Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
Era um burro, o Carlitos.
Não atinava com as letras e os números faziam-lhe caretas e brincavam-lhe com o desejo de ter boa cabeça. Era assim desde a escola primária.
Primeiro, a família depositou a esperança. Depois, veio a desesperança. Não havia porque insistir e a vida trazia mais o que pensar, do que as veleidades do menino que já nasceu torto, valha-o Deus.
Era um burro, o Carlitos.
E no fundo da sala deitava a atenção aos cadernos dos outros para não falhar as respostas. As respostas das fichas, porque aos porquês do pensamento ralo que todos lhe apontavam, não havia quem lhe soubesse responder.
Deixou de acreditar que valia a pena perguntar. Passou a crer nas razões que todos desconheciam. Parecia ainda mais burro.
O Carlitos e o lugar de sobras que lhe calhava nos grupos de trabalho, enquanto os colegas discutiam uma língua distante que ele não entendia.
O Carlitos e a nenhuma vontade de agarrar os trabalhos de casa pelos punhos e sacudi-los até que chovessem resultados.
O Carlitos e as tentativas frustradas de chamar a atenção com os números dos pais. Os outros números, aqueles que muitos acreditam fazer a diferença na superioridade dos homens. Números tão altos que ele tinha motivos para não saber nem precisar de contar.
Além do mais, havia o Zeca. Ah! O Zeca! Pois isso é que era. O Zeca sim, esperto como um alho. Outra sorte lhe coube na família. O que não sabia, fingia. Queixumes e queixinhas, ser o mais novo dava-lhe honras com direito a pedestal. Se havia azar, a culpa era do Carlitos. Afinal, era burro.
O Zeca, estilo gabarola e de muita letra, a sacudir os braços e os sorrisos na vaidade dos seus poucos anos. O Zeca, no palco das festas, a papar os prémios todos da escola. O Zeca e os aplausos da mãe, os aplausos do pai, do avô, da avó, do tio, da tia, dos primos, do outro pai, da outra mãe, dos quase irmãos; a plateia era grande. O Zeca e as vitórias de quem tudo sabe e tudo consegue.
O Carlitos e o desinteresse de todos. O Carlitos e o silêncio por dentro que não preocupava a ninguém.
Para desapertar o coração, encontrou solução. Mãos nos bolsos, pés na bola e a cabeça no ar, à espera que o futuro lhe ditasse o caminho. Soou-lhe essa a melhor, a única opção.
O Carlitos tão pequenino, enquanto os adultos de casa iam ficando cada vez maiores. Em matéria e orgulho. Orgulho da carteira cheia que tudo salva, orgulho do Zeca.
As vergonhas escondidas e os negócios de vento em popa.
E pelas obras se vê como Deus mostra a sua benevolência a quem dá de comer a tanto pobre, pensavam. Só os invejosos nunca lhes compreenderão as lutas e os esforços de um trabalho feito com alma e à conta de muito madrugar. Os empregos que oferecem, o pão que põem na mesa dos que lhes vêm bater à porta à procura de um lugar para poderem alimentar os seus.
Com o dispêndio de tanta caridade oferecida aos outros, não é a eles que lhes cabe a obrigação se a escola não presta para ensinar o Carlitos a ser homem. Pela humanidade já fazem muito. E pela sua carteira também, que o Senhor é benévolo para com os que praticam o bem.
E o Carlitos cresceu. O Zeca também.
Carlitos, o burro, que decidiu pintar para afogar sonhos sem pouso.
No dia em que, numa aula de artes, desenhou um círculo preto numa folha branca e escutou o professor, irónico, dizer-lhe que fizesse o favor de usar as tintas porque elas preenchem buracos fundos, Carlitos percebeu que as cores podem tapar o escuro que mora dentro de cada forma.
Quis, então, dar préstimo às mãos, já que a cabeça não parecia ser o melhor lápis de que dispunha. E com elas começou a pintar. De azul, verde, amarelo, vermelho… fazia-as deslizar sobre os papéis, sobre as telas, sobre tudo o que não tivesse vida. Sentia-lhes a textura e o cheiro a comporem o vazio que foi ficando cada vez mais pequeno.
Enquanto o Carlitos foi ficando cada vez maior. Uma altura, um senhor engravatado aplaudiu-o. No mês seguinte, novas ovações de outros senhores engravatados a caírem sobre as suas imagens catárticas, na galeria onde as expôs.
No ano seguinte, saltou o mar com elas nas mãos. Lá fora, do outro lado do oceano, também haviam senhores engravatados que se reviam em precipícios preenchidos por inspirações coloridas.
Alguns anos depois, quando regressou, soube que lhe choraram a ausência.
Os avós adoeceram novos. O pai sempre tivera outros rumos. E a mãe não aguentara o tamanho do pesado fardo da caridade, pouco mais habituada que estava senão a usufruir das divinas recompensas, perdida e achada entre luxos e publicidade fotográfica, de riso bem composto, como garantia ao mundo, de próspero sucesso e afortunada felicidade.
Zeca, o inteligente. Só ele podia salvar o negócio familiar que, em tempos, conhecera melhor fortuna. Mas o Zeca… Ai o Zeca! O Zeca que era esperto como um alho, quis confirmar que filho de peixe sabe nadar.
Entre papelada burocrática e diplomacia telefónica, de ideias criativas, só a imaginação a fugir-lhe, célere, para os arrebiques com que pudesse conquistar os folguedos, os amigos e os amores. Cruel fatalidade para um empreendimento construído com bravura no meio de tantas dores de cotovelo e invídias alheias.
Desamparadas pelos algozes do inesperado, parece que as ovelhas brancas do rebanho se haviam tresmalhado ainda mais.
São agora as pinturas e os louvores do Carlitos que as acodem num gesto de misericórdia.
Era um burro, o Carlitos.
Não atinava com as letras e os números faziam-lhe caretas e brincavam-lhe com o desejo de ter boa cabeça. Era assim desde a escola primária.
Primeiro, a família depositou a esperança. Depois, veio a desesperança. Não havia porque insistir e a vida trazia mais o que pensar, do que as veleidades do menino que já nasceu torto, valha-o Deus.
Era um burro, o Carlitos.
E no fundo da sala deitava a atenção aos cadernos dos outros para não falhar as respostas. As respostas das fichas, porque aos porquês do pensamento ralo que todos lhe apontavam, não havia quem lhe soubesse responder.
Deixou de acreditar que valia a pena perguntar. Passou a crer nas razões que todos desconheciam. Parecia ainda mais burro.
O Carlitos e o lugar de sobras que lhe calhava nos grupos de trabalho, enquanto os colegas discutiam uma língua distante que ele não entendia.
O Carlitos e a nenhuma vontade de agarrar os trabalhos de casa pelos punhos e sacudi-los até que chovessem resultados.
O Carlitos e as tentativas frustradas de chamar a atenção com os números dos pais. Os outros números, aqueles que muitos acreditam fazer a diferença na superioridade dos homens. Números tão altos que ele tinha motivos para não saber nem precisar de contar.
Além do mais, havia o Zeca. Ah! O Zeca! Pois isso é que era. O Zeca sim, esperto como um alho. Outra sorte lhe coube na família. O que não sabia, fingia. Queixumes e queixinhas, ser o mais novo dava-lhe honras com direito a pedestal. Se havia azar, a culpa era do Carlitos. Afinal, era burro.
O Zeca, estilo gabarola e de muita letra, a sacudir os braços e os sorrisos na vaidade dos seus poucos anos. O Zeca, no palco das festas, a papar os prémios todos da escola. O Zeca e os aplausos da mãe, os aplausos do pai, do avô, da avó, do tio, da tia, dos primos, do outro pai, da outra mãe, dos quase irmãos; a plateia era grande. O Zeca e as vitórias de quem tudo sabe e tudo consegue.
O Carlitos e o desinteresse de todos. O Carlitos e o silêncio por dentro que não preocupava a ninguém.
Para desapertar o coração, encontrou solução. Mãos nos bolsos, pés na bola e a cabeça no ar, à espera que o futuro lhe ditasse o caminho. Soou-lhe essa a melhor, a única opção.
O Carlitos tão pequenino, enquanto os adultos de casa iam ficando cada vez maiores. Em matéria e orgulho. Orgulho da carteira cheia que tudo salva, orgulho do Zeca.
As vergonhas escondidas e os negócios de vento em popa.
E pelas obras se vê como Deus mostra a sua benevolência a quem dá de comer a tanto pobre, pensavam. Só os invejosos nunca lhes compreenderão as lutas e os esforços de um trabalho feito com alma e à conta de muito madrugar. Os empregos que oferecem, o pão que põem na mesa dos que lhes vêm bater à porta à procura de um lugar para poderem alimentar os seus.
Com o dispêndio de tanta caridade oferecida aos outros, não é a eles que lhes cabe a obrigação se a escola não presta para ensinar o Carlitos a ser homem. Pela humanidade já fazem muito. E pela sua carteira também, que o Senhor é benévolo para com os que praticam o bem.
E o Carlitos cresceu. O Zeca também.
Carlitos, o burro, que decidiu pintar para afogar sonhos sem pouso.
No dia em que, numa aula de artes, desenhou um círculo preto numa folha branca e escutou o professor, irónico, dizer-lhe que fizesse o favor de usar as tintas porque elas preenchem buracos fundos, Carlitos percebeu que as cores podem tapar o escuro que mora dentro de cada forma.
Quis, então, dar préstimo às mãos, já que a cabeça não parecia ser o melhor lápis de que dispunha. E com elas começou a pintar. De azul, verde, amarelo, vermelho… fazia-as deslizar sobre os papéis, sobre as telas, sobre tudo o que não tivesse vida. Sentia-lhes a textura e o cheiro a comporem o vazio que foi ficando cada vez mais pequeno.
Enquanto o Carlitos foi ficando cada vez maior. Uma altura, um senhor engravatado aplaudiu-o. No mês seguinte, novas ovações de outros senhores engravatados a caírem sobre as suas imagens catárticas, na galeria onde as expôs.
No ano seguinte, saltou o mar com elas nas mãos. Lá fora, do outro lado do oceano, também haviam senhores engravatados que se reviam em precipícios preenchidos por inspirações coloridas.
Alguns anos depois, quando regressou, soube que lhe choraram a ausência.
Os avós adoeceram novos. O pai sempre tivera outros rumos. E a mãe não aguentara o tamanho do pesado fardo da caridade, pouco mais habituada que estava senão a usufruir das divinas recompensas, perdida e achada entre luxos e publicidade fotográfica, de riso bem composto, como garantia ao mundo, de próspero sucesso e afortunada felicidade.
Zeca, o inteligente. Só ele podia salvar o negócio familiar que, em tempos, conhecera melhor fortuna. Mas o Zeca… Ai o Zeca! O Zeca que era esperto como um alho, quis confirmar que filho de peixe sabe nadar.
Entre papelada burocrática e diplomacia telefónica, de ideias criativas, só a imaginação a fugir-lhe, célere, para os arrebiques com que pudesse conquistar os folguedos, os amigos e os amores. Cruel fatalidade para um empreendimento construído com bravura no meio de tantas dores de cotovelo e invídias alheias.
Desamparadas pelos algozes do inesperado, parece que as ovelhas brancas do rebanho se haviam tresmalhado ainda mais.
São agora as pinturas e os louvores do Carlitos que as acodem num gesto de misericórdia.
Era um burro, o Carlitos.
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