(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
Chamava-se Bruno. Era um rapaz com 11 anos, franzino, ágil e prestativo sobretudo com os adultos, já que os colegas o olhavam de soslaio. Cobriam-lhe “os ossos” roupas enxovalhadas, sempre em desacordo com o tempo ou com o tamanho. Todo o seu ar abandonado pedia colo e um banho de água quente que lhe aconchegasse a alma.
Frequentava pela primeira vez o 5º ano de escolaridade depois de um percurso desalinhado de escola em escola e uma retenção.
O assunto dos banhos e da roupa foi resolvido. Havia outros “Brunos” a precisarem de banho e roupa e, no ginásio, perto dos chuveiros, foram colocadas três grandes caixas com roupas e uma delas com calçado. Os alunos que assim entendessem tomavam banho para além dos dias em que tinham aulas de Educação Física e retiravam a roupa que mais lhe agradasse. Não se praticava “a caridadezinha” e ninguém tinha “pobres de estimação”. Havia tão só a responsabilidade de toda a comunidade educativa reabastecer esses caixotes.
Não foi difícil à Ana - professora de “Português” e diretora de turma - prestar atenção a este aluno. Desde o início do ano, chegava sempre atrasado à primeira aula da manhã, aparecia muitas vezes sem livros e sem outros materiais. Na sala de aula pouco ou nada participava. Isolava-se e ficava ensonado. No recreio a não aproximação aos companheiros era recíproca. Circulava junto da cantina à espera que a cozinheira lhe oferecesse um pão com manteiga. Ao almoço comia sofregamente e sozinho.
Era preocupante a postura do Bruno. Não incomodava ninguém mas alertava os mais sensíveis para refletirem sobre o seu “desapego”. Aproximava-se da Ana mas falava pouco, parecia temer que descobrissem o seu mundo.
Depois de muitos contactos com mãe e alguma ameaça da referência do caso à “CPCJ” conseguiu-se que esta fosse à escola. Apareceu com uma criança ao colo com cerca de 2 anos. Quando foi confrontada com as faltas do filho respondeu de forma displicente que estava a cumprir a sua obrigação pois mandava o seu filho para a escola, apesar de este aparecer em casa muito tarde à noite.
Referiu ainda que o filho fazia despesas sem a sua autorização, num talho perto de casa. As “chouriças” que aí comprava eram assadas numa fogueira que ele e outros “amigos” mais velhos faziam debaixo de uma ponte onde também se consumiam substâncias ilícitas. Esta revelação foi ainda mais preocupante. Tornou-se necessário confrontar mãe e filho. Bruno entrou no gabinete onde estava a mãe e esboçou um sorriso para a criança que estava ao colo.
Depois de a mãe repetir o que tinha dito, a reação foi tremenda com a troca de impropérios entre eles e o Bruno a verbalizar que a mãe também acompanhava “o grupo” durante todo o tempo que se mantinham acampados numa praia fluvial. Afinal, a mãe fazia parte do grupo que o filho frequentava.
A partir desse dia o Bruno abandonou a escola. Aparecia de vez em quando a rondar os recreios. Mais magro e mais andrajoso.
Os colegas ao avistá-lo, iam avisar a Ana e esta vinha ter com o miúdo, com uma atitude protetora. Levava-o até à cantina e, de forma discreta, alimentava-o. Foi assim que soube que a sua família tinha sido despejava por falta de pagamento da renda. Tinham-se mudado para outra freguesia. Foi também nestas visitas à escola que se entendeu que o Bruno esfregava as mãos e os dentes com folhas de eucalipto para disfarçar odores.
Foram reforçados os avisos feitos aos serviços sociais de proteção à criança. No relatório enviado pela escola foi colocado o número do telefone da diretora de turma, a pedido desta, para eventuais contactos e troca de informações.
O Bruno desistiu também das visitas furtivas à escola.
Decorreram dois anos e finalmente o telefone da Ana tocou. Era uma das técnicas que tinha sido contactada telefonicamente na altura do abandono escolar do aluno. Procuravam informações sobre o rapaz que agora teria 13 anos… A Ana já nem dava aulas nessa escola onde o caso tinha sido referenciado.
Coincidentemente as denúncias de maus tratos e negligência parental ecoavam nos media.
Texto original editado em Setembro de 2021
Estudou na Escola do Magistério Primário em Bragança, no Instituto António Aurélio da Costa Ferreira em Lisboa e na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação no Porto, onde reside.
Sempre focada no ensino e na aprendizagem de crianças com NEE (Necessidades Educativas Específicas) leccionou no CEE (Centro de Educação Especial em Bragança). Já no Porto integrou o Departamento de Educação Especial da DREN trabalhando numa perspetiva de “ escola para todos, com todos na escola). Deu aulas na ESE Jean Piaget e ESE Paula Frassinetti no Porto.
A escola, a educação e a qualidade destas realidades, são os mundos que me fazem gravitar. Acredito que, tal como afirmou Epicteto “ Só a educação liberta”. Os meus escritos procuram reflectir esta ideia filosófica.
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