Para terminar, uma última e tocante página trasmontana sobre a mais humilde das nossas avezinhas — o pisco — pelo mais humilde dos nossos sábios — o Abade de Baçal.
O Abade de Baçal… Tardará muito tempo a nascer, se é que nasce — com vénia de Federico Garcia Lorca —, um trasmontano da envergadura de Francisco Manuel Alves, mais conhecido ‘urbi et orbi’ como Abade de Baçal. Tenho à minha frente uma fotografia sua, dos anos muito maduros, talvez já próximo dos oitenta. É um rosto luminoso, que inculca sabedoria, lucidez, bonomia e modéstia, sem esquecer o toque de rusticidade de que o Abade fazia gala.Foi o trabalhador mais incansável que as fragas trasmontanas já deram, em vários campos do saber. Basta ver o título completo das suas famosas Memórias, a fazer lembrar aqueles títulos quilométricos dos tratados barrocos: “Memórias arqueológico-históricas do distrito de Bragança ou Repositório amplo de notícias corográficas, hidro-orográficas, geológicas, mineralógicas, hidrológicas, biobibliográficas, heráldicas, etimológicas, industriais e estatísticas interessantes tanto à história profana como eclesiástica do distrito de Bragança”. Salta à vista a omissão da etnografia e da genealogia (esta talvez subentendida na heráldica), partes importantes, ambas, do seu labor.
Passou anos a copiar velhos manuscritos do arquivo de Simancas, em Espanha, e dos arquivos municipais bragançanos; leu e meditou aturadamente os tratadistas; percorreu dia e noite todo o distrito à cata de vestígios de outras eras — e, nos intervalos, conversava com as gentes do povo e ia levantando uma espécie de vade-mécum da etnografia trasmontana, que outros depois dele completaram e aperfeiçoaram. A nós, a quem os jipes levam até lugares outrora só acessíveis ‘pedibus calcantibus’, não nos passa pela cabeça o cabedal de espírito de sacrifício com que este homem veio ao mundo.
Um exemplo, que ele conta algures: «Em 1924 quiseram espancar-me e aos meus companheiros [...], em Marzagão, quando procurava elementos para um estudo sobre Carrazeda de Ansiães e não achávamos quem por dinheiro nos quisesse recolher em casa e vender géneros alimentícios. E, fatigadíssimos, após um dia de jornada a pé pelo concelho, mortos de fome, encharcados de água, escuro como breu, sem saber caminho nem carreira, nem ver palmo de terra, tivemos de recolher a Carrazeda de Ansiães, cinco quilómetros distante.»
O Abade de Baçal foi, já se disse acima, de uma modéstia quase comovedora. A sua riqueza era toda interior, e não cuidava de se ataviar por fora. É ainda ele que conta: «Quando me apresentei ao Amaral, secretário da Câmara de Alfândega da Fé, com o meu velho casaco já muito delido e coberto do pó da viagem e lhe disse que queria pedir-lhe um favor, meteu a mão ao bolso e só deixou cair nele os seis vinténs que ia dar-me de esmola [...] quando acrescentei que o pedido era para me facultar o estudo dos pergaminhos do arquivo a seu cargo.»
Bem conhecido é também o episódio da indumentária com que se apresentou em Lisboa para receber a comenda da Ordem Militar de São Tiago da Espada (o ‘chocalho’, disse ele mais tarde) — indumentária de tal ordem modesta e porventura surrada que o porteiro não o deixou entrar.
Foi o mais portentoso coleccionador de elementos e apontamentos sobre o distrito de Bragança. Que não tinha poder de síntese e de sistematização, dizem; que as suas Memórias são uma mala de porão cheia a abarrotar dos materiais mais desencontrados; que coligia muito mas nem sempre interpretava bem. Tudo isto será em parte verdade. Mas ainda assim está por aparecer outra obra mais rica, mais documentada e que com tanta luz ilumine a nossa alma bragançana.
Nem sempre, todavia, isso é reconhecido, e por vezes a falta de reconhecimento vem da parte de quem menos se esperaria.
De Miguel Torga, por exemplo. Miguel Torga é certamente um escritor de excepção. Cheio de talento e cheio de ideias, faz de cada volume do seu Diário um modelo de escrita e de reflexão. O Diário é com efeito um bom exemplo desta competência linguística, literária e reflexiva: as suas sínteses, sobretudo as que se referem a Portugal e muito especialmente ao povo rural trasmontano, são geralmente admiráveis. Depois de dito aquilo, fica-se com a sensação de que não vale a pena andar a gente para aqui a fritar os miolos para dizer mais nada.
Mas ‘aliquando bonus Homerus dormitat’. É como se a atenta vigilância a que Torga submete a sua produção inexplicavelmente afrouxasse às vezes. Ou então como se as sínteses se lhe apresentassem ao espírito apressadas ou insuficientemente amadurecidas, e, por um certo pendor torguiano ‘pour épater le bourgeois’, o escritor não resistisse a estampá-las tal e qual. O resultado é que por vezes comete injustiças como a que em seguida se refere.
No quarto volume do Diário, com data de 14 de Novembro de 1947, regista:
«Morreu ontem o abade de Baçal, um homem pré-histórico e sábio. [...] Patego e sem génio, trouxe para a reflexão dos problemas da cultura um bom senso campónio, terroso, que tem a utilidade doméstica do Borda d’Água. E a sua obra é uma espécie de ‘governo do ano’ do distrito de Bragança. As luas, quando se rega e semeia, a época das colheitas e as rezas com que é preciso ajudar a semente. Parece pouco, mas é assim que se começa.
Como bípede e transmontano, gostava de lhe ter dito duas palavras sobre a sepultura. Nada de particular. Testemunhar-lhe apenas o meu respeito, não pela obra, que é rudimentar, como digo, nem pela vida, que foi de primário, como se sabe. Gostava de o saudar pela raridade da sua casta. »
Menos severo, bem pelo contrário, na sua apreciação é o outro grande escritor duriense, João de Araújo Correia, que, nos “Passos perdido”, prefere salientar a lhaneza e generosidade — qualidades estimáveis ambas — do sábio bragançano:
«Convidar o Abade, para qualquer maçada generosa, era abanar um castanheiro e encher imediatamente o bolso de castanhas. [...] Era a montanha que se desfaz em precioso minério. [...] Homem assim, só em terra assim pode existir. Bate-se-lhe à porta, entre quem é, sente-se e beba, diga o que quer.»
Torga, do abade Francisco Manuel Alves, deve ter lido meia dúzia de páginas ao desenfado de algum dos volumes das Memórias, tendo-lhe porventura calhado das mais áridas ou menos interessantes, ajuizando por elas o teor do resto da obra. Porque não é possível reduzir às luas e às rezas o trabalho vastíssimo e variadíssimo do Abade de Baçal. Não se pode passar por cima das páginas de investigação histórica, genealógica, arqueológica, etc., etc. Tão-pouco se pode ignorar que o Abade não foi apenas um forrageador de informações — embora seja de facto isso acima de tudo —, mas também um estudioso lido nos melhores tratadistas do seu tempo, sem medo nem pejo de avançar interpretações e hipóteses de sua lavra. Nem, finalmente, se pode desconhecer que, quando a veia lhe puxava, o Abade foi escritor de mérito.
Os adjectivos patego, campónio, terroso, rudimentar, primário — que aliás tenho a certeza de que o Abade encaixaria dizendo: com muito gosto — são por isso redutores da sua envergadura.
Uma coisa, no entanto, está correcta no texto de Torga: a raridade da casta de Francisco Manuel Alves. Infelizmente o Abade é de uma casta rara. Tivéssemos nós muitos daquela casta, e outro galo cantaria a Trás-os-Montes. Assim...
Disse agora mesmo que o Abade de Baçal foi, além do mais, escritor de mérito. Pedem-me provas? Como é de aves que se trata aqui, respondo com um texto de antologia, colhido no volume XI das Memórias, em que andam lado a lado a veia literária e o sentimento de afectuoso respeito pela natureza, duas mais-valias da sua obra. É sobre um pisco — talvez a mais modesta das nossas avezinhas.
«Vem passar os meses de Novembro a Fevereiro em terras bragançanas uma avezinha migratória […]. Regula por metade do corpo do pardal, é de cor cinzenta, mas vermelha no peito.
Mete-se pelas casas à cata de mantimento, bastando-lhe pequena forgalha de pão para largo jantar. Eu ponho na janela do meu quarto uma lata das que serviam para cinco sardinhas de conserva, cheia de migalhas de pão, e, apesar de três ou quatro piscos virem ali almoçar, jantar e merendar, só preciso renová-la cada semana.
O pisco caracteriza-se por um pio triste, sem sonoridade, que parece dizer ‘tziu’ e pelo seguinte gesto: depois de farto voa para cima de uma pedra pouco elevada, ergue a cabecita, fita o firmamento com ares senhoris, eriça as plumas como os caninos os pêlos do lombo, quando querem acometer, encolhe-se como os gatos para melhor formarem o salto, distende-se repentinamente e esboça o gesto de se atirar para o espaço, mas fica-se, nem sequer levanta os pés, recai na momice típica e contenta-se com soltar o seu ‘ziu’, ainda mais tristonho por lhe ter suprimido o ‘t’!
[…] É notável a fina intuição do sentimento de afecto que os animais têm e o modo como a exteriorizam.
Depois de almoço, e antes do lusco-fusco, passo duas horas na cortinha sachando, mondando, semeando, regando, hortando, levantando pedras, tapando boqueiros, limpando árvores, podando videiras, rachando madeiras para a lareira, preparando aprestos agrícolas, antes de entrar na labuta literário-paroquial.
Logo um dos piscos, comensais da minha janela, vem pousar ao pé de mim, e quando não vem, por andar entre as oliveiras ou na mata dos castanheiros à caça das pequenas larvas, seu manjar predilecto, basta-me soltar o grito: pisquinho, pisquinho!, para surgir imediatamente.
– Como passaste a noite? – digo-lhe. – Tiveste muito frio? Tens fome?
E a terna avezinha, envolvendo-me naquele seu olhar penetrante, aveludado, fulgente como esmaltado em fina pérola a rebrilhar na limpidez aquática, agita as asitas, à semelhança do cão quando faz festas com o rabo, esboça aquele tão seu gesto típico de se lançar no espaço e solta o grítico ‘tziu, tziu’, como agradecimento dos meus desvelos. Esmigalho-lhe então umas forfalhas de pão que o pisco vem comer a meus pés, mas não se deixa apanhar.
Ele lá sabe que o homem, embora estime os animais, termina sempre por abandoná-los quando os não come. ‘Bueno és Dios, pero mata los hombres’, diz o rifão espanhol.
Quando não tem fome, apanha o cibato e vai debicá-lo para cima de uma pedra, ali perto, deixando-o cair muitas vezes e reapanhando-o, para me mostrar que o não despreza, embora o não precise.
– Pisquinho, meu pisquinho, pisquinho, meu amor, a nossa convivência está por um fio! Brevemente marcharás para o teu habitat estival e eu para o regelo dos oitenta janeiros; se na volta, em Novembro, me não encontrares aqui na cortinha, procura-me além no cemitério do adro da igreja; leva à negra algidez do meu sepulcro o brilho do teu olhar, o calor da tua amizade grata, devora as larvas nefastas ao florir das roseiras e malvas que o envolvem, que eu pedirei ao Altíssimo a graça de inspirar em alma bondosa a caridade de esmolar-te umas migalhas de pão e de enterrar-te, se aqui finares, no meu coval, a fim de continuares a tradição do lebreu do Padre José Joaquim Fernandes, falecido em Baçal em 1891, e a do podengo de Francisco Vicente, falecido no decénio anterior, que se deixaram morrer de fome e de inanição sobre o sepulcro de seus donos, na esperança de os ver de lá sair a poder dos uivos que soltavam. Comovente acto de terna dedicação ainda hoje lembrado com assombro!
Não te esqueças, pisquinho. É este o selo final da nossa amizade e, para então, fica já agora aqui o ‘longum vale, vale’, do mavioso Virgílio.»
E de ornitologia é tudo. Bye-bye!
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