ambição transpartidária», com 100 por cento de votos da CDU, 85 por cento do PS, 67 por cento do PSD e CDS. À pergunta se as regiões devem ser criadas no curto prazo, o litoral diz que sim (75 por cento) e o interior sobe aos 80 por cento. Perante este quadro, não se avança porquê?
Li o programa eleitoral do PS para 2022-2026, entretanto vencido em recentes eleições. Na 3.ª parte, “Desafio estratégico: desigualdades”, o capítulo V, “Coesão territorial”, promete: «Tornar o território mais coeso, mais inclusivo e mais competitivo; Corrigir as assimetrias territoriais; Atrair investimento para o interior; Diversificar e qualificar o tecido produtivo; […]; Promover a fixação de pessoas nos territórios do interior; Afirmar os territórios fronteiriços; Assegurar serviços de proximidade.» Reconhecido um «estatuto especial», garante «infraestruturas rodoviárias de proximidade, nomeadamente no âmbito do PRR», e promove «a mobilidade transfronteiriça» com «serviços de transporte a pedido», sem jamais falar da indispensável ferrovia. Não se vê como coadunar isto com a seguinte entrada: «Implementar com Espanha a Estratégia Comum de Desenvolvimento Transfronteiriço, no âmbito do próximo Quadro Financeiro Plurianual, reposicionando o interior de Portugal como espaço de uma nova centralidade ibérica.» Face às perdas em 50 anos de democracia, como reposicionar o Interior Norte enquanto centralidade ibérica sem a experiência da regionalização, que maiorias tão claras defendem? Porquê tresler a Constituição e travestir a regionalização em descentralização sem fim à vista?
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