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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

PADRE BELARMINO, UM HOMEM DA CULTURA

 Na impossibilidade de redigir, como era meu desejo, um texto no âmbito da Epigrafia, com que homenageasse o Padre Belarmino Afonso, pois também esta foi uma das ciências que praticou, permita-se-me que lavre singelo testemunho acerca dos laços que com ele mantive durante os últimos 20 anos da sua mui profícua vida.


Lembro-me de, um dia, pela década de 80, delicadamente solicitar autorização para me falar uma figura de aparência humilde, magra de carnes (como se deduzia pela roupa negra que envergava). Trazia nas mãos uns papelitos, creio que uma ou duas fotos também, e, depois de haver consultado uns livros na biblioteca do Instituto de Arqueologia, quisera falar-me sobre uma epígrafe que, ao contrário das que ia encontrando, lhe estava a causar problemas de interpretação quase insolúveis. Não era fácil a leitura, de facto, e muito menos a decifração. Lá conversámos, creio que lhe prometi o envio de um parecer mais fundamentado e... assim começou uma amizade e um intercâmbio científico sempre pautado pela maior cordialidade e partilha, irmanados ambos, desde logo, nesta vontade de dar a conhecer, com o maior rigor possível, a mensagem que as epígrafes romanas nos legaram.

Tenho a impressão de que guardo todas as cartas e cartões com que o Padre Belarmino me obsequiou. Um dos primeiros, datado de 25-6-85, ainda com o timbre da Assembleia Distrital de Bragança (tel. 22145!) terá sido, na sequência do nosso encontro, o que acompanhou a oferta do vol. V, n.º 1 (Jan.-Mar./85) de Brigantia, redigido naquela sua letra certinha, muito inclinada para a frente, hastes longas como que em busca de raízes, as maiúsculas grafadas como aprendêramos na instrução primária:

Com os agradecimentos de Brigantia envio o último n.º de Brigantia.

Com Amizade

O Director
Belarmino Afonso

Foi o primeiro do rol dos números da revista que, pontualmente, daí por diante me chegaram às mãos, duas vezes por ano e que eu folheava de imediato, a ver os temas que mais me interessavam. Mormente se trazia artigos sobre Arqueologia. E esse é – e adianto-o desde já – o segundo aspecto da personalidade do Padre Belarmino que sempre me cativou: o empenho com que procurava fazer sair a tempo a revista.

O primeiro aspecto já o deixei intuir: a modéstia, a simplicidade. Veja-se que escreveu «Com os agradecimentos de Brigantia»; poderia ter dito, como seria normal, «Com os meus agradecimentos». Não o fez; não porque se considerasse a ‘alma’ da revista, mas porque, assim, se ‘escondia’ num anonimato quase, que sempre a caracterizou, sem a mínima preocupação de protagonismo.

A sua enorme vontade de saber e de transmitir o que ia aprendendo levou-o, como director de uma «revista de Cultura», a aceitar de braços abertos quantos nela queriam colaborar. Creio haver pouca gente da Cultura em Portugal – nos mais diversos campos das Ciências Humanas – que não teve, um dia, oportunidade de escrever na Brigantia, a convite de Padre Belarmino. Encarava a Cultura como esta enorme diversidade de saberes e a todos deu acolhimento na sua revista. Aliás, fazia questão, todas as vezes que um novo colaborador acedia a escrever nas suas páginas, em dele traçar na badana os «dados biográficos» mais salientes.

Nesse aspecto, o citado n.º 1 do volume V não deixa de ser significativo.

Logo no sumário isso se vê:

– António Maria Mourinho disserta sobre «o preço do centeio numa aldeia mirandesa, desde 1621 a 1885»;

– Natália Ferreira Alves (hoje catedrática de História da Arte na Faculdade de Letras do Porto) estuda o retábulo da capela-mor da igreja matriz de Torre de Moncorvo;

– Dias Marques reporta-se (em continuação) aos romances populares dos concelhos de Bragança e de Vinhais;

– Francisco Rodríguez Pascual dá conta do «ciclo de Navidad en tierras de Zamora» (e esta ligação ao outro lado da fronteira sempre Belarmino Afonso praticou, numa atitude quase pioneira entre nós);

– José Rodrigues Monteiro salienta a importância que teve a «1.ª Exposição Nacional de Postais Antigos: Portugal no 1.º quartel do século XX»;

– Augusto Abade e Ana Carvalho fazem um estudo biodemográfico da emblemática freguesia de Rio de Onor, um caso ímpar na sociabilidade e na arte de viver em comunidade (digo eu, na esteira de Jorge Dias e da sua escola etnológica);

– Ángel Marcos de Dios inicia aqui, se não erro, uma série de mui interessantes artigos sobre os portugueses que frequentaram os bancos da Universidade de Salamanca, neste caso no período de 1580 a 1640, um conjunto de informação da maior valia no âmbito do intercâmbio universitário e de que ora se reveste de particular interesse, quando se pretende justamente – através da concretização do estipulado no chamado «Processo de Bolonha» – fomentar esse intercâmbio, que, afinal, os dois países peninsulares, nomeadamente entre Salamanca e Coimbra sempre foram paladinos;

– José Adriano Janeiro caracteriza a geografia de S. Pedro de Poiares;

– Hirondino da Paixão Fernandes, um dos colaboradores mais directos de Padre Belarmino e um dos grandes entusiastas pela cultura e pelas tradições transmontanas, termina aí a 1.ª série dos «amenos passeios» com que, numa linguagem escorreita, coloquial – «Onde estava, onde não estava, queriam sabê-lo, mas ninguém na aldeia lho dizia, por mais republicano que fosse», um mimo!... –, nos guia pelos caminhos ínvios desses lugarejos perdidos (aqui é do Parâmio que se trata);

– Pinelo Tiza debruça-se sobre as «manifestações de crítica social do ciclo do Inverno»;

– Joaquim Manuel Rebelo dá-nos apontamentos «para uma história da imprensa de Trás-os-Montes e Alto Douro»;

– e, finalmente, Belarmino Afonso (verifique-se que se deixou ficar para último...) mostra-nos a riqueza das pinturas murais seiscentistas em capelas do distrito e, também neste caso, não quis prescindir do parecer de um especialista, Vítor Serrão, hoje professor catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa. Mas não acaba aqui a revista, que o «noticiário cultural», da lavra do director, constitui, para a história futura, excelente repositório do que de mais importante no último semestre por terras brigantinas se realizara, com um que outro pequeno apontamento de outra índole que não de notícia de evento e que não se pode deixar perder.

Perdoar-me-á o leitor se o massacrei com este rol completo. Julgo, porém, que ele é bem significativo do espírito eclético, abrangente, multifacetado com que Belarmino Afonso entendia as ‘coisas’ da Cultura: ele é a Antropologia, a História, a Sociologia, a História da Arte, a Numismática, a Etnografia... mas ele é igualmente a Geografia, a Demografia, a Economia...

Curiosamente, foi muito raro, ao longo da vida de Brigantia sob sua direcção, que fizesse anteceder os artigos de um depoimento seu, em jeito de apresentação ou sob um pretexto qualquer. Neste volume do primeiro semestre de 1985, porém, houve uma excepção, ainda que discreta e omitida no sumário. O motivo: Brigantia entrava «no primeiro lustro da sua existência» e, por isso, escolhos evitados, espinhos vencidos, incompreensões rapidamente esquecidas, havia que proclamar: «A cultura é um valor»!

«Vaidosa pelo contributo que deu à sua terra», a revista olhava o caminho percorrido: norteado pela «missão bem determinada de veicular tudo o que traz a marca cultural das suas gentes»; apostado na «humanização do nosso modo de viver»; fiel «às raízes que alimentam o presente com o passado». Sempre pronta a «carrear tudo o que traz a marca indelével do homem transmontano». Jovem embora, proclama Belarmino Afonso mais adiante, Brigantia «sente a necessidade de transmitir aos jovens a necessidade de não romper com um passado diferente, mas que traz no seio sementes de perenidade». Um passado a ser interpretado conscientemente, «munidos da verdade que a investigação científica postula».

Quem o poderia afirmar melhor, neste dealbar do novo milénio, mais de vinte e um anos passados?!...

Já agora, permita-se-me um rápido olhar por outro editorial, o ‘brinde de aniversário’ intitulado «Foi há dez anos...», timidamente prantado em página par (a número dois), como que a pedir licença para... falar. E aí se abre o véu:

«Todos os anos, nos primeiros dias de Agosto, passa a saudade à minha porta. Vem apressada, mal disfarçada nos carros atulhados de emigrantes. Passam nervosos, com plásticos a abanar no tejadilho, cheios de ilusões. Cansados de longa vigília, emergem de manhã cedo, envoltos na penumbra indefinida dos sonhos que acalentaram. E, avenida acima, lá vão, nautas e peregrinos dos novos tempos. É sempre assim, nestas manhãs cheias de sol».

E é então que se percebe que foi por isso, pelos que outras paragens demandavam em busca de um pão melhor, foi com ‘eles’ que o sonho de Brigantia se tornou realidade, como «elo de ligação entre os transmontanos dispersos». Não! Não se pensava em Trás- -os-Montes como «reserva museológica», não! Urgia, porém, «travar a erosão que nos despersonaliza e lutar pela sobrevivência cultural da nossa terra».

Um texto de 1991, cuja actualidade e clarividência nem é preciso sublinhar!

Foi, contudo, na minha qualidade de epigrafista que maior relacionamento tive com Belarmino Afonso. Por diligências suas me foi concedido o privilégio de, a 23 de Outubro desse mesmo ano de 1991, proferir, na Escola Superior de Educação de Bragança, com mui simpática apresentação sua, uma palestra subordinada ao título «O valor pedagógico da Epigrafia». E, claro, ‘obrigação’ cumprida, aí fomos nós à ‘devoção’, percorrendo as aldeias vizinhas, por tudo quanto era sítio onde estela romana estivesse...

Resolvemos dúvidas de leitura, trocámos demoradas impressões e terminámos no cemitério de Bragança. Passeámo-nos aí entre mármores e cruzes; admirámos com espanto placas brônzeas de gente famosa do século XIX, cuja pormenorizada memória inda ali se lobrigava, por detrás do verdete... E se o meu saudoso Amigo já, nessa altura, tinha plena consciência da importância das epígrafes, por mais singelas que pareçam, como ímpar manancial histórico, mais convencido e entusiasmado então ficou.

Na verdade, uma das tarefas a que apaixonadamente (ouso afirmá-lo) o Padre Belarmino Afonso se dedicou foi precisamente essa de lobrigar numa parede, por entre musgos e silvas, uma forma invulgar de pedra que o levava a pensar, de imediato, que letras havia de ter. Muitas estelas deu, por isso, a conhecer em notas, ainda que sucintas, que, de imediato, publicava na sua Brigantia; muitos monumentos epigrafados em risco de se perderem logrou fazer salvaguardar...

E sempre que tinha dúvidas, não hesitava:

«Em sequência do pedido que já lhe tinha feito, venho hoje concretizá-lo. Peço a sua ajuda para a leitura da estela funerária cuja fotografia anexo. Tentei fazer a leitura das letras. Estará correcta a interpretação? A pedra é de xisto, friável. Pode apanhar riscos que alteram a leitura».

E, depois de me dar a sua leitura, acrescentava:

«É curioso o desenho da rena ou veado, pela raridade ou até unicidade. Também me parece interessante e sugestivo o torques ou serpente em volta das rosáceas» (1991-02-18).

Foi, nesse âmbito, deveras interessante para mim, na ocasião, a ida à sede da Junta de Freguesia de Donai, onde se haviam ajuntado peças encontradas nos arredores e que, como se sabe, Armando Redentor acabaria, mais tarde, por estudar em conjunto. Duma dessas peças careci, um dia, de foto, já me não recordo bem porquê, mas creio que na sequência do pedido que me fora endereçado por um colega da Universidade de Valladolid.

Fê-la prontamente o Padre Belarmino, fazendo-a acompanhar destas linhas (sempre manuscritas!), que considero bem significativas da sua personalidade:

«O meu desmazelo foi um pouco além da minha vontade.

Se as fotos não são artísticas, ao menos, fornecem dados para a leitura. A imperfeição e sombras resultaram da má disposição, empilhadas umas sobre as outras, e ainda de uma sala interior onde se encontram.

Caso faça falta mais qualquer coisa ou seja necessário repetir fotografias, esteja à vontade. Prometo ser mais pontual» (1995-05-02).

Achei por bem terminar estas notas de mui singela homenagem, reproduzindo uma dessas fotografias, não só para se ver como, afinal, a qualidade é excelente, mas também para sublinhar, mais uma vez, quão importante foi terem-se preservado – amiúde por seu exclusivo intermédio – magníficos exemplares epigráficos do Nordeste transmontano.

Esta peça foi estudada por Armando Redentor (n.º 28, p. 81-83), mas fora o Padre Belarmino Afonso quem havia zelado pela sua salvaguarda, aquando da descoberta, ao abrir-se um poço na propriedade de Teresa Morais, em Donai, e quem de pronto a deu a conhecer.

Trata-se, na verdade, de um monumento excepcional, mormente pelos seus elementos decorativos: a elegante roda de seis raios «em relevo, envolvida por linha circular insculpida, a configurar torques com as extremidades voltadas para fora», para usarmos da descrição de Armando Redentor; a espécie de crescente ladeado por dois tridentes; o campo epigráfico escavado, rectangular e cercado por gracioso cordão; em baixo, quiçá arcos «degenerados», como sugere Armando Redentor, por ser essa (os arcos) uma iconografia habitualmente patente nas estelas do Nordeste. Enfim, uma riqueza decorativa fora do comum, para homenagear Aurélio Decumino, de 70 anos.

Dir-se-á que a gravação das letras contrasta, pelo seu ar cursivo, com a esbelteza do conjunto. Eu diria que não: não havia outra forma de gravar neste granito, onde apenas o ponteiro ou o estilete podem romper sem causar danos à superfície a gravar (daí que, por exemplo, se hajam evitado as barras horizontais); por outro lado, o ordinator somente teve o cuidado de verificar se cabiam todas as letras, mesmo que apertando o O da linha 3 e dando uma configuração ainda mais cursiva aos dois X finais... No conjunto, portanto, aprecia-se uma indesmentível elegância.

Já Armando Redentor teve oportunidade de tecer considerações acerca do contributo deste monumento para o panorama da onomástica romana do Nordeste e da dificuldade que, por essa via, se nos apresenta de, fugindo aos modelos urbanos (digamos assim), nos não possibilitar, sem dúvidas, a atribuição de uma cronologia. Claro que sempre podemos aplicar os critérios conhecidos e Armando Redentor acabou por o fazer: a ausência de praenomen e a adopção do gentilício Aurelius (nomen imperial frequente e de moda no século II e retomado por Severo Alexandre – [222-235]) sugerem-nos, de facto, o século III da nossa era.

Pugnara o Abade de Baçal por salvaguardar antigualhas, todas as antigualhas e, por via disso, exaltar um «espírito transmontano», de homem para lá do Marão, que, em prístinos tempos, já decerto dos demais se distinguiria pela personalidade e pela cultura.

Padre Belarmino Afonso eloquentemente lhe soube seguir, fiel, as pisadas. O Discípulo não desmereceu o Mestre!

José D´Encarnação
(Universidade de Coimbra)
in: Revista Brigantia

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