Ma Belle Amie...
Era um verão tórrido como eram todos os verões em Bragança.
No final da tarde de sexta-feira, já tínhamos ido ao Cazão comprar cinco “croas” de chumbo alemão. Não, não eram para atirar aos pardais. Já vos conto para que eram os chumbos. Cinco “croas” já era uma caixinha de metal cheia deles.
A tarde de sábado tinha sido passada no fervença, para os lados da presa de baixo. Uns escalos e umas bogas já estavam no saco plástico. Cacifros não havia, não eram para as nossas posses. Uns banhos no rio de leito limpo e de águas claras. Umas “peladinhas” no lameiro seguidas de mais uns mergulhos e de uma secagem rápida ao sol intenso. Não havia bronzeadores. Uns mergulhos a seguir aos outros, lá iam atenuando a caloraça.
Sábado à noite, depois de jantarmos, era altura de irmos até “à cidade”.
Era agosto, eram as férias grandes, eram as festas da cidade e a “terra dos sonhos” estava instalada, inteirinha, nas imediações da vetusta Taça na Praça Cavaleiro de Ferreira.
- Trouxestes os chumbos?
- Tenho-os aqui no bolso.
Depois de passar o Liceu e descer a Boavista, o caminho era feito pela linha do comboio a partir da casa do Januário.
Era tudo escuro como bréu. A iluminação pública era quase inexistente. Também pouca falta fazia. Conhecíamos todos os palmos de terra do caminho.
As luzes dos carrinhos de choque e a música da pista apressavam-nos os passos.
Tínhamos acabado de chegar à “terra encantada”.
O primeiro brilho nos olhos aparecia junto da pista dos carros de choque. Ainda não era a hora de dar uma ou duas voltas. Mais tarde as voltas iam durar mais tempo porque haveria menos gente, menos clientes.
À direita, junto à Caixa de Previdência, estavam instaladas as cadeirinhas. Para além de serem mais caras que os outros divertimentos, 1$00 cada volta, eram igualmente perigosas para garotos como nós.
À esquerda e no correr da linha estava o nosso primeiro destino. As barracas dos tiros.
O chumbo alemão, era muito mais compacto que o chumbo nacional, que era o que vendiam nas barracas para municiar as armas de pressão.
O chumbo alemão tinha uma configuração…assim tipo o “volante/pena” do badminton. Mais duro e com a ponta arredondada. Para o introduzirmos no cano da espingarda tínhamos que lhe dar umas mordidelas primeiro.
O chumbo nacional era frágil, parecia uma pequena cápsula de ponta afiada e que até com os dedos conseguíamos esmagar.
Está escolhido o primeiro alvo.
- Aquele porta-chaves, o que tem o Índio.
Todos tínhamos alguma, ou até muito boa, pontaria. Era praticamente indiferente qual de nós atiraria ao alvo. Bem sabíamos que as miras estavam desafinadas. Com o primeiro tiro, por norma pouco eficiente, ficávamos a saber para que lado dar o “desconto”.
- Dê-me 5 chumbos. Era uma “croa” cada um.
A partir do segundo chumbo…caiam sempre ao chão quando iam entrar no cano. Quando o chumbo regressava para ser introduzido no cano, já era o chumbo alemão que, conforme planeado, tinha sido trocado pelo nacional. Era “cada sachada sua minhoca”. Havia que disfarçar o caso e ir dar uma volta antes de ir um outro escolher novo alvo.
Mesmo em frente estava a máquina do algodão doce. Que confusão nos fazia ver enrolar-se no pauzinho, e com tanta velocidade, o algodão tão docinho e que regalava ao desfazer-se na boca e ao colar-se aos lábios.
Na barraca dos matraquilhos, a música era “Ma Belle Amie, dos Tee Set”.
- Há dois pr´a dois ao perde paga?
Havia sempre nem que tivéssemos que esperar um bocadinho para que uma mesa vagasse. Se aparecessem mais amigos...jogávamos ao "bóta fora".
Umas vezes ganhávamos, outras perdíamos. Umas vezes trazíamos mais óleo nas mãos do que o que deixávamos nos varões…outras não.
Havia gente por todos os lados, famílias inteiras, velhos e novos, avós e netos. Vida, alegria, movimento…e sonhos, muitos sonhos.
Em frente ao tribunal, numa tenda montada para o efeito, ia começar a apresentação do homem mais alto do mundo e a do mais baixo. Não era divertimento que me atraísse e a entrada não era barata.
Eis então que surge uma amiga do bairro acompanhada pela empregada doméstica.
- Queres vir connosco? Perguntou-me a criada.
Envergonhado, corado, não consegui dizer que não. Éramos pouco mais que crianças e eu tinha um "fraquito" qualquer pela amiga do bairro.
Entrámos. Quando apareceram no palco os protagonistas, o homem mais alto era um africano muito alto mesmo, ela assustou-se. Cobriu o rosto com as duas mãos e num gesto mecânico, encostou a cabeça ao meu ombro para não ver. O vermelhão do meu rosto e a minha aflição deve ter sido bem maior que o susto dela…
Duas corridas para ir ter com os outros que ainda estavam a jogar matrecos.
- Esperai aqui por mim que vou às setas tirar uma laranjada.
Uma coisa que sempre me pareceu tão fácil e que a prática sempre provou o contrário. Tanta carta num espaço tão exíguo e o raio das setas teimavam em acertar ao lado.
Cada seta era uma “croa”. Com três setas, lá consegui tirar uma laranjada. Com as três “croas” tinha comprado duas…
Que bem sabiam as laranjadas. Sempre geladinhas e doces.
Era hora de irmos até aos carrinhos.
Duas voltas já duravam tanto tempo como cinco umas horas antes. A “buzina” que anunciava “nova corrida nova viagem que vamos realizar” demorava o dobro do tempo a fazer-se ouvir.
Lata contra lata, velocidade estonteante e lá íamos, como loucos, a tentar embater contra os carrinhos que transportavam as raparigas. “Não nos responsabilizamos pelos danos físicos que possam ocorrer no interior da pista”… Admirava a destreza com que os funcionários se movimentavam pelo meio da pista, com os carros em andamento, e se agarravam aos carrinhos para recolher as fichas.
- Vamos até ao jardim ver se ainda há alguma coisa?
- Vamos!
A partir da Praça da Sé já se ouvia o som do Bingo do G.D.B.
“Vamos fazer a última a encher. O prémio vai todo para o contemplado”.
Corda aos sapatos para chegarmos a tempo.
Lembra-me dos olhares de soslaio dos que estariam a jogar há mais tempo. O que estariam a pensar? Era fácil adivinhar. Vêm agora estes marmanjos e há-de ser para eles. O prémio, se vendessem muitos cartões, seria certamente superior ao ordenado de uma semana nas obras.
Mas não, não era dia.
O regresso a casa era pelo mesmo trajeto. Podíamos regressar pelo Loreto acima mas era conveniente darmos uma olhadela aos locais por onde andou gente. Cinco “croas” no chão, ou quem sabe, até uma nota de 20, seriam bem-vindas.
Também não, não era o nosso dia de sorte.
Casa e cama que se faz tarde.
No dia seguinte, era obrigatório ir à missa das onze à Sé. Ou pelo menos, perguntar a alguém no fim da missa…como estava vestido o Cónego Ruivo.
Dedico esta memória aos meus amigos de infância e principalmente aos que se reveem no episódio.
Era um verão tórrido como eram todos os verões em Bragança.
No final da tarde de sexta-feira, já tínhamos ido ao Cazão comprar cinco “croas” de chumbo alemão. Não, não eram para atirar aos pardais. Já vos conto para que eram os chumbos. Cinco “croas” já era uma caixinha de metal cheia deles.
A tarde de sábado tinha sido passada no fervença, para os lados da presa de baixo. Uns escalos e umas bogas já estavam no saco plástico. Cacifros não havia, não eram para as nossas posses. Uns banhos no rio de leito limpo e de águas claras. Umas “peladinhas” no lameiro seguidas de mais uns mergulhos e de uma secagem rápida ao sol intenso. Não havia bronzeadores. Uns mergulhos a seguir aos outros, lá iam atenuando a caloraça.
Sábado à noite, depois de jantarmos, era altura de irmos até “à cidade”.
Era agosto, eram as férias grandes, eram as festas da cidade e a “terra dos sonhos” estava instalada, inteirinha, nas imediações da vetusta Taça na Praça Cavaleiro de Ferreira.
- Trouxestes os chumbos?
- Tenho-os aqui no bolso.
Depois de passar o Liceu e descer a Boavista, o caminho era feito pela linha do comboio a partir da casa do Januário.
Era tudo escuro como bréu. A iluminação pública era quase inexistente. Também pouca falta fazia. Conhecíamos todos os palmos de terra do caminho.
As luzes dos carrinhos de choque e a música da pista apressavam-nos os passos.
Tínhamos acabado de chegar à “terra encantada”.
O primeiro brilho nos olhos aparecia junto da pista dos carros de choque. Ainda não era a hora de dar uma ou duas voltas. Mais tarde as voltas iam durar mais tempo porque haveria menos gente, menos clientes.
À direita, junto à Caixa de Previdência, estavam instaladas as cadeirinhas. Para além de serem mais caras que os outros divertimentos, 1$00 cada volta, eram igualmente perigosas para garotos como nós.
À esquerda e no correr da linha estava o nosso primeiro destino. As barracas dos tiros.
O chumbo alemão, era muito mais compacto que o chumbo nacional, que era o que vendiam nas barracas para municiar as armas de pressão.
O chumbo alemão tinha uma configuração…assim tipo o “volante/pena” do badminton. Mais duro e com a ponta arredondada. Para o introduzirmos no cano da espingarda tínhamos que lhe dar umas mordidelas primeiro.
O chumbo nacional era frágil, parecia uma pequena cápsula de ponta afiada e que até com os dedos conseguíamos esmagar.
Está escolhido o primeiro alvo.
- Aquele porta-chaves, o que tem o Índio.
Todos tínhamos alguma, ou até muito boa, pontaria. Era praticamente indiferente qual de nós atiraria ao alvo. Bem sabíamos que as miras estavam desafinadas. Com o primeiro tiro, por norma pouco eficiente, ficávamos a saber para que lado dar o “desconto”.
- Dê-me 5 chumbos. Era uma “croa” cada um.
A partir do segundo chumbo…caiam sempre ao chão quando iam entrar no cano. Quando o chumbo regressava para ser introduzido no cano, já era o chumbo alemão que, conforme planeado, tinha sido trocado pelo nacional. Era “cada sachada sua minhoca”. Havia que disfarçar o caso e ir dar uma volta antes de ir um outro escolher novo alvo.
Mesmo em frente estava a máquina do algodão doce. Que confusão nos fazia ver enrolar-se no pauzinho, e com tanta velocidade, o algodão tão docinho e que regalava ao desfazer-se na boca e ao colar-se aos lábios.
Na barraca dos matraquilhos, a música era “Ma Belle Amie, dos Tee Set”.
- Há dois pr´a dois ao perde paga?
Havia sempre nem que tivéssemos que esperar um bocadinho para que uma mesa vagasse. Se aparecessem mais amigos...jogávamos ao "bóta fora".
Umas vezes ganhávamos, outras perdíamos. Umas vezes trazíamos mais óleo nas mãos do que o que deixávamos nos varões…outras não.
Havia gente por todos os lados, famílias inteiras, velhos e novos, avós e netos. Vida, alegria, movimento…e sonhos, muitos sonhos.
Em frente ao tribunal, numa tenda montada para o efeito, ia começar a apresentação do homem mais alto do mundo e a do mais baixo. Não era divertimento que me atraísse e a entrada não era barata.
Eis então que surge uma amiga do bairro acompanhada pela empregada doméstica.
- Queres vir connosco? Perguntou-me a criada.
Envergonhado, corado, não consegui dizer que não. Éramos pouco mais que crianças e eu tinha um "fraquito" qualquer pela amiga do bairro.
Entrámos. Quando apareceram no palco os protagonistas, o homem mais alto era um africano muito alto mesmo, ela assustou-se. Cobriu o rosto com as duas mãos e num gesto mecânico, encostou a cabeça ao meu ombro para não ver. O vermelhão do meu rosto e a minha aflição deve ter sido bem maior que o susto dela…
Duas corridas para ir ter com os outros que ainda estavam a jogar matrecos.
- Esperai aqui por mim que vou às setas tirar uma laranjada.
Uma coisa que sempre me pareceu tão fácil e que a prática sempre provou o contrário. Tanta carta num espaço tão exíguo e o raio das setas teimavam em acertar ao lado.
Cada seta era uma “croa”. Com três setas, lá consegui tirar uma laranjada. Com as três “croas” tinha comprado duas…
Que bem sabiam as laranjadas. Sempre geladinhas e doces.
Era hora de irmos até aos carrinhos.
Duas voltas já duravam tanto tempo como cinco umas horas antes. A “buzina” que anunciava “nova corrida nova viagem que vamos realizar” demorava o dobro do tempo a fazer-se ouvir.
Lata contra lata, velocidade estonteante e lá íamos, como loucos, a tentar embater contra os carrinhos que transportavam as raparigas. “Não nos responsabilizamos pelos danos físicos que possam ocorrer no interior da pista”… Admirava a destreza com que os funcionários se movimentavam pelo meio da pista, com os carros em andamento, e se agarravam aos carrinhos para recolher as fichas.
- Vamos até ao jardim ver se ainda há alguma coisa?
- Vamos!
A partir da Praça da Sé já se ouvia o som do Bingo do G.D.B.
“Vamos fazer a última a encher. O prémio vai todo para o contemplado”.
Corda aos sapatos para chegarmos a tempo.
Lembra-me dos olhares de soslaio dos que estariam a jogar há mais tempo. O que estariam a pensar? Era fácil adivinhar. Vêm agora estes marmanjos e há-de ser para eles. O prémio, se vendessem muitos cartões, seria certamente superior ao ordenado de uma semana nas obras.
Mas não, não era dia.
O regresso a casa era pelo mesmo trajeto. Podíamos regressar pelo Loreto acima mas era conveniente darmos uma olhadela aos locais por onde andou gente. Cinco “croas” no chão, ou quem sabe, até uma nota de 20, seriam bem-vindas.
Também não, não era o nosso dia de sorte.
Casa e cama que se faz tarde.
No dia seguinte, era obrigatório ir à missa das onze à Sé. Ou pelo menos, perguntar a alguém no fim da missa…como estava vestido o Cónego Ruivo.
Dedico esta memória aos meus amigos de infância e principalmente aos que se reveem no episódio.
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