Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Antes de entrar na narração propriamente dita, gostava de dizer algumas palavras, em jeito de homenagem, aos heróis do 25 de Abril. Nunca nos deveremos esquecer da maneira corajosa, cívica e limpa como enfrentaram o monstro! Graças a eles, deixámos de falar entre-dentes embora, no campo social e económico, a Democracia já se encontre moribunda, graças aos sabujos, aos pelintras, aos oportunistas, aos trafulhas, intrujões e aos demagogos.
Como bem sabemos - e convém que nunca nos esqueçamos disso, a ignorância política era quase absoluta, para bem da Nação. Não a maldade humana, que essa era à prova de qualquer manipulação abjecta. Era como se vivêssemos num País sem sol, sem sabermos que havia sol. Mais do que esconder o sol, a crueldade está em negar a opção da escolha: viver com ou sem sol. A falta de sol, se for uma escolha consciente e livre, poderá ser uma opção tão válida como a do sol, desde que essa escolha seja convicta e livre. E era precisamente isso que nos faltava: a opção da escolha, a Liberdade, tesouro inviolável de todos nós. Tudo nos era imposto à viva força: a ignorância, o obscurantismo e, até a delação.
Na noite de 24 de Abril de 1974, jogava eu bilhar com o penalbilhas, por cima do Chave D´Ouro quando, por volta das onze horas da noite, mais minuto, menos minuto, o Zé Alberto de Izeda, apareceu com ar estranho a dizer:
- Andai daí, pá. ´Stá la em baixo o padre Sobrinho e o Sô D´tor de História que querem falar contigo e com o Rui.
- Mas eu no fiz nada de mal? – Perguntou olhando para mim. – Fizeste alguma borrada? Perguntou-me.
- Eu não. Pelo menos que me tenha apercebido, não fizemos nada de mal.
- Não é nada disso – disse o Zé Alberto. – Tem a ver com Revolução e Liberdade, penso eu. Não entendi nada, mas eles querem falar contigo.
O penalbilhas já tinha ouvido, em tempos, qualquer coisa que se tinha passado no Liceu, em que pintaram as escadas e onde estavam envolvidos os irmãos Vitorino, que viviam em quarto alugado numa pensão e um rapaz de Moncorvo, qualquer coisa... Leite, da Vilariça.
Descemos e logo o Padre Sobrinho nos perguntou:
- Não sabeis nada do que se passa?
- Não! – Respondemos com um encolher de ombros.
- Então não sabeis que está a haver uma revolução em Lisboa?!
- O que é isso? – Perguntei ingenuamente.
- Houve um golpe de Estado. Os militares derrubaram o governo. Somos livres – disse o Professor de História entusiasmado.
- Sim. Acabou a ditadura e o fascismo – reforçou o Padre Sobrinho num contentamento infantil.
Olhámos estupefactos uns para os outros, sem alcançarmos o alcance daqueles conceitos, completamente desconhecidos para nós, até então. Perante o nosso fraco entusiasmo – comparado com o êxtase deles -, disse – nos o Padre Sobrinho, mais direccionado para o penalbilhas:
- Vai, pá. Junta meia dúzia dos teus súcias, arranjai toalhas de papel branco e ide a ter à Escola.
Fomos pela cidade chamar o Daniel, o Raúl, o “ Santcha “ e, ao passarmos pelo Príncipe Negro, o indromineiro, que tinha confiança e amizade com o empregado, roubou umas quantas tolhas de papel e fomos até à Escola, onde já se encontravam o Professor de História, o Padre Sobrinho e mais alguns alunos e alunas.
Nas paredes estavam já escritas diversas frases, entre as quais: “ Abaixo a ditadura”. “ Viva a Liberdade “. “ Fascismo nunca mais”. “ Viva a Democracia “. Viva o pensamento Livre! “. Morte ao Fascismo “.
Passámos noite em vigília, repetindo alguns “ slogans “ nas tolhas de papel que colámos nas portas, nas paredes e nas janelas.
Quando de manhã, começaram a chegar as empregadas de limpeza, os contínuos e alunos, cada qual fez a sua expressão de alegria, de medo, de incompreensão e até de desagrado e reprovação.
Ninguém suspeitava do que se estava a passar!
Entre encontros e desencontros, nesse dia não houve aulas. A partir desse dia era o caos generalizado. Ninguém, propriamente, sabia como lidar com a situação. Houve contactos intensos com a Associação de estudantes de quase todas as escolas do Distrito, com a ajuda preciosa e sensata da Dr.ª Aurora. O facto é que os Institutos Industriais passaram a ser Institutos Superiores (ISEP, ISEL e ISEC, ISCAL e ISCAP).
Havia concentrações e plenários em qualquer lado. Certa vez, no corredor do 1º andar, havia um conjunto de alunos e professores que debatiam ideias. No calor da discussão, o Professor Pássaro, disse muito indignado, talvez com qualquer coisa que se tivesse dito a seu respeito: “ Cuidado! Não vos meteis comigo, porque um Pássaro ferido...”! “ Não voa “- atalhou letalmente o penalbilhas! O Professor Pássaro encolheu as garras e as asas e saiu a dali a voar baixinho. Todos nós aplaudimos entusiasticamente o penalbilhas, que, de facto, se impunha como líder.
Uma outra vez, num plenário no Salão Nobre da Escola – onde se faziam os bailaricos, o fistor intervinha entusiasmado, bramindo o braço no ar. Cheguei-me ao pé dele e segredei-lhe: “ Ó pá! Não levantes tanto o braço, que tens a camisa rota no sovaco”.
Já não sei em que mês, houve eleições para a Comissão de Festas dos Finalistas e o pantomineiro concorreu. Era tão inconsciente e tão desapegado da realidade que, em vez de votar nele próprio, votou no adversário! Que lhe ganhou por poucos votos. (De qualquer modo, a direcção ficou muito bem entregue a esse excelente rapaz, que se chamava Freixo, se não estou enganado. Era, sem dúvida, o rapaz mais popular da Escola, pois já a frequentava desde o primeiro ano.
Quando soube disso e o confrontei, desarmou-me com o seu sorriso de criança: “ Que le queres, pá! Não gosto de mandar e nem de responsabilidades. Prefiro ficar na “ sombra “. Até hoje ainda não engoli essa explicação. Quanto a mim, fê-lo por burrice e por falta de experiência pois, no fundo, era de uma ingenuidade quase religiosa e irritante. (A vida já o deve ter ensinado, certamente).
Éramos parvos, estouvados e inconscientes e manipulados, mas éramos autênticos, genuínos, cheios de sonhos e ávidos de liberdade, se bem que muitos de nós não fizesse a mínima ideia do que isso era. Vivíamos deslumbrados e confusos, mas todos queríamos agarrar a vida pelos cornos. Éramos a força-motriz da mudança, o farol de esperança do futuro, mas também uma isca para os oportunistas, que se aproveitavam da nossa inocência e energia profundamente genuína, para atingirem os seus objectivos pessoais e egoístas. Teremos sido talvez cruéis com alguns, a quem tratámos mal e que, porventura não mereciam mas, a nossa irracionalidade ingénua e ignorância, era pasto basto para os chupistas e malabaristas que, infelizmente, continuam a crescer como cogumelos, nos dias de hoje. Lançavam a pedra e escondiam a mão.
Também, quem os mandou (a eles), obrigarem-nos (a nós), a vivermos durante décadas na ignorância e no silêncio?!
Como bem sabemos - e convém que nunca nos esqueçamos disso, a ignorância política era quase absoluta, para bem da Nação. Não a maldade humana, que essa era à prova de qualquer manipulação abjecta. Era como se vivêssemos num País sem sol, sem sabermos que havia sol. Mais do que esconder o sol, a crueldade está em negar a opção da escolha: viver com ou sem sol. A falta de sol, se for uma escolha consciente e livre, poderá ser uma opção tão válida como a do sol, desde que essa escolha seja convicta e livre. E era precisamente isso que nos faltava: a opção da escolha, a Liberdade, tesouro inviolável de todos nós. Tudo nos era imposto à viva força: a ignorância, o obscurantismo e, até a delação.
Na noite de 24 de Abril de 1974, jogava eu bilhar com o penalbilhas, por cima do Chave D´Ouro quando, por volta das onze horas da noite, mais minuto, menos minuto, o Zé Alberto de Izeda, apareceu com ar estranho a dizer:
- Andai daí, pá. ´Stá la em baixo o padre Sobrinho e o Sô D´tor de História que querem falar contigo e com o Rui.
- Mas eu no fiz nada de mal? – Perguntou olhando para mim. – Fizeste alguma borrada? Perguntou-me.
- Eu não. Pelo menos que me tenha apercebido, não fizemos nada de mal.
- Não é nada disso – disse o Zé Alberto. – Tem a ver com Revolução e Liberdade, penso eu. Não entendi nada, mas eles querem falar contigo.
O penalbilhas já tinha ouvido, em tempos, qualquer coisa que se tinha passado no Liceu, em que pintaram as escadas e onde estavam envolvidos os irmãos Vitorino, que viviam em quarto alugado numa pensão e um rapaz de Moncorvo, qualquer coisa... Leite, da Vilariça.
Descemos e logo o Padre Sobrinho nos perguntou:
- Não sabeis nada do que se passa?
- Não! – Respondemos com um encolher de ombros.
- Então não sabeis que está a haver uma revolução em Lisboa?!
- O que é isso? – Perguntei ingenuamente.
- Houve um golpe de Estado. Os militares derrubaram o governo. Somos livres – disse o Professor de História entusiasmado.
- Sim. Acabou a ditadura e o fascismo – reforçou o Padre Sobrinho num contentamento infantil.
Olhámos estupefactos uns para os outros, sem alcançarmos o alcance daqueles conceitos, completamente desconhecidos para nós, até então. Perante o nosso fraco entusiasmo – comparado com o êxtase deles -, disse – nos o Padre Sobrinho, mais direccionado para o penalbilhas:
- Vai, pá. Junta meia dúzia dos teus súcias, arranjai toalhas de papel branco e ide a ter à Escola.
Fomos pela cidade chamar o Daniel, o Raúl, o “ Santcha “ e, ao passarmos pelo Príncipe Negro, o indromineiro, que tinha confiança e amizade com o empregado, roubou umas quantas tolhas de papel e fomos até à Escola, onde já se encontravam o Professor de História, o Padre Sobrinho e mais alguns alunos e alunas.
Nas paredes estavam já escritas diversas frases, entre as quais: “ Abaixo a ditadura”. “ Viva a Liberdade “. “ Fascismo nunca mais”. “ Viva a Democracia “. Viva o pensamento Livre! “. Morte ao Fascismo “.
Passámos noite em vigília, repetindo alguns “ slogans “ nas tolhas de papel que colámos nas portas, nas paredes e nas janelas.
Quando de manhã, começaram a chegar as empregadas de limpeza, os contínuos e alunos, cada qual fez a sua expressão de alegria, de medo, de incompreensão e até de desagrado e reprovação.
Ninguém suspeitava do que se estava a passar!
Entre encontros e desencontros, nesse dia não houve aulas. A partir desse dia era o caos generalizado. Ninguém, propriamente, sabia como lidar com a situação. Houve contactos intensos com a Associação de estudantes de quase todas as escolas do Distrito, com a ajuda preciosa e sensata da Dr.ª Aurora. O facto é que os Institutos Industriais passaram a ser Institutos Superiores (ISEP, ISEL e ISEC, ISCAL e ISCAP).
Havia concentrações e plenários em qualquer lado. Certa vez, no corredor do 1º andar, havia um conjunto de alunos e professores que debatiam ideias. No calor da discussão, o Professor Pássaro, disse muito indignado, talvez com qualquer coisa que se tivesse dito a seu respeito: “ Cuidado! Não vos meteis comigo, porque um Pássaro ferido...”! “ Não voa “- atalhou letalmente o penalbilhas! O Professor Pássaro encolheu as garras e as asas e saiu a dali a voar baixinho. Todos nós aplaudimos entusiasticamente o penalbilhas, que, de facto, se impunha como líder.
Uma outra vez, num plenário no Salão Nobre da Escola – onde se faziam os bailaricos, o fistor intervinha entusiasmado, bramindo o braço no ar. Cheguei-me ao pé dele e segredei-lhe: “ Ó pá! Não levantes tanto o braço, que tens a camisa rota no sovaco”.
Já não sei em que mês, houve eleições para a Comissão de Festas dos Finalistas e o pantomineiro concorreu. Era tão inconsciente e tão desapegado da realidade que, em vez de votar nele próprio, votou no adversário! Que lhe ganhou por poucos votos. (De qualquer modo, a direcção ficou muito bem entregue a esse excelente rapaz, que se chamava Freixo, se não estou enganado. Era, sem dúvida, o rapaz mais popular da Escola, pois já a frequentava desde o primeiro ano.
Quando soube disso e o confrontei, desarmou-me com o seu sorriso de criança: “ Que le queres, pá! Não gosto de mandar e nem de responsabilidades. Prefiro ficar na “ sombra “. Até hoje ainda não engoli essa explicação. Quanto a mim, fê-lo por burrice e por falta de experiência pois, no fundo, era de uma ingenuidade quase religiosa e irritante. (A vida já o deve ter ensinado, certamente).
Éramos parvos, estouvados e inconscientes e manipulados, mas éramos autênticos, genuínos, cheios de sonhos e ávidos de liberdade, se bem que muitos de nós não fizesse a mínima ideia do que isso era. Vivíamos deslumbrados e confusos, mas todos queríamos agarrar a vida pelos cornos. Éramos a força-motriz da mudança, o farol de esperança do futuro, mas também uma isca para os oportunistas, que se aproveitavam da nossa inocência e energia profundamente genuína, para atingirem os seus objectivos pessoais e egoístas. Teremos sido talvez cruéis com alguns, a quem tratámos mal e que, porventura não mereciam mas, a nossa irracionalidade ingénua e ignorância, era pasto basto para os chupistas e malabaristas que, infelizmente, continuam a crescer como cogumelos, nos dias de hoje. Lançavam a pedra e escondiam a mão.
Também, quem os mandou (a eles), obrigarem-nos (a nós), a vivermos durante décadas na ignorância e no silêncio?!
Fontes de Carvalho
Fontes de Carvalho, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanato nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.
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