Por: Manuel Eduardo Pires
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Tendo começado a sair da escassez quando o século vinte já se encaminhava para o fim, as gerações que a tinham suportado acharam que deviam às seguintes mais desafogo material, níveis de vida dignos, saúde e escolaridade gratuitas, pensões de reforma, subsídios de desemprego. Nessa altura, tal como hoje e sempre, era vital tratar das necessidades do corpo, o que não se discute. Se a sua satisfação conduz diretamente à felicidade, já é mais problemático. O que então eram utopias materializou-se em grande parte. Não só o significado de pobreza não tem hoje nada que ver com o de há cinquenta anos, como as gerações mais novas da atualidade são as primeiras, em toda a nossa história, que viram satisfeitas aquelas necessidades cuja não-satisfação coloca a vida em risco.
Sentimo-nos agora mais realizados? Duvido muito. É bem provável que nos sintamos menos. Para já, tirando talvez aspetos óbvios tais como alimento, agasalho, abrigo, proteção, não existe forma de determinar o que são necessidades, tanto pela subjetividade sempre implicada nesse julgamento como pela criação constante delas a que o sistema económico induz. Por isso procurar satisfazê-las é muitas vezes como perseguir a linha do horizonte: quando se pensa estar a chegar lá, descobre-se que afinal se impõe outra caminhada para a alcançar. Dada a ausência de limites para o que somos capazes de necessitar e desejar, tendemos geralmente a adiar a satisfação para quando possuirmos mais isto ou mais aquilo, enredados em ciclos de procura que podem não ter fim.
Daí, tantas vezes, ao contrário do que se pretendia, a sensação de saber a pouco deixada pelos objetos adquiridos, pelos prazeres experimentados. E há mais. As coisas que elegemos como objetos de satisfação raramente são dadas de graça. De um modo geral, não só nos saem do corpo como exigem que nos acorrentemos a essa servidão consumidora dos nossos dias a que chamamos trabalho. Assim, a despeito de proporcionar algum prazer, pagamos com desprazer o que adquirimos, mesmo sem contar com a possibilidade de nos vendermos ao demónio para o conseguir, um tráfico frequente que está longe de trazer felicidade.
Mas quando se trata de identificar coisas materiais com bem-estar e satisfação, os que mencionei não são ainda os maiores enganos. É que uma porção considerável destes sentimentos não depende de indicadores económicos, nem aliás de nada exterior, antes de vivências íntimas, não-quantificáveis, embora bem reais e poderosas. De há umas décadas para cá a sociedade foi sendo sub-repticiamente impregnada de um desprezo (ou mesmo de vergonha) de inspiração marxista pelas coisas do espírito, pela ideia de que o ser humano é um corpo sem alma. Até podemos convencer-nos disso, mas nenhuma ideologia conseguirá alguma vez eliminar o facto de termos sentimentos, apreciarmos ou não o mundo e a vida, gostarmos ou não dos outros e de nós, amarmos ou odiarmos apaixonadamente.
Acima de tudo, havendo muitas coisas mais para lá do que podemos ver e compreender, a existência nunca deixará de ser para nós um mistério carregado de emoção. Acontece que mente e corpo, energia e matéria se produzem reciprocamente, algo em que albert einstein e as velhas escrituras estão de acordo. A realidade material das nossas vidas cria pensamento e sentimento, que por sua vez criam a realidade material das nossas vidas. É indiferente chamar a essa dimensão psique, sopro divino, prahna, ki, matriz do universo, santa rita de cássia. O que importa mesmo é saber que ela alicerça e condiciona tudo o que somos tanto pela positiva como pela negativa.
Daí a necessidade de a cuidar com mais desvelo do que o corpo. Não o fazer deixa um vazio que geralmente tentamos preencher de muitas formas: acumulando bens, relações, experiências excitantes, procurando fama, idolatrando pessoas, expondo barrigas de gravidez no instagram, louvando fanaticamente a vitória do benfica no marquês. Mas nada desta ordem consegue eliminar o vácuo, o que nos coloca no fio da navalha, em risco de deslizar para vários tipos de pobreza, a começar pela económica. Pelo contrário, acarinhá-la pode abrir portas a um estado de satisfação que permita sobreviver com poucos alimentos ou, se o clima o permitir, achar a camisa dispensável e viver até na rua.
Sentimo-nos agora mais realizados? Duvido muito. É bem provável que nos sintamos menos. Para já, tirando talvez aspetos óbvios tais como alimento, agasalho, abrigo, proteção, não existe forma de determinar o que são necessidades, tanto pela subjetividade sempre implicada nesse julgamento como pela criação constante delas a que o sistema económico induz. Por isso procurar satisfazê-las é muitas vezes como perseguir a linha do horizonte: quando se pensa estar a chegar lá, descobre-se que afinal se impõe outra caminhada para a alcançar. Dada a ausência de limites para o que somos capazes de necessitar e desejar, tendemos geralmente a adiar a satisfação para quando possuirmos mais isto ou mais aquilo, enredados em ciclos de procura que podem não ter fim.
Daí, tantas vezes, ao contrário do que se pretendia, a sensação de saber a pouco deixada pelos objetos adquiridos, pelos prazeres experimentados. E há mais. As coisas que elegemos como objetos de satisfação raramente são dadas de graça. De um modo geral, não só nos saem do corpo como exigem que nos acorrentemos a essa servidão consumidora dos nossos dias a que chamamos trabalho. Assim, a despeito de proporcionar algum prazer, pagamos com desprazer o que adquirimos, mesmo sem contar com a possibilidade de nos vendermos ao demónio para o conseguir, um tráfico frequente que está longe de trazer felicidade.
Mas quando se trata de identificar coisas materiais com bem-estar e satisfação, os que mencionei não são ainda os maiores enganos. É que uma porção considerável destes sentimentos não depende de indicadores económicos, nem aliás de nada exterior, antes de vivências íntimas, não-quantificáveis, embora bem reais e poderosas. De há umas décadas para cá a sociedade foi sendo sub-repticiamente impregnada de um desprezo (ou mesmo de vergonha) de inspiração marxista pelas coisas do espírito, pela ideia de que o ser humano é um corpo sem alma. Até podemos convencer-nos disso, mas nenhuma ideologia conseguirá alguma vez eliminar o facto de termos sentimentos, apreciarmos ou não o mundo e a vida, gostarmos ou não dos outros e de nós, amarmos ou odiarmos apaixonadamente.
Acima de tudo, havendo muitas coisas mais para lá do que podemos ver e compreender, a existência nunca deixará de ser para nós um mistério carregado de emoção. Acontece que mente e corpo, energia e matéria se produzem reciprocamente, algo em que albert einstein e as velhas escrituras estão de acordo. A realidade material das nossas vidas cria pensamento e sentimento, que por sua vez criam a realidade material das nossas vidas. É indiferente chamar a essa dimensão psique, sopro divino, prahna, ki, matriz do universo, santa rita de cássia. O que importa mesmo é saber que ela alicerça e condiciona tudo o que somos tanto pela positiva como pela negativa.
Daí a necessidade de a cuidar com mais desvelo do que o corpo. Não o fazer deixa um vazio que geralmente tentamos preencher de muitas formas: acumulando bens, relações, experiências excitantes, procurando fama, idolatrando pessoas, expondo barrigas de gravidez no instagram, louvando fanaticamente a vitória do benfica no marquês. Mas nada desta ordem consegue eliminar o vácuo, o que nos coloca no fio da navalha, em risco de deslizar para vários tipos de pobreza, a começar pela económica. Pelo contrário, acarinhá-la pode abrir portas a um estado de satisfação que permita sobreviver com poucos alimentos ou, se o clima o permitir, achar a camisa dispensável e viver até na rua.
(Nordeste - mai. 2019)
Manuel Eduardo Pires. Estes montes e esta cultura sempre foram o meu alimento espiritual, por onde quer que andasse. Os primeiros para já estão menos mal, enquanto a onda avassaladora do chamado progresso não decidir arrasá-los para construir sabe-se lá o quê, mas que nunca será tão bom. A cultura, essa está moribunda, e eu com ela. Daí talvez a nostalgia e o azedume naquilo que às vezes digo. De modo que peço paciência a quem tiver a paciência de me ir lendo.
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