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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 19 de julho de 2022

SHAKESPEARE E VIEIRA DE MÃOS DADAS

 Todos os homens (diz-se correntemente — embora nem sempre se actue em conformidade...) nascem livres e iguais em dignidade e direitos. É com este princípio salutar que abre a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Salutar e bonito. Então não é bonito acreditar que a cor da minha pele é apenas um acidente, e que a minha essência não é na cor da pele que reside, mas sim na própria condição de ‘homem de mulher nascido’? 
 Mais bonito do que acreditar nisso é, todavia, levá-lo à prática. E aí o homem tem falhado estrondosa e vergonhosamente. Porque uma coisa são as declarações solenes de princípios, outra coisa é a realidade sórdida das atitudes. O homem é forte no estabelecimento de princípios, mas desgraçadamente frágil quando se trata de os aplicar: qualquer interesse comezinho o faz recuar para a barbárie da discriminação, se deixa crescer no seu coração a crença de que há raças superiores e raças inferiores. Não foram, por exemplo, preconceitos de ordem racial, de envolta com reivindicações territoriais mais ou menos arbitrárias, que levaram à Segunda Guerra Mundial? Não morreram em nome desses preconceitos vinte milhões de pessoas?
 Sempre houve e continua a haver segregações, perseguições, genocídios e racismo, por mais capciosos que sejam os disfarces sob que se ocultam. A escravatura, a inquisição, as ditaduras, o apartheid, têm sido outros tantos modos de discriminação, mais ou menos violentos, mais ou menos insultuosos da dignidade original do homem. 
 Ocorrem-me estas considerações ao reparar, por acaso, na semelhança entre dois excertos da grande literatura mundial — um do Padre António Vieira, outro de William Shakespeare. O primeiro excerto fala da violência intolerável de que eram vítimas os escravos no Brasil, o segundo é um queixume de Shylock, judeu argentário e protagonista do “Mercador de Veneza”, contra a não menor violência da discriminação de que era alvo na cidade dos doges. São, no fundo, dois gritos de alma, magoados e comoventes como raros passos de intervenção social podem ser. 
 Nada melhor do que lê-los: primeiro o excerto dos “Sermões”, depois o do “Merchant of Venice” seguido de tradução minha, por cuja fraca qualidade peço desde já desculpa à memória de Shakespeare.
 Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respiram o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? Não os aquenta o mesmo Sol? Que estrela é logo aquela que os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel?
 Hath not a Jew eyes? hath not a Jew hands, organs, dimensions, senses, affections, passions? fed with the same food, hurt with the same weapons, subject to the same diseases, healed by the same means, warmed and cooled by the same winter and summer, as a Christian is? If you prick us, do we not bleed? if you tickle us, do we not laugh? if you poison us, do we not die? 
 (O judeu não tem olhos? O judeu não tem mãos, órgãos, proporções, sentidos, afectos, paixões? Não é sustentado pelo mesmo alimento, ferido pelas mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos mesmos remédios, aquecido e enregelado pelo mesmo inverno e estio, tal como o cristão? Se nos espicaçam, não sangramos? Se nos fazem cócegas, não rimos? Se nos envenenam, não morremos?)
 São dois textos do séc. XVII, separados por apenas algumas décadas. Não quero crer que Vieira se tivesse inspirado em Shakespeare, que provavelmente nunca leu. Mas “les beaux esprits toujours se rencontrent”. O jesuíta português e o dramaturgo de Stratford-upon-Avon partilhavam decerto a aversão ao racismo e souberam corajosamente dar voz, contra o sentimento geral da época, a essa aversão. Ou seja: o escritor bem erguido à proa da barca do progresso moral. É o seu lugar. Os que se têm sentado obstinadamente à ré, fazendo contravapor ao avanço da barca, esses não sei se merecerão verdadeiramente o nome de escritores.

(Repórter do Marão, 30 de Outubro de 1992)

A. M. Pires Cabral

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