Por: Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS
São Paulo (Brasil)
(colaborador do Memórias...e outras coisas)
Noroeste do estado de São Paulo. Região de Auriflama. Ano 2000, fim da primavera. Sol quente. Um vento morno corre as matas ciliares do Rio Tietê.
O China, um coió com cara de índio, está ao lado das barrancas no trecho de rio pertencente aos Akinaga. Abre o picuá e separa a panela, a frigideira, a lata de óleo de cozinha, o sal, o vidro de pimenta Comari curtida na pinga, o toco de fumo goiano, a binga, a faca de mato, o canivete, o maço de palhas de milho híbrido, a garrafa de café tampada com rolha, a outra garrafinha de cachaça, o chapéu, e um par de botas de cano curto. Pega o feixe de varas de bambu jardim e a caixinha de plástico com os anzóis já encastoados. Separa uma lata com as iscas: alguns filhotes de cupins, farelo de arroz, duas espigas de milho cozido, uma lata menor de minhocas “brabas”, mais uma com pedaço de bofes de boi; para os mandis e pintados. Resolveu pegar uns lambaris para fisgar um douradinho ou uma piracanjuba.
Atravessou o cipoal da margem e descobriu um “poço de pesca”, um remanso de águas, que provocavam remoinhos ao redor de um tronco de árvore caído há dezenas de anos na beira do rio. Jogou um pouco do farelo na água: os lambaris canivetes e os tambiús fervilharam. Iscou um grão de milho no anzol mosquitinho e jogou ali na beirada. Nem contou até três e ferrou um tambiú bonito, de um dez centímetros de comprimento. E foi assim, um após o outro! O China havia encontrado um velho balde esmaltado, deixado nas margens do rio por algum pescador desavisado. Desceu até o leito do rio e encheu o balde. Num instante o balde ficou pelo meio, pois haviam furos devido à corrosão. Dentro deste meio-balde de água foi jogando os lambaris de isca. Assim, teria iscas vivas para os dourados, que haveria de ferrar no anzol barra dois, pensou.
E ficou assim durante quatro horas, iscando um lambari vivo de cada vez e jogando o anzol no meio da corredeira; tudo para pegar um dourado!
Embora a pescaria seja um esporte de paciência, o China começou a ficar impaciente pela falta de pescar o dourado e pelos mosquitinhos “pólvora”, que onde picavam queimava como se fosse ateado fogo sobre a pele. O China coçou-se uma, duas, cem vezes, até sangrar as mãos, próximo do pulso, onde ostentava um lindo relógio, um Roskoff; herança de família. Raciocinou: colocou a vara “de espera”, enquanto tirava o relógio de seu pulso e o pendurava do outro lado do tronco caído no leito do rio, num raminho que insistia em querer reviver do velho tronco apodrecido. Entretido nesse mister, o china viu a vara curvar-se, ante um forte puxão de um peixe de dimensões sensacionais. Mal teve tempo de segurar a base da vara que já começava a se desprender do barranco onde estava cravada. A briga foi longa e bonita. Estava na hora do entardecer, onde o lusco-fusco no horizonte coloria as nuvens em tons vermelho e rosa, mesclados com azul escuro e raios negros. A linha zero cinco cantava e a vara dobrava de quando em quando. Numa dessas vezes, o china ainda viu o horizonte tingir-se de dourado; um belo espécime de vinte e dois quilos fazia a esperada luta de que todo pescador que se preza gostaria de ter um dia. Quando finalmente conseguiu trazer o peixe até a margem e colocá-lo num puçá, já era noite escura como breu. O China enfiou o dourado junto com os apetrechos dentro do picuá, escondeu as varas no tronco de um ingazeiro coberto de cipó-de-São-João, atravessou o cipoal e saiu das barrancas do rio.
Quando chegou em casa, por volta da meia-noite, molhado e cansado além de feliz pelo troféu que levara; lembrou-se do relógio, herança da família. Que fazer?
-Amanhã volto lá e pego o anzol. Pensou.
E foi dormir satisfeito; cansado, mas satisfeito.
No dia seguinte, por volta da hora do almoço, o China recebeu a visita de uma irmã que não via há muito tempo. Ela trouxe uma notícia triste, a madrinha do China estava internada num hospital de São Paulo e pedia a sua presença.
Comovido, o China foi para São Paulo e visitou a madrinha no hospital; voltou a hospital no dia seguinte, a madrinha estava melhor e teve alta. O China resolveu ficar mais uns dias junto com a madrinha, que morava sozinha e tinha uma pequena indústria de confecções. Passaram-se mais três dias e a madrinha continuava adoentada e solicitou ao china que fosse ver como estava a empresa. Quando lá chegou, a confecção estava parada, por absoluta falta de liderança dos chefes. O China fez um relatório meticuloso à sua madrinha e esta resolveu que ele, o China assumisse a empresa durante sua recuperação e convalescência. Quando o China viu que envolvia bastante dinheiro, foi buscar a família em Auriflama e veio para São Paulo, tornando-se diretor geral da empresa, com participação nos lucros e etc.
Depois de um ano à frente da fábrica, a empresa cresceu e passou inclusive a exportar roupas ali confeccionadas. O China parecia que tinha dom pela coisa e, depois de algum tempo sua madrinha faleceu e ele passou a ser dono da empresa, por vontade declarada da madrinha na partilha dos bens.
E assim passaram-se dez anos.
No mês passado, em março de 2010, o China esteve em Auriflama, para tratar da venda de sua casa e alguns outros bens que haviam ficado para trás; estava muito bem em São Paulo e não precisava mais ter aquela vida medianamente difícil no interior.
Depois que tudo estava consolidado, um amigo lembrou-lhe das pescarias e ofereceu-se para ir dar uma espiada nos lugares onde pescavam, só para matar a saudade.
Quando passaram pelas terras do Akinaga, o China lembrou-se de sua última pescaria sozinho e do relógio de família, esquecido na beira do rio.
Junto com o amigo, localizou o ingazeiro caído sobre o leito do rio e até achou as varas de pescar que, na pressa, escondeu no tronco da árvore. As varas estavam todas apodrecidas e os anzóis não mais existiam. O China não se conteve e pensou em ir procurar o relógio.
Contornou o tronco e, pendurado num galho, que outrora era um raminho, lá estava o relógio Roskoff. Com um toco de vara de pescar ele conseguir puxar o relógio pela pulseira de aço inoxidável.
-Incrível, disseram juntos os dois amigos.
Mesmo depois de dez anos, o relógio que era de corda, continuava a trabalhar normalmente. Conferiram a hora com seus próprios relógios. Apenas um minuto atrasado.
-Como explicar isso?; pensaram.
E os dois foram ver: o relógio havia ficado com a coroa para baixo, colada no tronco que estava seco e a cada brisa ou vento, o ramo ou galho se movia e provocava o atrito entre o ronco e o raminho ou galho que se tornou, fazendo-a correr, mantendo o relógio sempre com corda, durante longos dez anos.
Isso também é história que os pescadores contam. Esta eu afirmo que não é “causo”.
Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 9 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de cinco outros publicados em antologias junto a outros escritores.
Sem comentários:
Enviar um comentário