Ouvindo a épica canção de Sir Elton John “Crocodile Rock” que começa justamente com as palavras “I remember when rock was young…” do álbum Don't Shoot Me I'm Only the Piano Player , de 1973, algo me fez divergir para recordações de outros tempos, de outras vivências, de outras aprendizagens, de outros sonhos.
Comecemos pelo princípio. Há cerca de cinquenta anos eis que chego à vetusta cidade de bragança, em plena pós-revolução, finda a aventura de Portugal em África. Confesso que as primeiras impressões não foram deveras lisonjeiras. Todavia, do alto dos meus dezasseis anos, tendo em mim todos os sonhos do mundo, integrei-me facilmente na vida da cidade, pujante de estudantes e de animação, e de repente, eu era um deles, integrado e satisfeito. Mas esta talvez demasiado longa introdução sirva apenas para enquadrar o que a seguir me apetece dizer, observando o indigno cenário daquilo que já foi o “nosso” Rio Fervença.
O notável curso de água, segundo testemunhos inquestionáveis e verdadeiras exortações dos meus contemporâneos que viveram a meninice, a adolescência e juventude em Bragança, era muito mais que um rio. Era o alfa e o ómega da sua vivência. No seu curso citadino, o rio era o palco de todo o tipo de brincadeiras, de aventuras, de coboiadas e de descobertas. Foi no Fervença que eles aprenderam a nadar, a pescar (é verdade, o rio tinha peixes, rãs, libelinhas …), a acampar (sem tenda, obviamente) em perfeita autonomia e harmonia com o espaço ripícola envolvente.
Citando ainda fontes dos meus condiscípulos participantes (e acreditem que é verdade), foi igualmente sob os auspícios do Fervença, ou seja, nas suas imediações, que provaram o primeiro carrascão, a primeira cerveja, que fumaram o primeiro mata-ratos. Sem qualquer tipo de dúvida, o rio era uma fonte de vida, cujo ecossistema transbordavam de peixes, de batráquios, de aves e de insetos. Quem consegue imaginar um bando de adolescentes a deslocar-se para as margens do rio situadas a montante da Côxa, sem tendas, nem fogões, nem canas de pesca, nem anzois, muito menos dinheiro. Mas tenho a certeza que eram tempos de um entusiamo e alegria inolvidáveis, a ideia suprema de se instalarem durante uns dias, sem os constrangimentos paternos, fazendo o plano de sobrevivência a la carte nos lameiros ribeirinhos. Como eu ficava extasiado com o relato das aventuras rocambolescas por eles vividas. E com pena de não ter sido um dos participantes.
A única satisfação que posso transmitir é que eu ainda conheci o rio como ele era. Cheio de vida. Tinha um amigo, já conhecido de Angola (o Tozé Lopes), que morava nos Batoques, no primeiro andar da casa que hoje integra o café “Beira Rio”. Quantas tardes ali passamos, a ouvir duas cassetes que ele tinha (Dark side of the moon [Pink Floyd] e Made in Japan [Deep Purple]), num daqueles aparelhos que pouco maior era que as referidas cassetes. E da sua janela passávamos um tempo infinito a contemplar o rio, divagando, cujas águas roçavam exatamente na parede da casa. Que saudade!
Todavia, partindo deste idílico paradigma, olhando hoje para a manta verde que cobre o dito rio, perguntamos de que se trata. Um tapete verde, uma pista de ski, ou uma plantação de espécies exóticas?
Como ninguém responde, sabemos que a realidade é bem diferente. Com o intuito modelar de uma pretensa reabilitação do Rio Fervença e dos espaços adjacentes na parte que integra o tecido urbano e aproveitando a oportunidade de financiamento prevista no Programa POLIS, a autarquia de Bragança acabou por transformar o curso de água naquilo que é hoje.
Verificamos que o leito foi ligeiramente desviado do seu curso natural imediatamente a jusante da ponte do Loreto, facto esse que deu origem a uma zona de concentração de sedimentos que os serviços municipais não têm conseguido inverter ou corrigir. Se acrescentarmos a isso a ocorrência de anos cada vez mais secos e uma fraca quantidade de água permanente resultante das transformações efetuadas no decurso da intervenção urbanística, bem como a existência visível de esgotos que continuam livremente a desaguar nesse troço, temos quase a explicação lógica para o aspeto moribundo do nosso rio. O que nos revolta é que os responsáveis fechem os olhos para esta realidade, que persiste anos a fio sem qualquer benfeitoria. Pior ainda, se nos lembrarmos que a pior fase anual ocorre sempre na altura em que mais gente visita Bragança. Será que é do agrado dos responsáveis que os visitantes assistam a este espetáculo deprimente de um pseudo rio sem vestígios de vida?
Aparecem tantas fotografias nas redes sociais oficiais, mas nenhuma relacionada com o tema. Ou é preciso que o Rio Fervença tenha Facebook?
Outubro de 2025
Sem comentários:
Enviar um comentário