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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

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COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 9 de maio de 2022

As coisas vulgares, que também possuem encanto

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

No quintal da casa onde nasci e vivi até aos dezoito anos havia por esta altura do ano, lírios e outras flores. O quadrilátero desenhado pela guia feita em cimento que fazia de caixilho e o delimitava de três lados, fora concebido para que o seu interior fosse reservado a horta e aí não se plantavam flores.
Nos meses em que as alfaces e o feijão verde estavam prontos a colher, as flores estavam confinadas aos vasos que ostentavam cravos vermelhos e brancos e a bordejar o rectângulo das leguminosas apresentavam-se magníficos os lírios. Ao fundo no espaço voltado para a Cortinha da Albininha Guerra havia uma árvore que dava flores de lilás de cor roxa levemente raiadas de branco.
O meu pai cuidava do quintal que sendo um retângulo quase perfeito quando a festa dos legumes e das flores acontecia e a necessidade da rega chegava imperativa eu e o meu irmão Marcelo tínhamos atribuída a tarefa de trazer água suficiente para regar a horta. Em casa não havia água corrente e era necessário ir buscá-la à fonte.
Num tempo mais afastado, digamos até aos meus dez anos havia apenas uma bica que se encontrava na Rua do Norte em frente à Taverna do João Francês. Posteriormente a Câmara colocou uma outra bica de torneira ao cimo da Caleja do Forte, junto à casa onde vivia o Tio Alberto Mirandela e que distava uns vinte metros da minha casa. Foi esta pequena mudança na distância da fonte em relação à nossa casa que ocasionou uma mudança radical na produção de couves e alfaces, tomates e até feijão-verde. 
Eu e o meu irmão Marcelo por sermos os caçulas estávamos incumbidos de apanharmos água suficiente para todo o consumo que a casa e o quintal exigiam para que tudo corresse como seria desejado.
Foi neste espaço de tempo em que eu frequentei a Escola da Estação e aprendi a estimar tudo o que a Natureza nos proporcionava quando a estação apropriada nos oferecia todo o necessário para refeições fantásticas que a minha mãe confecionava com amor e muita competência.
O friso dos lírios e os vasos dos cravos, tenho-os na minha memória com se hoje os olhasse, com o enlevo que aquele tempo mágico mos apresentava. O lilás continua a ser um símbolo de beleza natural que me enfeitiçava e que logo que a Páscoa se anunciava surgia quase sem alarde e depois se tornava em qualquer coisa de maravilhoso que colocado no lado oposto à parede que sustinha o talude e onde a minha mãe colocava as cascas de laranja para o arroz doce que como uma missão ela confecionava para festejar o nosso Aniversário, eu sentia o encanto das cores e volumes das plantas, flores e uma miríade de objetos que ia de sacholas "guinchas" “engaços" e regadores. Havia também tudo o que eu e o meu irmão colecionávamos, como berlindes, esferas e "bulharacos" que nos serviam para ao fim da tarde jogarmos com a garotada nossa contemporânea até que a noite chegava e o "Misto" passava ronceiramente em direção à Moagem Mariano, Celeiro do Trigo e finalmente encostar no cais e o sinal verde que o Tio Correia tinha por missão ligar para dar sinal de passagem livre, mudava para vermelho e a linha ficava interdita e os cancelos fechavam-se até que na manhã seguinte, bem cedinho, fossem de novo abertos para deixarem passar a automotora que transportava a gente até ao Tua e aí mudavam para a via larga e seguiam em direção ao Porto.
Também na Estação do Caminho-de-ferro havia imensas flores. O Tio Correia e a Senhora Alda que moravam dentro da Estação e a família Castro que era a família do Chefe da Estação também caprichavam e tinham sempre flores que davam um ar festivo aquele espaço que surgia logo à saída de casa para lá das Nogueiras e que sobrepondo-se ao emaranhado das vias que suportavam as manobras se confundiam com o terreno que delimitavam e onde se fazia o embarque dos passageiros e o Senhor Castro comandava.
O cais não tinha flores mas a azáfama das gentes não impedia de olharem para o lado oposto, o das moradias e deliciarem-se com o jardim que ali mantinha uma certa reserva de calma e beleza.
Nos terrenos onde construíram a Escola Industrial e o Liceu e onde nesse tempo estava o Celeiro do Trigo as flores surgiam espontâneas e havia papoilas e malmequeres e no Verão ouviam-se os grilos e as cigarras, havia pirilampos e passarada que no tempo em que a Moagem funcionava eram aos bandos que cobriam os telhados da parte superior do declive cortado pela linha férrea. Este preâmbulo que abre alguns textos que pretendo escrever nos próximos tempos é uma das minhas principais memórias que eu mantenho no fundo do baú e que constituem a minha grande riqueza, pois representam sentimentos que ainda hoje me comovem e me recordam a minha mãe, pai, irmãos e irmãs, bem assim como todas as vizinhas e vizinhos que foram como eu criados nesse pedaço da nossa cidade, que sucumbiu com a construção da Torralta e onde hoje colocaram umas escadas rolantes que estão fora do contexto e que estão ladeadas por um espaço sem flores e quase já sem gente que as cuide e as faça serem prestáveis e educativas, como foram os lírios, os cravos e os lilases que a minha gente plantou e a Natureza nos ofereceu.
O ocaso aproxima-se mas a luz que recebemos e nos fez gente continua a vir do céu e ainda a podemos pressentir nas madrugadas gloriosas a que já não assistimos, porque já não vamos a Vale de Conde aos pássaros nem para o Sabor mergulhar, lavar a roupa ou aos barbos e aos escalos. 



Bragança 05/05/2022
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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