Dizíamos, a fechar o folhetim de ontem, que a gente ouve contar estas contas, e ri-se, e, se tem espírito curioso, procura indagar onde está a graça. Porque a graça não está sempre no mesmo sítio.
No caso da conta das nozes, julgo que a graça estará na resolução dum conflito entre essência e aparência. O homem é um bicho que ‘parece’ e nem sempre ‘é’. Tende a deixar de si uma imagem que o favoreça, a poder de fingimento, se necessário. O freguês desta conta parece uma coisa, mas na verdade é outra. Parece que manda na mulher, porque fala alto e de mau modo com ela, mas afinal é a mulher, embora falando com mansidão, que manda nele. Emite sinais falsos, mesmo que o faça involuntariamente: lá em casa é ele que fala mais grosso. E quando a situação se torna insustentável e o grande equívoco se desfaz, o leitor ou o ouvinte da conta experimentam uma sensação de alívio pelo triunfo da verdade. E, como sempre que se sente aliviado, ri com facilidade. Será assim? Não me ocorre explicação melhor.
Na outra conta, a da água benta, a graça estará na engenhosa solução encontrada pelo padre, que consegue anular ao homem a capacidade de falar (logo, de alimentar discussões geradoras de pancadaria), por ter a boca ocupada.
Segue-se uma conta a documentar o pecadilho da desobediência em versão ‘light’, isto é, em que a desobediência, mais do que um vício que prejudique alguém, é uma travessura, uma vontade incoercível de contrariar. (No “Repórter do Marão”, de 30 de Agosto de 1991, com o título “A teimosia das mulheres” publiquei uma versão desta conta não inteiramente coincidente com a presente. Na altura, chamei teimosia ao pecadilho fustigado na conta. Também não estava mal: ao fim e ao cabo, desobediência e teimosia são coisas afins — é que, lá bem no fundo, não são uma e a mesma coisa.)
Vamos à conta:
Conta-se que uma vez o marido disse para a mulher:
− Hoje é festa em tal parte. Mas tu não vás lá, que aquilo é lá muita confusão.
‒ Olha, homem: eu também já não fazia tenções de ir. Mas já que me dizes para não ir, então é quando vou.
‒ Pois vai, se te apraz. Mas não vás no macho grande, que é muito espantadiço.
‒ Também já estava a pensar em ir na burrica. Mas dizes-me para não ir no macho? Pois então é mesmo no macho que vou.
‒ Pois sim. Mas ao menos não leves a pandeireta, que parece mal.
‒ Ai dizes-me para não levar a pandeireta? Não estava a pensar levá-la. Mas já que não queres que a leve, olha, é que a levo mesmo.
‒ Pois bem, faz lá como entenderes. Lá teimosa és tu. Mas, pelo menos, ao passar a ponte, por amor de Deus não toques a pandeireta, que o macho pode-se espantar e caíres tu à ribeira.
‒ Nalgum sítio tenho de tocar. E já que me dizes que não toque ao passar na ponte, então vai ser aí mesmo que vou tocar a pandeireta.
E assim foi. Ao atravessar a ponte, a mulher tocou a pandeireta. Espantou-se o macho, derrubou-a e lá foi ela parar à ribeira, que levava muita água.
Vieram avisar o marido que fosse saber da mulher, que tinha caído à ribeira e foi levada nas águas. O homem foi e começou logo a procurar pela ribeira acima.
‒ Vossemecê adonde vai? ‒ disseram-lhe. ‒ Então se a mulher foi por água abaixo, vossemecê procura-a ao para riba?
‒ Olhe, meu santo, eu conheço a minha mulher como as minhas mãos. Se lhe palpitou que eu havia de a procurar pela ribeira abaixo, foi pela ribeira acima de certeza. Faz sempre o contrário da outra gente.
E quanto a desobediências, por agora é tudo. Seguir-se-ão outros pecadilhos. Não perca os próximos episódios.
No caso da conta das nozes, julgo que a graça estará na resolução dum conflito entre essência e aparência. O homem é um bicho que ‘parece’ e nem sempre ‘é’. Tende a deixar de si uma imagem que o favoreça, a poder de fingimento, se necessário. O freguês desta conta parece uma coisa, mas na verdade é outra. Parece que manda na mulher, porque fala alto e de mau modo com ela, mas afinal é a mulher, embora falando com mansidão, que manda nele. Emite sinais falsos, mesmo que o faça involuntariamente: lá em casa é ele que fala mais grosso. E quando a situação se torna insustentável e o grande equívoco se desfaz, o leitor ou o ouvinte da conta experimentam uma sensação de alívio pelo triunfo da verdade. E, como sempre que se sente aliviado, ri com facilidade. Será assim? Não me ocorre explicação melhor.
Na outra conta, a da água benta, a graça estará na engenhosa solução encontrada pelo padre, que consegue anular ao homem a capacidade de falar (logo, de alimentar discussões geradoras de pancadaria), por ter a boca ocupada.
Segue-se uma conta a documentar o pecadilho da desobediência em versão ‘light’, isto é, em que a desobediência, mais do que um vício que prejudique alguém, é uma travessura, uma vontade incoercível de contrariar. (No “Repórter do Marão”, de 30 de Agosto de 1991, com o título “A teimosia das mulheres” publiquei uma versão desta conta não inteiramente coincidente com a presente. Na altura, chamei teimosia ao pecadilho fustigado na conta. Também não estava mal: ao fim e ao cabo, desobediência e teimosia são coisas afins — é que, lá bem no fundo, não são uma e a mesma coisa.)
Vamos à conta:
Conta-se que uma vez o marido disse para a mulher:
− Hoje é festa em tal parte. Mas tu não vás lá, que aquilo é lá muita confusão.
‒ Olha, homem: eu também já não fazia tenções de ir. Mas já que me dizes para não ir, então é quando vou.
‒ Pois vai, se te apraz. Mas não vás no macho grande, que é muito espantadiço.
‒ Também já estava a pensar em ir na burrica. Mas dizes-me para não ir no macho? Pois então é mesmo no macho que vou.
‒ Pois sim. Mas ao menos não leves a pandeireta, que parece mal.
‒ Ai dizes-me para não levar a pandeireta? Não estava a pensar levá-la. Mas já que não queres que a leve, olha, é que a levo mesmo.
‒ Pois bem, faz lá como entenderes. Lá teimosa és tu. Mas, pelo menos, ao passar a ponte, por amor de Deus não toques a pandeireta, que o macho pode-se espantar e caíres tu à ribeira.
‒ Nalgum sítio tenho de tocar. E já que me dizes que não toque ao passar na ponte, então vai ser aí mesmo que vou tocar a pandeireta.
E assim foi. Ao atravessar a ponte, a mulher tocou a pandeireta. Espantou-se o macho, derrubou-a e lá foi ela parar à ribeira, que levava muita água.
Vieram avisar o marido que fosse saber da mulher, que tinha caído à ribeira e foi levada nas águas. O homem foi e começou logo a procurar pela ribeira acima.
‒ Vossemecê adonde vai? ‒ disseram-lhe. ‒ Então se a mulher foi por água abaixo, vossemecê procura-a ao para riba?
‒ Olhe, meu santo, eu conheço a minha mulher como as minhas mãos. Se lhe palpitou que eu havia de a procurar pela ribeira abaixo, foi pela ribeira acima de certeza. Faz sempre o contrário da outra gente.
E quanto a desobediências, por agora é tudo. Seguir-se-ão outros pecadilhos. Não perca os próximos episódios.
(Continua.)
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