Vou confessar-vos que tenho um «vício»: ir às nossas aldeias e falar com as pessoas que encontro. Algumas já conhecem o «maluquinho» que, simplesmente aparece, e se senta para uma amena cavaqueira. Outras, ficam a olhar de soslaio, desconfiadas, questionando-se sobre quem será o tal de «maluquinho» que anda a circular pelas ruas da aldeia, a tomar notas, a fotografar, a apreciar monumentos e velhos vestígios. Por norma, a desconfiança acalma quando lhes falo de uma forma «estranha», que só as nossas gentes entendem. E lá sai, em genuína pronúncia, um «Ó home, bô, pur a forma de falare, num é de longe».
Quebradas as barreiras, por vezes passam-se horas à conversa, nas quais registo toda a aprendizagem num bloco que sempre me acompanha. E é tanto o que aprendo com os nossos “belhotes”! “Bá”, eles também aprendem algumas coisitas comigo e mostram-se extremamente interessados, quando começo a contar-lhes histórias que ultrapassam os limites dos seus «desde que me lembro», expressão pronunciada de uma forma semelhante a “dez’de que m’alembru’e”. E fico encantado com os ensinamentos que absorvo. Registando histórias, expressões, palavras que, tais como “bilhó”, “folecra” ou “rebusco”, vão caindo no esquecimento.
Recentemente, numa dessas incursões, falámos de castanhas. Enquanto ouvia “aquele castinheiro q’além bê, é mou’e”, entre tantas outras coisas deliciosas, perguntei ao interlocutor: «Há quantos anos se colhem por aqui castanhas?». Resposta imediata, respeitando, integralmente, a pronúncia: «Já us mous abós nas culhium’e, sempre les oubi d’zere. Pur’u menus hai pr’á’í deis séc’lus’e, qu’é que me dize?». Acabei por partilhar com o interlocutor algumas das coisas que aqui irei fazer. Tendo sido retemperador que me tenha solicitado para apontar algumas delas numa folha de papel, “que las hei-de amustrare ós mous netus’e”, dizia-me, cheio de “proa”.
Com o senhor partilhei que a tão nossa castanha deriva o seu nome a partir das denominações gregas «kastáneion» e «kástanon» (a origem para o nome latino «castanea»), e que os primeiros vestígios que se encontram do seu consumo, por estas bandas, recuam ao tempo da permanência dos Romanos. Acrescentando que só há cerca de mil anos é que começaram a aparecer na documentação escrita. Interrompia-me para me dizer, no meio de um sorriso malandro, que também se chamavam «castanhas» ou «castanholas» aos excrementos dos burros, facto que me fez regredir a tempos de infância. Ou que, quando os tempos eram mais difíceis, se fazia um café que, de tão pouco pó que levava, se dizia que parecia “auga” de castanhas, expressão que me recordo perfeitamente de ouvir. Curiosidades…
Prosseguindo fui, dizendo-lhe que as castanhas sempre foram associadas a «comida de pobres», desde o tempo dos nossos primeiros reis. Nomeadamente, D. Dinis, nalgumas doações que fazia, deixava instruções para que se reservassem alguns soutos para os pobres. Tempos outros nos quais os nossos antepassados faziam «farinha de castanha», com a qual confeccionavam pão, especialmente em épocas de escassez de cereal. Parece que, nalgumas zonas, chamam de «falacha» a esse pão singular. Farinha essa que também servia para comer em papas ou, até, bolos. Dizia-me o interlocutor que não se lembrava de alguma vez ter comido «pão de castanhas», mas que muitas vezes as tinha comido no «caldo».
A castanha que também serviu para pagar impostos medievais, régios e eclesiásticos, com nomes estranhos como «terrádigo» ou «encensoria», e sobre cuja colheita também se pagava o célebre «dízimo à Igreja». Interrompeu-me para me perguntar se me lembrava de “rilhar’ua castanha no primeiro de Maio”. Que era para proteger das maleitas e para o «burro não nos morder». Disso me recordo, não me lembrando, no entanto, do «caniço» ou dos «escrinhos», de que me falou. O primeiro que servia para secar castanhas e os segundos que seriam uns cestos que também serviriam para as guardar. Alguns dos leitores se recordarão destes artefactos, seguramente.
Uns versos havendo que dizem que «em dia de S. Simão, quem não faz magusto, não é cristão», perguntei-lhe se se lembrava de se fazer um magusto nesse dia 28 de Outubro. Tendo-me respondido aquilo que será do conhecimento geral: “Magosto só nos Santos e no São Martinho, q’ou m’alembre, q’isso do São Simão já num é da minha lembrança”. Espantado tendo ficado quando lhe transmiti que os seus bisavós não comiam batatas, que a castanha era o principal alimento, conjuntamente com o pão e o vinho.
Também lhe disse que há cerca de 300 anos, na sua freguesia, a castanha era a principal produção, quase não havendo freguesia nenhuma no distrito que as não produzisse. E que, desse tempo e de outros mais recuados, até já havia livros com receitas que incluíam castanhas. Para lá do «caldo de castanhas», também se recheavam aves com as ditas, especialmente os perus. Castanhas que, à falta de batatas, também acompanhavam pratos de porco ou de rojões. Receitas para as quais era recomendado o uso de fiolho. Anotação perante a qual soltou uma gargalhada porque «o fiolho é para o chá». Gargalhada que repetiu quando lhe disse que era habitual fazer-se «marmelada de castanhas», porque, disse-me, com alguma razão, que a «marmelada é de marmelos».
A castanha, à qual o «nosso» Miguel Torga apelidava de «o fruto dos frutos», hoje classificada como «Castanha da Terra Fria DOP», tantas histórias (e história) guardando. Por entre mais “ua pinga”, que há que “mulhare a palabra”, dizia-me, faltavam os “bilhós”. Se os tivéssemos, jogávamos “á’rrebunhana”, que eu apenas conhecia na versão “rebulhana”. «Cada terra seu uso, cada roca seu fuso», já o diziam os antigos. Ficou a promessa de, «no tempo delas», lá regressar para cumprimos o jogo. “Inda le dou um magosto delas”, dizia-me na despedida.




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