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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite, Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues, João Cameira e Rui Rendeiro Sousa.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Memórias da Matança do Porco em Trás-os-Montes


 A matança do porco era um ritual de sobrevivência, uma celebração da fartura e da entreajuda, um marco do inverno que durante séculos garantiu alimento a muitas famílias ao longo de todo o ano.
Quando chegava o frio, lá para novembro ou dezembro, e as manhãs acordavam cobertas de geada, sabia-se que se aproximava o tempo da matança. Nas aldeias, o cheiro da lenha que ardia nas lareiras misturava-se com a azáfama dos preparativos. Afiavam-se as facas, lavavam-se os alguidares, e avisavam-se os familiares e vizinhos, porque a matança do porco era, e ainda é em muitos lugares, uma festa coletiva, onde o trabalho é partilhado e o convívio aquece a alma.
O dia começava cedo. Juntava-se a família toda, os pais, os filhos, os avós, os vizinhos que vinham ajudar, todos com tarefas bem definidas. O porco, criado com esmero durante o ano inteiro, alimentado com restos de comida, batatas e couves da horta, era o centro das atenções.
A matança era um momento solene, envolto num respeito silencioso. Antigamente, chamava-se o matador, homem experiente e firme, que sabia bem o que fazia. O bicho era abatido de forma rápida, e logo depois começava a azáfama. O sangue, cuidadosamente recolhido, era mexido com uma colher de pau para não coalhar e serviria depois para fazer os chouriços de sangue.
O corpo do porco era escaldado e raspado com facas afiadas, às vezes com água quente aquecida em grandes panelas ao lume, outras vezes com palha queimada para queimar os pelos e dar aquele cheiro inconfundível à pele. O vapor subia no ar frio da manhã, misturado com o fumo do lume, e a aldeia inteira sabia, pelo cheiro, que havia matança naquela casa.
Quando o animal era pendurado e aberto, começava a parte mais técnica. Separar as carnes, guardar as vísceras, preparar o que seria o sustento de meses. Nada se desperdiçava, tudo tinha um destino. As carnes nobres guardavam-se para fazer o fumeiro, as gorduras para a banha, o fígado e o coração para as primeiras refeições do dia.
As mulheres, com as mãos frias mas hábeis, tratavam das tripas, um dos trabalhos mais duros e mais falados. Eram levadas em alguidares até à ribeira ou à pia do quintal, onde se lavavam com água corrente, sal e vinagre, até ficarem limpas e prontas a receber a carne temperada. O frio cortava, a água era gelada, mas entre risos, conversas e histórias antigas, o trabalho fazia-se. Era um momento de cumplicidade e de orgulho.
Enquanto isso, dentro de casa, ferviam as panelas, e o cheiro de carne fresca, alho e louro começava a dominar o ar. As primeiras refeições eram quase um banquete. Havia sopas gordas com sangue, rojões fritos na banha, figados e febras acabadas de cortar, acompanhados com pão caseiro e vinho novo. Todos se sentavam à mesa, família, amigos e vizinhos, porque a matança era um tempo de partilha. Ninguém ficava de fora.
Nos dias seguintes, o trabalho continuava. As carnes eram temperadas com sal, alho, vinho tinto, colorau e louro, e ficavam nos alguidares. Depois vinham as longas jornadas para fazer o fumeiro. Chouriças, alheiras, salpicões, butelos, cada um com o seu segredo e o seu toque familiar. As mulheres enchiam as tripas com destreza, os homens penduravam os enchidos no fumeiro, onde o lume brando de carvalho lhes daria o sabor e a cor desejada.
O fumeiro era um santuário da casa transmontana. Durante dias e noites, o cheiro da carne a defumar impregnava o ar e ficava na memória de quem por ali passava. Era ali, pendurado no fumo, que o trabalho de uma semana se transformava em sustento para todo o ano.
A matança do porco tinha também uma dimensão social e simbólica. Era o momento em que a casa se afirmava como próspera e trabalhadora, capaz de se auto-sustentar e de partilhar. Era uma festa, sim, mas também uma prova de união. Os vizinhos ajudavam-se mutuamente, hoje num quintal ou numa cortinha, amanhã noutra, e a alegria de cada matança era a alegria de todos.
Nos tempos antigos, o porco era a base da alimentação. Do fumeiro saíam as carnes que acompanhavam as batatas, as couves e o feijão durante o ano inteiro. Sem o fumeiro, muitas famílias não teriam sobrevivido aos invernos longos e duros. Era por isso que se dizia que o porco dava tudo, desde o presunto ao toucinho,  e que “do porco aproveita-se tudo, até o andar”.
Hoje, embora muita coisa tenha mudado, a matança do porco continua viva em algumas aldeias transmontanas. Já não é uma necessidade vital, mas é uma tradição que se mantém com orgulho, como herança e memória de um tempo em que a vida era feita de trabalho, comunidade e respeito pela terra e pelos animais.
Quando, ao fim de alguns dias, os enchidos estavam pendurados no fumeiro e a casa voltava ao silêncio, ficava no ar o cheiro do fumo e da carne, e no coração a sensação de dever cumprido.Era o encerramento de um ciclo, uma promessa de fartura, um eco dos gestos antigos que moldaram a identidade de um povo.
A matança do porco, em Trás-os-Montes, era um símbolo de união, de sustento e de gratidão. Era o testemunho de uma forma de viver simples, mas plena, onde o esforço se transformava em celebração, e o alimento em memória.

HM

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