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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

domingo, 12 de março de 2023

VIAGENS — 11 - Malícia outra vez

 A importância do sexo no Nordeste pode aferir-se, creio,  pelo grande número de modos de dizer que uma fêmea (refiro-me aqui a irracionais) se encontra em fase de cio. Certamente os meus Amigos conhecem alguns desses modos: das fêmeas em geral com cio, diz-se que estão aluadas, alevantadas, saídas e até desonestas. Depois há ainda designações para algumas espécies em particular: a porca está berruíça ou borliça, a vaca está touronda, a ovelha está maronda, etc. 
Mas tomemos agora as citadas designações referidas às fêmeas independentemente da espécie: aluada, alevantada, saída e até —imaginem! — desonesta. Aluada’ faz a ponte com o ciclo lunar. ‘Alevantada’ remete para a excitação própria do cio, e o mesmo se poderá dizer de ‘saída’. ‘Desonesta´ é termo mais interessante, porque remete não para instâncias fisiológicas nem psicológicas, mas para instâncias éticas. O apetite sexual é, pois, uma desonestidade que apenas se tolera porque garante a reprodução. E não é difícil transpor dos irracionais para os humanos este ponto de vista. Quando numa conhecida oração nos referimos a Maria como “concebida sem pecado“, o que estamos a dizer, senão que a concepção das outras mulheres é “com pecado”?
Contaremos ainda uma terceira conta de lascívia. Em relação às anteriores, há também uma diferença importante a notar: aqui, a mulher não é inspiradora, mas vítima de uma alegada violação que as suas próprias palavras nos fazem pôr em dúvida. 
Uma vez um homem mandou a filha ao moinho por uma saquita de farinha. A rapariga foi e nunca mais aparecia, e o pai muito ralado. Quando ela chegou, por fim, procura-lhe o pai:

− Então porque é que te demoraste tanto por lá?
− Olhe, meu pai. Eu era para me vir logo embora. Mas o demónio do moleiro não sei o que lhe passou pela cabeça, que agarrou em mim, meteu-me com o cu no farnheiro e, olhe, fez o que quis...
− Fez o que quis? Oh, valha-me aqui São Bartolomeu! E então tu, tontinha, que não gritavas?
− Gritar?!... Olha! E quem podia, com a risa?

Impossível não notar as semelhanças desta conta com o que aconteceu a Lianor Vaz, a alcoviteira da Farsa de Inês Pereira, que narra como foi acometida por um clérigo curioso, que quis à força tirar a limpo se ela era macho ou fêmea. Ela não conseguiu opor resistência, e explica porquê:

Se estivera de maneira
Sem ser rouca, bradar’eu;
Mas logo m’o demo deu
Catarrão e peitogueira, 
Cócegas e cor [vontade] de rir.

O que me autoriza, embora a medo, uma suposição. Será que esta conta, ou semelhante, já corria no tempo de Gil Vicente, e que o mestre dos autos e das farsas se inspirou nela para estes cinco versos de puro humor?  É certo que Gil Vicente expande os motivos por que Lianor Vaz não bradou por socorro: estava rouca, teve um acesso de catarrão e peitogueira — e tudo isso combinado impediu-a de pedir socorro. Como se isso não bastasse, ainda sobrevieram cócegas e vontade de rir. Mas isso é como se se tratasse de variações que Gil Vicente faz sobre um mote alheio, presumivelmente uma conta popular. De toda a maneira, parece-me a suposição supra mais verosímil do que a hipótese contrária, isto é, ter-se inspirado em Gil Vicente o autor anónimo e decerto colectivo da conta. A menos que aceitemos que se trata de uma simples coincidência — o que, convenhamos, é bem mais difícil de aceitar.

(Continua, mas já não com malícia.)

A. M. Pires Cabral

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