sexta-feira, 11 de novembro de 2022

A Arte Simples de Afiar a Vida

Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)

Entrei na pastelaria do mercado municipal, desvio obrigatório em cada manhã, no trajeto para o trabalho. Cuidado todo posto na descida do degrauzinho impertinente, onde já escorregara vezes sem conta, como se ali estivesse de propósito para me deixar sem vontade de continuar caminho.

Ao canto do balcão, o Baunilha, bicho amarelo de pelo sedoso, a dormitar sonhos de gato. Deduzia eu, pelo som do ronronar consolado do preguiçoso.
Mais ao fundo, numa mesa afastada, como não poderia deixar de ser, o Alfredo Couraça, do talho, de dedo em riste, sentado em frente à D. Júlia, a florista.
— Note o que lhe digo, menina Júlia, note o que lhe digo…
Mulher cheia de graça. Só ela para lhe ouvir com paciência de santa, o debitar das frustrações de uma vida inteira por resolver.
Às vezes, naqueles momentos mais lúcidos de filosofias existenciais, chegava a pensar que o Alfredo poderia ter sido meu irmão.
— Bom dia, Sr. Óscar! Bem-disposto? Sai já o cafezinho…
E ali estava, à minha frente, como sempre, o Natalino. Todo simpatia logo pelo anunciar da manhã e uma genica interior que lhe fazia o corpo balouçar, como se fosse um cata-vento, em horas de borrasca, a dar vazão à clientela matinal costumeira.
— Bem-disposto? Até estava, pois estava…
Senti a rabugice habitual a ceifar-me a língua. Raios. Será que um homem não tem direito a acordar de bom humor, ali como o Natalino?
Ver o dia raiar com o maldito nevoeiro, todo estropiado da cervical e dores nos joanetes. Não há disposição que perdure.
Natalino ignorou-me e prosseguiu, a empurrar a chávena na minha direção. O sorriso sempre aberto, como se fossem braços esticados, prontos para me consolar.
— Ora então, conte lá coisas…
Não consegui mentir. Refilei:
— Olhe, já perdi o dia. Encontrei-me acolá com um colega que não via há anos e ele, desconcertado, atira-me que me julgava já aposentado.
Respondeu-me com um levantar de sobrolho. Compreendi-lhe o pensamento.
— Uma machadada no meu ânimo, não lhe parece? Julgam-me assim tão velho das canetas? – Inquiri, a antecipar a sua compreensão para as minhas preocupações, fruto do espelho que, em casa, me encarava o bigode e os cabelos brancos. Já nem lhe falava do corpo que, perdida a agilidade, andava agora ao sabor de uma ferrugem tão indesejada.
— E ora então, que tem isso? Não se deixe manchar pelo tempo, meu amigo. — Amenizou o Natalino.
Pudera… queria ver quando chegasse à minha idade. Por certo, o riso iria descoser-se-lhe do rosto.
Sobre o balcão, o adoçar da bebida correu-me mal.
— Bolas, pá!... — Reagi com um salto tosco, a sacudir o casaco — Se um tipo não deita logo o pacote todo do açúcar na chávena, está bem tramado!
O Baunilha levantou o focinho, olhos quase fechados, para rapidamente voltar à indolência manhosa.
Lá fora, com o nevoeiro a dar tréguas e as nuvens de cara posta a prometerem instantes de desalento, o esquecido amola-tesouras passou a assobiar com a sua gaita-de-beiços e a tranquitana montada na velha burra que chamava de bicicleta.
A arte simples de afiar a vida e um modo inabalável de olhar para o dia que se segue…
Esvaída a meninice, seria esta a forma mais honesta de viver, aquilo que me faltava?
Sorrisos, com alegrias que poucos nos conseguem adivinhar.


Paula Freire
- Psicologia de formação, fotografia e arte de coração. Com o pensamento no papel, segue as palavras de Alberto Caeiro, 'a espantosa realidade das coisas é a minha descoberta de todos os dias'.

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