Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Foi ao anoitecer que dos Santos saiu decididamente de casa e foi, sorrateiramente, a casa do Gouveia a quem, por ser magrinho, chamavam de “ Rilha – Fóiis “. Gouveia era um homem fechado e avarento, vivendo apenas com o intuito de conseguir mais fortuna: emprestava dinheiro a juros altíssimos. Era um agiota sem escrúpulos. Dizia-se, até, que passava fome só para ter mais umas notas na enxerga.
Dos Santos aproveitou a hora em que toda a aldeia ceava para evitar ser visto e, talvez, por ser o homem mais cauteloso e mais desconfiado do mundo. Ao sair de casa, sua mulher Maria, lançou-lhe um olhar misto de compreensão e de socorro, como se adivinhasse o objectivo fatal e definitivo daquela saída e começou a chorar para espanto dos seus três filhos, que esperavam de olhitos arregalados e de barriga vazia, pelos feijões com couves e pela meia sardinha que assava nas brasas da lareira, num lume moribundo de vides.
- Poqué qui tá a tchuiá , Mãe?! O Pai foi imóia? – perguntou o mais pequenito, de cinco anos.
- Não, meu rico filho – acalmou-o a Mãe, passando-lhe a mão pelo cabelo, que ela própria tinha cortado com uma tesoura.
Maria virou a ponta do avental e assoou o nariz. Pediu ao filho mais velho que “ assoprasse “ ao lume e atiçou um pouco a torcida da candeia. Os três irmãos entreolharam-se com o olhar melancólico e interrogativo que só as crianças sabem ter, e o rosto grave, como se pressentissem que algo de mal lhes iria acontecer. O mais velhito soprou ao lume e foi chorar para o balcão, porque era o único que sabia do que se passava.
Dos Santos deu uma volta pelos campos para evitar os cães da “ Casa Grande “. Já perto da casa do “ Rilha – Fóis “, viu um vulto descer a rua lamacenta, das chuvas que tinham caído ultimamente, com uma intensidade tal, que trazia as pessoas da aldeia com o credo na boca. As mulheres e as crianças iam à noite rezar a Santa Bárbara. Dos Santos meteu-se num recanto e virou-se para a parede, fingindo urinar. Quando o vulto passou, pôde reconhecer o “ Tchisca “ , o pastor a quem o “ Tonho Cabreiro “ partira todos os dentes com uma paulada, numa briga por causa de um renovo que “ Tchisca “ dizia ter sido o “ Tonho Cabreiro “ que lho tinha comido com as ovelhas. Dos Santos desconfiou logo que vinha da casa da “ descalçada “, a mulher que nunca usara nada nos pés e dava alguns instantes de prazer e de alívio aos rapazes e aos viúvos, e mesmo a alguns casados, em troca de cigarros, de vinho e de aguardente.
A casa do “ Rilha – Fóis “ ficava a cem passos. Subia-se , como em quase todas as casas da aldeia, por umas escadas de pedra até ao balcão. De fora, via-se uma fraca luz pelas frinchas da velha e esburacada porta; perscrutou alguns segundos para ter a certeza de que ninguém mais, além dos donos, estava em casa.
Ficou parado com a mão no ar, indeciso, de punho fechado, e por fim decidiu-se dar duas pancadinhas leves na porta, com o nó dos dedos.
- Entre quem é – respondeu uma voz forte de mulher, do interior.
Dos Santos abriu receosamente a porta e disse:
- É de paz – disse em voz baixa, não fossem as paredes ter ouvidos.
- Hã! És tu...?! – disse a Tia Carolina, quando o viu entrar.
A Tia Carolina era uma mulher forte, de peitos grandes e faces sempre coradas. Dizia-se que apreciava um bom copo de tinto maduro e de aguardente de uva. O “ caçador “ , vizinho dela, costumava dizer na taberna, quando já estava com um copito a mais, que a “ xiragona “ – alcunha por que era conhecida –era mais larga de ancas do que a vaca do “ Ratcha- Fragas “.
A porta fechou-se e Dos Santos esgueirou-se rapidamente para dentro. Sentiu logo na cara fria o calor das labaredas que subiam das cavacas de oliveira e de zimbro. Por cima da lareira, em varas de freixo, secavam os deliciosos azedos, as morcelas, as chouriças , as tabafeias , os salpicões e o inevitável paio. Dos quatro cantos pendiam dois presuntos e duas pás, ainda não curados, que mais tarde iriam para a salgadeira e que seriam o regalo nas segadas e nas malhadas. Dos Santos tirou o chapéu e deu as boas noites.
- Ora atão Deus nos deia munto boas noutes, Ti Goubeia e Ti Carolina.
- Boas noutes nos deia Deus – responderam-lhe convidando-o: - Bamos entrando, bamos entrando, que ´stá um tchiasco do dianho. Santa-te, home. Santa-te. Puxa esse banco e ceia aqui c´oa gente.
- Tamãe já ciei. Obrigadinho. Por acaso tamãe foram grelos com batatas – respondeu Dos Santos timidamente.
- Olha qu´ é de boa mente. Panela que dá pra dois, tamãe dá pra três – disse Tia Carolina sentando-se num canto do escano, do lado esquerdo da preguiça.
A seu lado tinha cada um uma boa pratada de batatas com grelos, bem adubadas em azeite, acompanhadas de um bom naco de toucinho cozido e uma chouriça assada. Ao lado de um bom “ quedorno “ de centeio, o maduro, dentro de um púcaro de barro para cada um, parecia sorrir-lhe, irresistível. Ti Gouveia encheu um púcaro e ofereceu –o a Dos Santos.
- Deus lo acrescente – agradeceu.
- Atão diz-me cá, home – começou o Ti Gouveia a coçar o peito esquelético. – Tu já pensastes bem na tua bida? Sim, por que estas cousas tenem que ser bem tenteadas, mormente tu que tães três filhos, ainda todos catraios.
- Deixe-me cá, Ti Goubeia, deixe-me cá. Inté já ´stou tonto de tanto matutar. Inté parece qu´stou doudo de tanto ´scarafuntchar o miolo. E olhe qu´é por bia deles , pra eles num passarem os mesmos trabalhos qu´eu que bou fazer isso – disse bebendo dois goles de vinho.
Fez-se um silêncio total e pesaroso: apenas se ouviam os gemidos da lenha seca, que ardia copiosamente. Dos Santos olhava para as suas enormes mãos, abertas, possantes , cheias de calos e vazias, abandonadas sobre os joelhos. O olhar perdeu-se nas chamas da lareira e um véu de solidariedade desceu sobre aquelas três cabeças, fustigadas pelo futuro incerto de três inocentes. Por fim a Tia Carolina cortou o silêncio:
- Sabe-se lá – disse sem tirar os olhos do lume. – Atão bós num bedes o que se passou co filho do Tonho Madruga?! Tantos trabalhos e q´ando o rapaz ´staba bem encaminhado, olha...deu-lhe prá li!!
- Ó mulher! Quem é que sabe o dia d´amanhê, a no ser Nosso senhor Jasus Cristo? Ninguém adbinha, nó é?
- Lá isso tamãe é berdade. Ninguém futura o futuro – respondeu-lhe a mulher.
Depois virou-se para Dos Santos e disse-lhe em tom paternal :
- Bom...Tu é que sabes o que tães a fazer e mais ninguém. E atão diz-me cá: q´ando é qu´abalas?
- Na noute de terça-feira, qu ´é q´ando há lua noba.
Copo daqui, conversa dali, Dos Santos foi ficando e era já noite escura quando saiu. O vinho já lhe fazia efeito no estômago vazio.
Antes de subir as escadas, Dos Santos deteve-se um pouco e convenceu-se mentalmente de que não iria chorar quando desse de caras com a mulher e os filhos. Primiu os lábios e galgou as escaleiras duas a duas, como querendo abreviar o sofrimento que o consumia. Entrou em casa cabisbaixo e sentou-se num banco à lareira. Logo o pequenito lhe saltou para o colo e passou-lhe os bracitos à volta do pescoço.
- Ó Pai! A Mãe tibo a tchuiá. O Mané diche qu´o Pai bai imbóia! No bai, poi não? – perguntou com uma carita muito triste e pondo na pergunta quase uma súplica.
- Não, meu filhinho. Num bou embora, não. Amanhê é que bou à feira dos Gorazes comprar uns bitelinhos.
- E taza um c´uma telinha na téta, xim Pai?
- ´Stá bem, filho – disse a Mãe num sorriso meigo e ao mesmo tempo triste. – O Pai trai-t´um bitelinho c´uma ´strelinha na testa, mas agora deixó Pai que tem que cear, bá.
- Num quero cear, mulher. Num tanho apetite – disse apalpando o estômago.
- Homessa!!Atão o qu´é que tu tães. Já o´mei-dia num comestes nada! Bá, com´ó menos o caldinho, qu´eu to lanço, bá.
Dos Santos aproveitou a hora em que toda a aldeia ceava para evitar ser visto e, talvez, por ser o homem mais cauteloso e mais desconfiado do mundo. Ao sair de casa, sua mulher Maria, lançou-lhe um olhar misto de compreensão e de socorro, como se adivinhasse o objectivo fatal e definitivo daquela saída e começou a chorar para espanto dos seus três filhos, que esperavam de olhitos arregalados e de barriga vazia, pelos feijões com couves e pela meia sardinha que assava nas brasas da lareira, num lume moribundo de vides.
- Poqué qui tá a tchuiá , Mãe?! O Pai foi imóia? – perguntou o mais pequenito, de cinco anos.
- Não, meu rico filho – acalmou-o a Mãe, passando-lhe a mão pelo cabelo, que ela própria tinha cortado com uma tesoura.
Maria virou a ponta do avental e assoou o nariz. Pediu ao filho mais velho que “ assoprasse “ ao lume e atiçou um pouco a torcida da candeia. Os três irmãos entreolharam-se com o olhar melancólico e interrogativo que só as crianças sabem ter, e o rosto grave, como se pressentissem que algo de mal lhes iria acontecer. O mais velhito soprou ao lume e foi chorar para o balcão, porque era o único que sabia do que se passava.
Dos Santos deu uma volta pelos campos para evitar os cães da “ Casa Grande “. Já perto da casa do “ Rilha – Fóis “, viu um vulto descer a rua lamacenta, das chuvas que tinham caído ultimamente, com uma intensidade tal, que trazia as pessoas da aldeia com o credo na boca. As mulheres e as crianças iam à noite rezar a Santa Bárbara. Dos Santos meteu-se num recanto e virou-se para a parede, fingindo urinar. Quando o vulto passou, pôde reconhecer o “ Tchisca “ , o pastor a quem o “ Tonho Cabreiro “ partira todos os dentes com uma paulada, numa briga por causa de um renovo que “ Tchisca “ dizia ter sido o “ Tonho Cabreiro “ que lho tinha comido com as ovelhas. Dos Santos desconfiou logo que vinha da casa da “ descalçada “, a mulher que nunca usara nada nos pés e dava alguns instantes de prazer e de alívio aos rapazes e aos viúvos, e mesmo a alguns casados, em troca de cigarros, de vinho e de aguardente.
A casa do “ Rilha – Fóis “ ficava a cem passos. Subia-se , como em quase todas as casas da aldeia, por umas escadas de pedra até ao balcão. De fora, via-se uma fraca luz pelas frinchas da velha e esburacada porta; perscrutou alguns segundos para ter a certeza de que ninguém mais, além dos donos, estava em casa.
Ficou parado com a mão no ar, indeciso, de punho fechado, e por fim decidiu-se dar duas pancadinhas leves na porta, com o nó dos dedos.
- Entre quem é – respondeu uma voz forte de mulher, do interior.
Dos Santos abriu receosamente a porta e disse:
- É de paz – disse em voz baixa, não fossem as paredes ter ouvidos.
- Hã! És tu...?! – disse a Tia Carolina, quando o viu entrar.
A Tia Carolina era uma mulher forte, de peitos grandes e faces sempre coradas. Dizia-se que apreciava um bom copo de tinto maduro e de aguardente de uva. O “ caçador “ , vizinho dela, costumava dizer na taberna, quando já estava com um copito a mais, que a “ xiragona “ – alcunha por que era conhecida –era mais larga de ancas do que a vaca do “ Ratcha- Fragas “.
A porta fechou-se e Dos Santos esgueirou-se rapidamente para dentro. Sentiu logo na cara fria o calor das labaredas que subiam das cavacas de oliveira e de zimbro. Por cima da lareira, em varas de freixo, secavam os deliciosos azedos, as morcelas, as chouriças , as tabafeias , os salpicões e o inevitável paio. Dos quatro cantos pendiam dois presuntos e duas pás, ainda não curados, que mais tarde iriam para a salgadeira e que seriam o regalo nas segadas e nas malhadas. Dos Santos tirou o chapéu e deu as boas noites.
- Ora atão Deus nos deia munto boas noutes, Ti Goubeia e Ti Carolina.
- Boas noutes nos deia Deus – responderam-lhe convidando-o: - Bamos entrando, bamos entrando, que ´stá um tchiasco do dianho. Santa-te, home. Santa-te. Puxa esse banco e ceia aqui c´oa gente.
- Tamãe já ciei. Obrigadinho. Por acaso tamãe foram grelos com batatas – respondeu Dos Santos timidamente.
- Olha qu´ é de boa mente. Panela que dá pra dois, tamãe dá pra três – disse Tia Carolina sentando-se num canto do escano, do lado esquerdo da preguiça.
A seu lado tinha cada um uma boa pratada de batatas com grelos, bem adubadas em azeite, acompanhadas de um bom naco de toucinho cozido e uma chouriça assada. Ao lado de um bom “ quedorno “ de centeio, o maduro, dentro de um púcaro de barro para cada um, parecia sorrir-lhe, irresistível. Ti Gouveia encheu um púcaro e ofereceu –o a Dos Santos.
- Deus lo acrescente – agradeceu.
- Atão diz-me cá, home – começou o Ti Gouveia a coçar o peito esquelético. – Tu já pensastes bem na tua bida? Sim, por que estas cousas tenem que ser bem tenteadas, mormente tu que tães três filhos, ainda todos catraios.
- Deixe-me cá, Ti Goubeia, deixe-me cá. Inté já ´stou tonto de tanto matutar. Inté parece qu´stou doudo de tanto ´scarafuntchar o miolo. E olhe qu´é por bia deles , pra eles num passarem os mesmos trabalhos qu´eu que bou fazer isso – disse bebendo dois goles de vinho.
Fez-se um silêncio total e pesaroso: apenas se ouviam os gemidos da lenha seca, que ardia copiosamente. Dos Santos olhava para as suas enormes mãos, abertas, possantes , cheias de calos e vazias, abandonadas sobre os joelhos. O olhar perdeu-se nas chamas da lareira e um véu de solidariedade desceu sobre aquelas três cabeças, fustigadas pelo futuro incerto de três inocentes. Por fim a Tia Carolina cortou o silêncio:
- Sabe-se lá – disse sem tirar os olhos do lume. – Atão bós num bedes o que se passou co filho do Tonho Madruga?! Tantos trabalhos e q´ando o rapaz ´staba bem encaminhado, olha...deu-lhe prá li!!
- Ó mulher! Quem é que sabe o dia d´amanhê, a no ser Nosso senhor Jasus Cristo? Ninguém adbinha, nó é?
- Lá isso tamãe é berdade. Ninguém futura o futuro – respondeu-lhe a mulher.
Depois virou-se para Dos Santos e disse-lhe em tom paternal :
- Bom...Tu é que sabes o que tães a fazer e mais ninguém. E atão diz-me cá: q´ando é qu´abalas?
- Na noute de terça-feira, qu ´é q´ando há lua noba.
Copo daqui, conversa dali, Dos Santos foi ficando e era já noite escura quando saiu. O vinho já lhe fazia efeito no estômago vazio.
Antes de subir as escadas, Dos Santos deteve-se um pouco e convenceu-se mentalmente de que não iria chorar quando desse de caras com a mulher e os filhos. Primiu os lábios e galgou as escaleiras duas a duas, como querendo abreviar o sofrimento que o consumia. Entrou em casa cabisbaixo e sentou-se num banco à lareira. Logo o pequenito lhe saltou para o colo e passou-lhe os bracitos à volta do pescoço.
- Ó Pai! A Mãe tibo a tchuiá. O Mané diche qu´o Pai bai imbóia! No bai, poi não? – perguntou com uma carita muito triste e pondo na pergunta quase uma súplica.
- Não, meu filhinho. Num bou embora, não. Amanhê é que bou à feira dos Gorazes comprar uns bitelinhos.
- E taza um c´uma telinha na téta, xim Pai?
- ´Stá bem, filho – disse a Mãe num sorriso meigo e ao mesmo tempo triste. – O Pai trai-t´um bitelinho c´uma ´strelinha na testa, mas agora deixó Pai que tem que cear, bá.
- Num quero cear, mulher. Num tanho apetite – disse apalpando o estômago.
- Homessa!!Atão o qu´é que tu tães. Já o´mei-dia num comestes nada! Bá, com´ó menos o caldinho, qu´eu to lanço, bá.
Continua...
Fontes de Carvalho
Fontes de Carvalho, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanato nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.
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