Há mais de 50 anos que frequento Grijó: desde que casei — com a minha Mulher e com Grijó.
A Grijó desses tempos, chamei, num arroubo de generosidade, ‘arredores do paraíso’, em paga do bem que me sentia lá. Hoje pus de lado essa metáfora ousada. Ano após ano, paulatina mas tenazmente, o paraíso tem-se vindo a degradar. Porque só faz sentido chamar arredores do paraíso a um lugar onde haja gente — e em Grijó não há. Todos os anos a morte vem acertar contas com a aldeia — e todos os anos Grijó fica um pouco menos povoado. Este ano foi o Sr. Alberto Alves, príncipe dos marceneiros e coleccionador de móveis e retábulos, que desertou. A morte não abre mão do seu direito de vir colher quem acha que está em termos de ser colhido.
Este fim de semana fomos a Grijó, minha Mulher e eu. À chegada, na sexta-feira, sabem quantas pessoas vimos na rua? Dez? Frio. Cinco? Frio. Três? Nem isso. Vimos uma: o Sr. António, por alcunha Machucho, que costuma vir sentar-se num banco do largo defronte da igreja, ocupado alternadamente em cismar e dormitar. Nem mais uma pessoa às seis da tarde — uma tarde luminosa, nem quente nem fria, que convidava ao ar livre.
E, à compita com o Sr. António Machucho, ponho-me também a cismar. Comparo a situação presente com o que acontecia há 50 anos. O que acontecia há 50 anos era isto. A um canto, um grupinho de três ou quatro mulheres confabulava. Mais além, passava um homem, de sacho ao ombro, a caminho da horta de que custosamente arranca o sustento da família. Acompanha-o a mulher, dois passos atrás, com uma cestinha na mão, que no regresso virá cheia com meia dúzia de tomates, outras tantas cenouras, porventura algumas maçãs, uma couve lombarda, um pé de alface. Perto, seis ou sete crianças escachouçavam — isto é, brincavam em grandes corrimaças e grande grita.
Há 50 anos, a aldeia já não era o formigueiro humano que devia ter sido há 100 anos, mas tão-pouco era o deserto que é hoje. E o pensamento entra a devanear: o que será daqui a cinco ou dez anos, quando a morte tiver saldado contas com o lar da terceira idade.
Um tractor passa à minha porta, com grande estrondo de ferragens, interrompendo-me a meditação. E dou-me conta de que há cinco ou seis tractores na aldeia, de outros tantos indivíduos que cultivam os campos, quer sejam de sua propriedade ou arrendados. As ruas deixaram de ser para as pessoas e passaram a ser para os tractores. Nem tão mal. Antes os tractores barulhentos e desengonçados do que ninguém nas ruas.
Mas que custa, custa. Então a falta das crianças arrasa-nos. Saímos para um breve passeio. E temos a consolação de ver como os prados estão lindos, cobertos com uma alcatifa fofa e luminosa, feita de milhares de florinhas amarelas, como nem Sua Santidade o Papa terá nos seus salões do Vaticano. E isso a dois passos de nossas casa.
E Grijó volta a ser, como por milagre, os arredores do paraíso. Abençoada Primavera!
A Grijó desses tempos, chamei, num arroubo de generosidade, ‘arredores do paraíso’, em paga do bem que me sentia lá. Hoje pus de lado essa metáfora ousada. Ano após ano, paulatina mas tenazmente, o paraíso tem-se vindo a degradar. Porque só faz sentido chamar arredores do paraíso a um lugar onde haja gente — e em Grijó não há. Todos os anos a morte vem acertar contas com a aldeia — e todos os anos Grijó fica um pouco menos povoado. Este ano foi o Sr. Alberto Alves, príncipe dos marceneiros e coleccionador de móveis e retábulos, que desertou. A morte não abre mão do seu direito de vir colher quem acha que está em termos de ser colhido.
Este fim de semana fomos a Grijó, minha Mulher e eu. À chegada, na sexta-feira, sabem quantas pessoas vimos na rua? Dez? Frio. Cinco? Frio. Três? Nem isso. Vimos uma: o Sr. António, por alcunha Machucho, que costuma vir sentar-se num banco do largo defronte da igreja, ocupado alternadamente em cismar e dormitar. Nem mais uma pessoa às seis da tarde — uma tarde luminosa, nem quente nem fria, que convidava ao ar livre.
E, à compita com o Sr. António Machucho, ponho-me também a cismar. Comparo a situação presente com o que acontecia há 50 anos. O que acontecia há 50 anos era isto. A um canto, um grupinho de três ou quatro mulheres confabulava. Mais além, passava um homem, de sacho ao ombro, a caminho da horta de que custosamente arranca o sustento da família. Acompanha-o a mulher, dois passos atrás, com uma cestinha na mão, que no regresso virá cheia com meia dúzia de tomates, outras tantas cenouras, porventura algumas maçãs, uma couve lombarda, um pé de alface. Perto, seis ou sete crianças escachouçavam — isto é, brincavam em grandes corrimaças e grande grita.
Há 50 anos, a aldeia já não era o formigueiro humano que devia ter sido há 100 anos, mas tão-pouco era o deserto que é hoje. E o pensamento entra a devanear: o que será daqui a cinco ou dez anos, quando a morte tiver saldado contas com o lar da terceira idade.
Um tractor passa à minha porta, com grande estrondo de ferragens, interrompendo-me a meditação. E dou-me conta de que há cinco ou seis tractores na aldeia, de outros tantos indivíduos que cultivam os campos, quer sejam de sua propriedade ou arrendados. As ruas deixaram de ser para as pessoas e passaram a ser para os tractores. Nem tão mal. Antes os tractores barulhentos e desengonçados do que ninguém nas ruas.
Mas que custa, custa. Então a falta das crianças arrasa-nos. Saímos para um breve passeio. E temos a consolação de ver como os prados estão lindos, cobertos com uma alcatifa fofa e luminosa, feita de milhares de florinhas amarelas, como nem Sua Santidade o Papa terá nos seus salões do Vaticano. E isso a dois passos de nossas casa.
E Grijó volta a ser, como por milagre, os arredores do paraíso. Abençoada Primavera!
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